O MENSAGEIRO TRAPALHÃO
Jerry Lewis, The Bellboy, EUA, 1960

Um momento favorito: em Aos Nossos Amores, de Maurice Pialat, um jantar familiar segue tranqüilo, com os atores mantendo um tom íntimo, quando a figura do diretor irrompe na tela e um desastre se segue. Trata-se de algo roteirizado? Uma improvisação? Um diretor aproveitando uma oportunidade para tiranizar seus atores? Como devo reagir a esta súbita intervenção do autor na imagem? Se o cinema a partir da década de 60 de certa forma consagrou o autor como estrela, viu também o fenômeno paralelo da estrela que é ator-autor. Trata-se curiosamente de tema pouco discutido, provavelmente devido ao preconceito que surgiu em certos meios de se discutir a figura do ator. O supremo narcisismo de Charles Chaplin segue o primeiro (e maior) exemplo do autor-ator, assim como Orson Welles (o showman que odeia a própria imagem) permanece o paradoxo mais curioso dessa tendência. Desde os anos 60, os exemplos se multiplicam dos auto-retratos algo cômicos, de Jean-Luc Godard à serenidade com que Clint Eastwood contempla a lenta destruição do seu próprio corpo, passando por um experimento como O Filme de Nick, de Wenders/Ray.

Neste cenário, a obra de Jerry Lewis como diretor é fascinante. Quando passou para trás das câmeras com O Mensageiro Trapalhão, Lewis já tinha pouco mais de uma década como comediante popular, tendo um público cativo considerável. Nada mais natural, portanto, que ele montasse um veículo para sua persona cinematográfica. Só que Lewis radicaliza o processo ao optar por eliminar do fundo praticamente todos os elementos esperados, até ficar apenas com o essencial, ou seja, Jerry Lewis. O cineasta Lewis pratica aqui um esvaziamento completo do seu filme. O Mensageiro Trapalhão é o meu favorito entre os filmes de Lewis, mesmo que ele não tenha tantos momentos de experimento formal como veríamos em O Terror das Mulheres, O Professor Aloprado, O Otário e Uma Família Fuleira.

Estão aqui todos os elementos que marcariam o cinema posterior de Lewis: uma quase ausência de trama para ligar as gags, a figura do inocente bem intencionado em que ele já se especializara (e a sombra do famoso comediante sobre ela, a oposição destas duas figuras sendo o tema central de todos os filmes do período), a redução dos demais atores a meras escadas, o sofisticado trabalho com o espaço cênico. Só que em O Mensageiro Trapoalhão a trama esparsa inexiste de vez, os coadjuvantes são ainda mais marginais (incluindo a exclusão do habitual par romântico inexpressivo) e o espaço existe exclusivamente em função do corpo de Lewis. A matéria prima da qual é feito O Mensageiro Trapalhão é basicamente Jerry Lewis, o ator. Mais do que em qualquer outro dos seus trabalhos, o Lewis cineasta se adapta ao comediante. Trata-se de explorar o que o corpo de Lewis pode fazer: se relacionar com o espaço, com a câmera, se contorcer, tripudiar sobre quem mais dividir o quadro com ele. Neste exercício extremo de redução do cinema ao mínimo essencial, Lewis se nega até mesmo o direito à fala.

O Mensageiro Trapalhão funciona a partir de um dispositivo que poderia ser descrito como uma espécie de escultura filmada cujo objeto central é Lewis, o ator (ele parece funcionar como ponto de fuga do quadro mesmo quando o cineasta não o coloca nesta posição). Lewis já havia recebido excelente direção de Frank Tashlin, mas certamente ressentia de nos filmes de Tashlin existir como escada para sátira (vale lembrar que Lewis é um ególatra quase tão grande quanto Chaplin), e aqui ele dá a seu corpo a liberdade de existir sem mediação. O Mensageiro Trapalhão pouco significa, Lewis simplesmente atravessa o filme tropeçando numa esquete cômica atrás da outra. O único tema do filme é a figura concreta do seu ator-autor. A certa altura, a mascara cai e Lewis surge como si próprio e observamos o espetáculo de todo mecanismo do filme entrar em mutação para adaptar esta nova figura que partia do mesmo corpo que dominava o filme anterior. Nada mais justo. O Mensageiro Trapalhão é o tributo de Lewis cineasta para sua figura cinematográfica.


Filipe Furtado

(DVD Paramount)