DEADWOOD
David Milch, Deadwood, EUA, 2004
(primeira temporada terminada)

Fox: terças, às 22h

Em Deadwood, tudo é e não é.
A começar pelo "camp", o acampamento, que não é território, que não faz parte da área delimitada pelo Estados Unidos, que está em terra ainda reconhecida como solo índio. Em Deadwood, um prostíbulo vira sala de justiça, uma bêbada boca-suja (aliás Calamity Jane) vira enfermeira, pistoleiros viram funcionários, o chiqueiro vira cemitério, e assim por diante. Entre Ford e Scorsese (Gangues de Nova York), com retoques de Cimino (O Portal do Paraíso), a série de David Milch reapropria para o formato episódico o universo supercodificado do velho oeste, e as ficções de instalação num solo que permeiam o cinema americano. O acampamento de Deadwood é um salve-se quem puder de mineradores em busca de ouro, apostadores, bêbados, trabalhadores e aventureiros que sobrevivem em terreno instável, ainda não sedimentado pela lei e tampouco pelos costumes. A trama de Deadwood será a instalação e a fixação dos valores e dos códigos naquilo que não era senão um amontoado de coisas sobre o solo: como um agrupamento vira uma cidade, como o liso se torna estriado, como se monta uma máquina, como nasce uma instituição.

Como sempre nas ficções de formação de um povo, é o direito que é dramatizado. Deadwood se apóia em dois protagonistas, duas maneiras diferentes de se regrar uma comunidade, dois sentidos distintos de justiça. Um é encarnado na figura de Al Swearengen (Ian McShane em estado de graça), dono do principal prostíbulo do local, o Gem, e auto-proclamado chefe da cidade: todos os negócios se fazem passando por ele, que observa tudo que acontece no vilarejo e calcula com seus botões o que fazer para tomar parte nos lucros e nas influências. A outra é Seth Bullock (Timothy Olyphant), ex-xerife de Montana, cidade que abandona com o amigo Sol Star para montar uma loja de ferragens e material de mineração em Deadwood. Instância da Lei que precisa se fazer mesmo quando não há direito, Bullock ganha as dimensões de herói minoritário, trágico por vezes. Uma das grandes forças da série é que a partilha das razões não se dá sempre em preto-e-branco pela culpabilização das atitudes de Swearengen. Como um dos principais personagens scorseseanos, Bill the Butcher, Swearengen corresponde a um determinado momento da civilização, um estágio em que um déspota inventa a força da lei e, por seu carisma e poder de liderança, faz o mundo girar em torno de si. A explicação e conseqüente ilustração de sua justiça a Silas Adams, portador do magistrado de Yanktow (episódio 10), é em muitos aspectos uma explicação ao próprio espectador dos dilemas dessa figura de déspota.

Entre essas duas figuras contrastantes e em alguma medida complementares, aos poucos nasce uma cidade. Pois se há uma dinâmica que emociona em Deadwood, é a acumulação de camadas de código sobre código, um novo saloon, uma máquina de fotografia que chega ao jornal, uma reunião para se livrar da varíola, um posto de correios, e posteriormente a ordenação em cargos públicos de chefia. É uma série que, como os filmes de Leone, tenta mostrar a constituição dos processos históricos muito mais do que refletir sobre eles. E à mudança da terra corresponde uma mudança no estatuto dos persoangens: uma viciada em láudano se torna empreendedora, uma prostituta submissa começa a colocar as mangas de fora, um cavaleiro passa a usar roupas de cavalheiro, o reverendo torna-se um demente. Existe toda uma opacidade dos personagens, dos principais aos secundários, que comove: o que fazer do médico, em sua cena final da temporada, dançando com a faxineira perneta? e da menina Sophia, que passa quase a temporada inteira sem dar um pio e cuja expressividade no sorriso ou numa única palavra vale o esforço de filmes inteiros? e da desajeitada cena de cópula entre Sol e Trixie na loja de ferragens? e de Calamity Jane em pé com a testa escorando uma parede? Deadwood flerta com o absurdo da realidade, com aqueles momentos que acontecem diariamente mas que são muito pouco plausíveis para ser objetos de ficção. Os fucks e os cocksuckers falados a todo momento pela grande parte dos personagens, as surradas roupas de baixo de Swearengen, as excrescências corporais (vômito, mijo, merda), a nudez gratuita das prostitutas, as ruas sempre cheias de lama, a varíola e as outras doenças, tudo isso faz da cidade de Deadwood um misto de cenário de naturalismo literário e de hiper-realismo anacrônico.

O estilo visual que Walter Hill imprimiu à série no piloto, e conduzido à maestria por Davis Guggenheim nos dois seguintes e no de fechamento do primeiro ano (o décimo-segundo), é extremamente carregado nas sombras, nas luzes naturais que vêm da janela e estouram na tela, ou no marrom das madeiras com que as casas são construídas. A câmera quase sempre à mão, mas responsável por pequenos movimentos panôramicos muito discretos, que cumprem a função paradoxal não de descrever o espaço, mas de postar-se indecisos ou incompletos, tal qual um narrador em terceira pessoa sem qualquer onisciência, faz com que experimentemos esse mundo selvagem sem uma bula propriamente dita, sempre um pouco alheios ao sentido de tudo que vemos – o que só acrescenta ao mistério de cada personagem (Bullock, Star, Swearengen, Wild Bill Hickok, Utter, Jane, Farnum, McCall e até Trixie são personagens reais ficcionalizados com graus diferenciados de fidelidade à História, assim como vários acontecimentos de Deadwood, inclusive a varíola).

Remodelação para a série de um relato originário da constituição do território americano, Deadwood é um painel intimista da luta entre duas formas de justiça, dois tempos históricos, dois homens de ambições diversas, mas é também uma transição do relato curto em novela, com as devidas mudanças devidas: algumas altissimamente louváveis (a enorme riqueza dos personagens secundários), outras menos (a verborragia dos roteiros, que tentam explicar tudo pela fala). Continuador da tradição recente mas já mítica da HBO (A Sete Palmos, A Família Soprano), Deadwood mostra a que veio em sua primeira temporada, e David Milch – criador e produtor executivo com Steve Bochco de Nova York Contra o Crime (NYPD Blue), possivelmente a série que inaugura o momento de ouro do filão – recoloca seu nome no panteão como uma ads figuras mais decisivas no panorama da série americana hoje.

Ruy Gardnier

 

 



Keith Carradine e Timothy Olyphant em Deadwood