Fox:
terças, às 22h
Em Deadwood, tudo é e não é.
A começar pelo "camp", o acampamento,
que não é território, que não
faz parte da área delimitada pelo Estados Unidos,
que está em terra ainda reconhecida como solo
índio. Em Deadwood, um prostíbulo
vira sala de justiça, uma bêbada boca-suja
(aliás Calamity Jane) vira enfermeira, pistoleiros
viram funcionários, o chiqueiro vira cemitério,
e assim por diante. Entre Ford e Scorsese (Gangues
de Nova York), com retoques de Cimino (O Portal
do Paraíso), a série de David Milch
reapropria para o formato episódico o universo
supercodificado do velho oeste, e as ficções
de instalação num solo que permeiam o
cinema americano. O acampamento de Deadwood é
um salve-se quem puder de mineradores em busca de ouro,
apostadores, bêbados, trabalhadores e aventureiros
que sobrevivem em terreno instável, ainda não
sedimentado pela lei e tampouco pelos costumes. A trama
de Deadwood será a instalação
e a fixação dos valores e dos códigos
naquilo que não era senão um amontoado
de coisas sobre o solo: como um agrupamento vira uma
cidade, como o liso se torna estriado, como se monta
uma máquina, como nasce uma instituição.
Como sempre nas ficções de formação
de um povo, é o direito que é dramatizado.
Deadwood se apóia em dois protagonistas,
duas maneiras diferentes de se regrar uma comunidade,
dois sentidos distintos de justiça. Um é
encarnado na figura de Al Swearengen (Ian McShane em
estado de graça), dono do principal prostíbulo
do local, o Gem, e auto-proclamado chefe da cidade:
todos os negócios se fazem passando por ele,
que observa tudo que acontece no vilarejo e calcula
com seus botões o que fazer para tomar parte
nos lucros e nas influências. A outra é
Seth Bullock (Timothy Olyphant), ex-xerife de Montana,
cidade que abandona com o amigo Sol Star para montar
uma loja de ferragens e material de mineração
em Deadwood. Instância da Lei que precisa se fazer
mesmo quando não há direito, Bullock ganha
as dimensões de herói minoritário,
trágico por vezes. Uma das grandes forças
da série é que a partilha das razões
não se dá sempre em preto-e-branco pela
culpabilização das atitudes de Swearengen.
Como um dos principais personagens scorseseanos, Bill
the Butcher, Swearengen corresponde a um determinado
momento da civilização, um estágio
em que um déspota inventa a força da lei
e, por seu carisma e poder de liderança, faz
o mundo girar em torno de si. A explicação
e conseqüente ilustração de sua justiça
a Silas Adams, portador do magistrado de Yanktow (episódio
10), é em muitos aspectos uma explicação
ao próprio espectador dos dilemas dessa figura
de déspota.
Entre essas duas figuras contrastantes e em alguma medida
complementares, aos poucos nasce uma cidade. Pois se
há uma dinâmica que emociona em Deadwood,
é a acumulação de camadas de código
sobre código, um novo saloon, uma máquina
de fotografia que chega ao jornal, uma reunião
para se livrar da varíola, um posto de correios,
e posteriormente a ordenação em cargos
públicos de chefia. É uma série
que, como os filmes de Leone, tenta mostrar a constituição
dos processos históricos muito mais do que refletir
sobre eles. E à mudança da terra corresponde
uma mudança no estatuto dos persoangens: uma
viciada em láudano se torna empreendedora, uma
prostituta submissa começa a colocar as mangas
de fora, um cavaleiro passa a usar roupas de cavalheiro,
o reverendo torna-se um demente. Existe toda uma opacidade
dos personagens, dos principais aos secundários,
que comove: o que fazer do médico, em sua cena
final da temporada, dançando com a faxineira
perneta? e da menina Sophia, que passa quase a temporada
inteira sem dar um pio e cuja expressividade no sorriso
ou numa única palavra vale o esforço de
filmes inteiros? e da desajeitada cena de cópula
entre Sol e Trixie na loja de ferragens? e de Calamity
Jane em pé com a testa escorando uma parede?
Deadwood flerta com o absurdo da realidade, com
aqueles momentos que acontecem diariamente mas que são
muito pouco plausíveis para ser objetos de ficção.
Os fucks e os cocksuckers falados a todo
momento pela grande parte dos personagens, as surradas
roupas de baixo de Swearengen, as excrescências
corporais (vômito, mijo, merda), a nudez gratuita
das prostitutas, as ruas sempre cheias de lama, a varíola
e as outras doenças, tudo isso faz da cidade
de Deadwood um misto de cenário de naturalismo
literário e de hiper-realismo anacrônico.
O estilo visual que Walter Hill imprimiu à série
no piloto, e conduzido à maestria por Davis Guggenheim
nos dois seguintes e no de fechamento do primeiro ano
(o décimo-segundo), é extremamente carregado
nas sombras, nas luzes naturais que vêm da janela
e estouram na tela, ou no marrom das madeiras com que
as casas são construídas. A câmera
quase sempre à mão, mas responsável
por pequenos movimentos panôramicos muito discretos,
que cumprem a função paradoxal não
de descrever o espaço, mas de postar-se indecisos
ou incompletos, tal qual um narrador em terceira pessoa
sem qualquer onisciência, faz com que experimentemos
esse mundo selvagem sem uma bula propriamente dita,
sempre um pouco alheios ao sentido de tudo que vemos
o que só acrescenta ao mistério
de cada personagem (Bullock, Star, Swearengen, Wild
Bill Hickok, Utter, Jane, Farnum, McCall e até
Trixie são personagens reais ficcionalizados
com graus diferenciados de fidelidade à História,
assim como vários acontecimentos de Deadwood,
inclusive a varíola).
Remodelação para a série de um
relato originário da constituição
do território americano, Deadwood é
um painel intimista da luta entre duas formas de justiça,
dois tempos históricos, dois homens de ambições
diversas, mas é também uma transição
do relato curto em novela, com as devidas mudanças
devidas: algumas altissimamente louváveis (a
enorme riqueza dos personagens secundários),
outras menos (a verborragia dos roteiros, que tentam
explicar tudo pela fala). Continuador da tradição
recente mas já mítica da HBO (A Sete
Palmos, A Família Soprano), Deadwood
mostra a que veio em sua primeira temporada, e David
Milch criador e produtor executivo com Steve
Bochco de Nova York Contra o Crime (NYPD Blue),
possivelmente a série que inaugura o momento
de ouro do filão recoloca seu nome no
panteão como uma ads figuras mais decisivas no
panorama da série americana hoje.
Ruy Gardnier
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