CONTRA-REGRA
coluna semanal de televisão

Da TV e dos corpos humanos – parte 2

"Escracha..." Essa é a palavra. É com ela que Wagner Montes (velho conhecido do espectador brasileiro) cultiva a estranha prática de apedrejamento vespertino e diário no programa Cidade Alerta: Rio da Rede Record. Com fotos de foragidos da polícia mostradas em uma grande tela de cristal líquido, Montes desfere diariamente uma coleção de comentários ofensivos para, segundo as palavras dele mesmo, "escrachar" com os "marginais". E aí se seguem comentários jocosos sobre as "orelhas de abano" de um acusado de estupro, o "nariz horrendo" de um assaltante, a "carranca" de um acusado de homicídio...O rosto desses "vilões", congeladas em primeiro plano e envoltas num efeito de eco que destaca cada insulto proferido, são transformados em espécies de Judas em sábado de aleluia, tendo suas feições ridicularizadas com requintes de crueldade, como objetos de uma suposta desforra pública diante do "facínora" da vez. Mais do que o conteúdo jornalístico meramente histérico, o que impressiona é a forma com que Montes transforma o rosto daqueles homens em artifícios para um exercício alegórico de vingança, como o perpetrador de uma catarse da covardia, diante da imagem congelada e passiva de faces humanas transformadas em espécies de alvos de dardos. No ponto alto do show, Montes imita um suposto assaltante em ação ("Perdeu, mané, perdeu!") para depois interromper a fala repentinamente com um último grito de gozo: "Escracha!..." O eco aparece, voltamos ao rosto do homem preso – uma longa gargalhada...entram os comerciais. E aí vem aquela pergunta, e eu a faço, antes de tudo, para não me deixar levar pelo hábito: um programa com um quadro desses, em alguma instância, tem a cara-de-pau de dizer que está lutando contra o crime e a violência no Rio de Janeiro?...


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Também sobre rostos humanos e "escrachos", me lembrei agora do cínico programa da Sony, intitulado Extreme Makover. Para quem não conhece, trata-se de um daqueles famigerados reality shows que infestam a falta de imaginação da TV fechada e aberta, e se caracteriza por acompanhar um mês na vida de uma pessoa que vai passar por "uma radical mudança em suas vidas". Por "mudança radical" leia-se cirurgia plástica e por "vida", leia-se seu corpo (em especial rosto e seios). Ao longo de episódios de uma hora, o espectador pode acompanhar os rostos, as pernas, os dentes e os seios de seus personagens sendo arrancados, cortados, puxados, esticados, substituídos – tudo em prol de um show de sacrifício-clínico como poucas vezes vistos na TV. Com uma estrutura melodramática das mais rasteiras, cada episódio se estrutura como um show de dores corporais seguidas de alívio, onde podemos acompanhar cada passo do calvário dos personagens: do momento dos cortes até a hora em que se tornam "pessoas mais felizes", sem deixar de lado os longos dias de corpos enfaixados, inchados, vermelhos, coagulados...Um fetiche notável e ao mesmo tempo uma repulsa pelos fluidos humanos, intercalando cenas explícitas de lágrimas, sangue e suor, pautadas todas num sentido de desafio a ser ultrapassado e mediano pelas mãos proto-mecânicas de especialistas com sorrisos largos e rostos ( prontos para estar no elenco de qualquer telenovela mexicana). É esse encontro da violência latente dos bisturis e essa atmosfera de plástico pré-moldado, que faz do programa um objeto televisivo dos mais bizarros em exibição, hoje.


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E para não perder o fio da meada, ou as pistas no caminho...Uma emissora de televisão da Arábia Saudita transmitiu na última 4a feira um comunicado ao vivo de um grupo de militantes palestinos que, protestando contra o Estado de Israel, expunham para as câmeras as mãos, os pés e outras partes do corpo de três soldados israelenses, apresentados como reféns simbólicos e irrevogáveis contra o poder do estado judeu. "Não devolveremos seus corpos", explicitavam as palavras dos homens mascarados, delimitando aqueles fragmentos de corpos não apenas como comprovação da morte do outro, mas como instrumentos para a batalha midiática. Mais importante do que ter matado o inimigo, era poder mostrá-lo dilacerado diante da TV. Vendo essas imagens, foi impossível não lembrar das fotos dos iraquianos humilhados por tropas norte-americanas. Me pareceu gritante a diferença nas formas como os dois lados dessa guerra militar-cultural lidam com a imagem de seus atos de crueldade: de um lado, os militantes palestinos transformando a violência em ato público, em alegoria para a possibilidade de sua resistência através da violência; de outro, a forma como os norte-americanos lidam de maneira pudica com as imagens de seus próprios atos. Os EUA tem por costume esconder os rastros da guerra, disfarçar sua sujeira (os corpos humanos destruídos). Os militantes muçulmanos tem por hábito a prática justamente do inverso, ou seja: da transformação de seus gestos de violação dos corpos do inimigo em atos abertos, como num teatro em que com cada um dos americanos mortos morreria também o TODO do inimigo.


Para os EUA e sua forma de mostrar-e-esconder a guerra, a violência e a morte dos inimigos aparecem sempre tratados como um problema a ser superado, um certo cinismo inerente ao ato de poderem fazer uma coisa enquanto se dizem "humanitariamente" contra aquilo. Os EUA se querem impelidos à guerra, matando como que por "obrigação", para a "manutenção da ordem". Os palestinos daquelas imagens pareciam fazer de sua guerra tudo menos um ato involuntário e incontornável; mas um ato afirmativo. De alguma forma os palestinos pareciam "saber" que na guerra hão de haver os mortos e os corpos humanos dilacerados; e não negavam isso. Os EUA (na figura de seu Estado), por outro lado, impressionam pela forma com que parecem querer acreditar/fingir que (no campo das idéias do estrategismo militar) seria possível uma guerra sem corpos, sem pedaços de pés decepados (e daí a crueldade das fotos tiradas no presídio da "coalisão" ganharem essa ressonância de "loucura", de "bizarrice sem fundamento" – reflexo de uma violência subterrânea, recalcada). De alguma forma, os EUA sonham poder acreditar numa guerra encenada por seres sem vida.


Na contra-mão desse desejo, a atrocidade da imagem dos palestinos mostrando pedaços de corpos israelenses (ao contrário do que um primeiro olhar poderia ler) parecia insinuar que talvez nesse ato limite de "barbárie", nesse show de horrores e carne humana em pedaços, havia sim um sentimento, uma intuição de valoração da vida do inimigo e que, de alguma forma, parecia mais perto de uma possibilidade de descoberta do lugar do outro e do reconhecimento da dor, da existência alheia do que nessa estranha frieza numérica e anticéptica da guerra dos norte-americanos. O primeiro movimento para o reconhecimento do Ser do inimigo, parecia passar justamente por esse processo de percebê-lo, tomá-lo em suas mãos, sujar-se dele...e honrá-lo enquanto símbolo (e troféu). Os EUA, noutro sentido, tornam-se tão mais cruéis quanto mais parecem poder acreditar que pode haver uma guerra sem que eles tenham sequer de sujar as mãos de sangue. Ou seja: uma guerra em que só se derrubam estátuas de bronze e palácios de areia... Como nos jogos de videogame, em que os corpos dos inimigos mortos desaparecem, se fundindo como fantasmas ao colorido do cenário.

Felipe Bragança

Textos da semanas anteriores:
Da TV e dos corpos humanos, parte 1 (por Felipe Bragança)
Violência da edição, edições da violência (por Felipe Bragança)
Fauna in concert: Tribos, Ayrton Senna, Monique Evans, João Kléber (por Francisco Guarnieri)
Repórter Cidadão: pouca cidadania, reportagem duvidosa (por Francisco Guarnieri)
Semana de carnaval (por Francisco Guarnieri)
A dona da verdade (por Felipe Bragança)
Mormaço (por Felipe Bragança)
Retrospectiva 2003 – Parte 2 (por Felipe Bragança)
Retrospectiva 2003 (por Felipe Bragança)
A Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos treze (por Roberto Cersósimo)
Algum começo... (por Felipe Bragança)
Uma novela de... (por Roberto Cersósimo)
O canal das mulheres, a cidade dos homens (por Felipe Bragança)
O fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo)
Televisão cidadã, cidadãos televisivos (por Felipe Bragança)