24 HORAS
Joel Surnow e Robert Cochran, 24, EUA, 2000
(quarta temporada)

Fox: a quarta temporada estréia segunda-feira, dia 07de março, às 21h. Reprises: terças-feiras, 01h e sábados, 19h.


Jogo de Mascaras

Muito da força de 24 Horas nasce da oposição entre a matéria-prima - que pouco difere do que surge nos telejornais diariamente - e sua execução como um grande filme de ação hollywoodiano. De certa forma, o que a série de Joel Surnow e Robert Cochran realiza é uma operação onde a história americana recente se deixa tomar pela ficção num quase exorcismo pulp: a segunda - e melhor - temporada chegou até a arranjar espaço para reviver a tentativa de impeachment de Bill Clinton. Ao que tudo indica, os criadores da série deram sorte em lança-la no momento certo. Ela originalmente estava programada para estrear em setembro de 2001 e acabou sendo adiada por quase dois meses por conta de uma explosão de avião contida no primeiro episódio. Com o terrorismo se tornando tema central do imaginário americano, abriu-se uma porta que permitiu aos criadores da série dar sua forma particular para esse tema e o que mais lhes interessasse.

O melhor ponto de entrada para uma análise de 24 Horas é provavelmente a excelente atuação de Dennis Haysbert como o presidente americano. O personagem de Haysbert - e o ator claramente tem plena consciência disso - funciona como uma projeção daquilo que a maior parte dos espectadores tem como seu presidente ideal e certamente não é nenhum acidente a escalação de um ator negro, dada a força que a idéia tem junto ao imaginário da esquerda liberal americana. Ele é obviamente honesto, bem intencionado e ingênuo demais para existir, mas Haysbert consegue ao mesmo tempo torná-lo digno da crença do espectador e ressaltar características de sua personalidade que poderiam parecer inverossímeis. O presidente David Palmer é o maior realista político de ficção do audiovisual americano, o que ao mesmo tempo ajuda a estabelecer o tom de 24 Horas e valoriza a forma como a série o coloca constantemente diante de dilemas éticos sem saídas fáceis. Como Luiz Carlos Oliveira Junior escreveu aqui na revista em outra oportunidade, a teia dramatúrgica de 24 Horas coloca Palmer freqüentemente na posição de ter que impor sacrifícios - geralmente concretizados pelo protagonista Jack Bauer, interpretado por Kiefer Sutherland - em nome da segurança nacional. Paralelo as estas decisões complicadas (algumas duras mas claras, outras bem mais ambíguas), há todo um universo do gabinete presidencial, habitado por personagens capazes de motivações obscuras e atos de traição. O contraste entre estas duas situações, e mais ainda a forma como com freqüência elas se combinam numa só, muito enriquece o que é visto.

No outro extremo da trama, temos as aventuras mais movimentadas de Jack Bauer lidando com todo o tipo de terrorista, em cenas de ação estapafúrdias. Ao mesmo tempo, Bauer deve também se defrontar com alguns burocratas, que parecem agir sempre de forma a dificultar seu trabalho. Se a parte da trama em torno do presidente lembra mais um típico seriado de TV, a trama com Bauer – e a série tende a fazer com que estes dois lados corram em narrativas paralelas, de forma que Bauer e Palmer raramente se encontram – lembra mais um grande filme de ação (John McTiernan parece a maior influencia). Todas as técnicas desenvolvidas pelo cinemão americano durante anos são concentrados nos 45 minutos de cada episodio Estes dois tons - o mais brando na trama do presidente e o mais urgente e atribulado envolvendo Bauer - contrastam muito bem entre si e com os diferentes tipos de decisão que cada um deles precisa tomar. Enquanto as que envolvem o presidente são sempre indiretas, Bauer precisa freqüentemente ou por a si próprio em risco ou cometer algo contra sua própria vontade.

Um bom exemplo para nossa tese está num excelente episódio da terceira temporada, no qual um terrorista - que planeja lançar um ataque de armas químicas se uma série de exigências não forem cumpridas - exige que o presidente autorize a execução de Ryan Chapelle, burocrata de cargo superior a Jack. Tudo aqui trabalha em favor dos melhores elementos da série: a reação das partes (Palmer, Jack Bauer – que fica encarregado do serviço – e o pobre sujeito), a situação, a ação contra o relógio interessantemente valorizada pelo conhecimento do espectador de que ainda haverão outras sete horas até o desenlace da situação e que, portanto, qualquer tentativa de encerrá-la dentro do prazo dado para a execução está destinada ao fracasso. Somado a isso, temos a forma como a grande operação montada para localizar o terrorista (depois que uma pista falsa surge) contrasta com o drama ético mais íntimo dos protagonistas, influindo até mesmo na relação do espectador para com o provável morto, que até então funcionara ao longo dos três anos da série como fonte de irritação para Bauer, sempre impondo obstáculos a seu trabalho. É uma perfeita dramatização de uma situação sem possível desenlace positivo na qual o único porém é uma troca infeliz de diálogos próxima ao final, usada para estabelecer que o cara não tem família e amigos. Temos nesse episódio alguns dos 45 minutos mais intensos que o cinema ou televisão nos propiciaram em 2004.

De certa forma, este episódio é uma versão concentrada de muito do que ocorreu na excepcional segunda temporada da série, na qual Surnow e Cochran colocaram mais em primeiro plano o tema da responsabilidade, um dos eixos centrais da série. Toda a ação da segunda temporada podia ser resumida a pergunta: Como você agiria ao ser colocado numa posição onde se faz necessário torturar alguém para impedir a explosão de uma bomba atômica numa grande metrópole? No primeiro episódio, Bauer assassina um criminoso para garantir sua infiltração num grupo que pode levá-lo até a bomba. A seqüência é filmada de forma farsesca (poderia estar num filme de Tarantino) e mal se registra junto ao espectador. Entra em ação um dos recursos favoritos da série: o de usar elementos de gêneros como policial e espionagem para mascarar/desmacarar questões bastante sérias. O tom da temporada segue num crescendo dramático, até que lá pelos seus dois terços, Bauer se encontra com o terrorista que pode localizar a bomba e é posto na situação de ameaçar a família dele para conseguir a informação. Vemos por um monitor de TV o filho do terrorista sendo executado e a reação de horror do pai, que logo começa a contar tudo que sabe. Depois descobrimos que se tratou de uma encenação, mas no momento em que a assiste, o espectador é colocado na mesma posição do terrorista e o tom cada vez mais dramático da temporada faz com que realmente acreditemos que o "herói" possa realizar aquele ato, o que ele acabará por concretizar na terceira temporada. Muito da força com a qual é tratado o tema vem do reconhecimento por parte dos criadores da série de que, por mais que Bauer e o presidente possam justificar suas decisões pelas necessidades imediatas e pelo fato de estarem protegendo milhões de pessoas, ainda assim no dia seguinte terão que lidar com as conseqüências.

* * *

24 Horas tem sido muito elogiada por sua habilidade em dar vazão ficcional aos temores dos EUA nos tempos de George W. Bush, o que faz com que por vezes outros méritos da série sejam colocados em segundo plano. 24 Horas é um caso talvez único, dentro do formato episódico, de casamento bem sucedido de elementos cinematográficos com outros mais associados à TV. Os criadores da série assumem que apesar do formato de temporadas fechadas - de certa forma filmes de 16 horas - a trama é escrita no calor do momento, o que garante um tom de improviso e um dialogo com o espectador que demonstra ser freqüentemente fascinante. Temos assim, por vezes, o melhor do vigor cinematográfico que, de forma geral, desaparece no tom padronizado da direção de TV, associado a um tipo de relação com o espectador que somente algo produzido ao longo de anos permite.

A terceira temporada , em particular, foi marcada por uma considerável quantidade de riscos - que de certa forma resultaram numa maior irregularidade - incluindo uma radicalização da tendência das séries de TV em manter a trama em banho-maria por boa parte do tempo, com um interessante desvio pelo México. (É curioso observar como o espectador brasileiro reagiu tão mal a estes episódios quanto o americano). Temos também aquele talvez tenha sido o risco mais interessante: assumir a porção filme-desastre da série e depois virá-la contra si mesma. Durante mais da metade da tempo, somos colocados na posição de desejar que o pior - a liberação de um vírus mortal - ocorra e, depois que isso acontece, vemos a série gastar longas seqüências mostrando a extensão do estrago causado. Há em tudo isso um elemento de perverso operando em 24 Horas que a diferencia da maior parte do que encontramos atualmente, seja em cinema ou televisão.

Filipe Furtado

 

 



Kiefer Sutherland (Jack Bauer) e Elisha Cuthbert (Kim Bauer)