Da
TV e dos corpos humanos parte 2
"Escracha..."
Essa é a palavra. É com ela que Wagner
Montes (velho conhecido do espectador brasileiro) cultiva
a estranha prática de apedrejamento vespertino
e diário no programa Cidade Alerta: Rio
da Rede Record. Com fotos de foragidos da polícia
mostradas em uma grande tela de cristal líquido,
Montes desfere diariamente uma coleção
de comentários ofensivos para, segundo as palavras
dele mesmo, "escrachar" com os "marginais". E aí
se seguem comentários jocosos sobre as "orelhas
de abano" de um acusado de estupro, o "nariz horrendo"
de um assaltante, a "carranca" de um acusado de homicídio...O
rosto desses "vilões", congeladas em primeiro
plano e envoltas num efeito de eco que destaca cada
insulto proferido, são transformados em espécies
de Judas em sábado de aleluia, tendo suas feições
ridicularizadas com requintes de crueldade, como objetos
de uma suposta desforra pública diante do "facínora"
da vez. Mais do que o conteúdo jornalístico
meramente histérico, o que impressiona é
a forma com que Montes transforma o rosto daqueles homens
em artifícios para um exercício alegórico
de vingança, como o perpetrador de uma catarse
da covardia, diante da imagem congelada e passiva de
faces humanas transformadas em espécies de alvos
de dardos. No ponto alto do show, Montes imita um suposto
assaltante em ação ("Perdeu, mané,
perdeu!") para depois interromper a fala repentinamente
com um último grito de gozo: "Escracha!..." O
eco aparece, voltamos ao rosto do homem preso – uma
longa gargalhada...entram os comerciais. E aí
vem aquela pergunta, e eu a faço, antes de tudo,
para não me deixar levar pelo hábito:
um programa com um quadro desses, em alguma instância,
tem a cara-de-pau de dizer que está lutando contra
o crime e a violência no Rio de Janeiro?...
* * *
Também sobre rostos humanos e "escrachos", me
lembrei agora do cínico programa da Sony, intitulado
Extreme Makover. Para quem não conhece,
trata-se de um daqueles famigerados reality shows
que infestam a falta de imaginação da
TV fechada e aberta, e se caracteriza por acompanhar
um mês na vida de uma pessoa que vai passar por
"uma radical mudança em suas vidas". Por "mudança
radical" leia-se cirurgia plástica e por "vida",
leia-se seu corpo (em especial rosto e seios). Ao longo
de episódios de uma hora, o espectador pode acompanhar
os rostos, as pernas, os dentes e os seios de seus personagens
sendo arrancados, cortados, puxados, esticados, substituídos
– tudo em prol de um show de sacrifício-clínico
como poucas vezes vistos na TV. Com uma estrutura melodramática
das mais rasteiras, cada episódio se estrutura
como um show de dores corporais seguidas de alívio,
onde podemos acompanhar cada passo do calvário
dos personagens: do momento dos cortes até a
hora em que se tornam "pessoas mais felizes", sem deixar
de lado os longos dias de corpos enfaixados, inchados,
vermelhos, coagulados...Um fetiche notável e
ao mesmo tempo uma repulsa pelos fluidos humanos, intercalando
cenas explícitas de lágrimas, sangue e
suor, pautadas todas num sentido de desafio a ser ultrapassado
e mediano pelas mãos proto-mecânicas de
especialistas com sorrisos largos e rostos ( prontos
para estar no elenco de qualquer telenovela mexicana).
É esse encontro da violência latente dos
bisturis e essa atmosfera de plástico pré-moldado,
que faz do programa um objeto televisivo dos mais bizarros
em exibição, hoje.
* * *
E para não perder o fio da meada, ou as pistas
no caminho...Uma emissora de televisão da Arábia
Saudita transmitiu na última 4a feira
um comunicado ao vivo de um grupo de militantes palestinos
que, protestando contra o Estado de Israel, expunham
para as câmeras as mãos, os pés
e outras partes do corpo de três soldados israelenses,
apresentados como reféns simbólicos e
irrevogáveis contra o poder do estado judeu.
"Não devolveremos seus corpos", explicitavam
as palavras dos homens mascarados, delimitando aqueles
fragmentos de corpos não apenas como comprovação
da morte do outro, mas como instrumentos para a batalha
midiática. Mais importante do que ter matado
o inimigo, era poder mostrá-lo dilacerado diante
da TV. Vendo essas imagens, foi impossível não
lembrar das fotos dos iraquianos humilhados por tropas
norte-americanas. Me pareceu gritante a diferença
nas formas como os dois lados dessa guerra militar-cultural
lidam com a imagem de seus atos de crueldade: de um
lado, os militantes palestinos transformando a violência
em ato público, em alegoria para a possibilidade
de sua resistência através da violência;
de outro, a forma como os norte-americanos lidam de
maneira pudica com as imagens de seus próprios
atos. Os EUA tem por costume esconder os rastros da
guerra, disfarçar sua sujeira (os corpos humanos
destruídos). Os militantes muçulmanos
tem por hábito a prática justamente do
inverso, ou seja: da transformação de
seus gestos de violação dos corpos do
inimigo em atos abertos, como num teatro em que com
cada um dos americanos mortos morreria também
o TODO do inimigo.
Para os EUA e sua forma de mostrar-e-esconder a guerra,
a violência e a morte dos inimigos aparecem sempre
tratados como um problema a ser superado, um certo cinismo
inerente ao ato de poderem fazer uma coisa enquanto
se dizem "humanitariamente" contra aquilo. Os EUA se
querem impelidos à guerra, matando como que por
"obrigação", para a "manutenção
da ordem". Os palestinos daquelas imagens pareciam fazer
de sua guerra tudo menos um ato involuntário
e incontornável; mas um ato afirmativo. De alguma
forma os palestinos pareciam "saber" que na guerra hão
de haver os mortos e os corpos humanos dilacerados;
e não negavam isso. Os EUA (na figura de seu
Estado), por outro lado, impressionam pela forma com
que parecem querer acreditar/fingir que (no campo das
idéias do estrategismo militar) seria possível
uma guerra sem corpos, sem pedaços de pés
decepados (e daí a crueldade das fotos tiradas
no presídio da "coalisão" ganharem essa
ressonância de "loucura", de "bizarrice sem fundamento"
– reflexo de uma violência subterrânea,
recalcada). De alguma forma, os EUA sonham poder acreditar
numa guerra encenada por seres sem vida.
Na contra-mão desse desejo, a atrocidade da imagem
dos palestinos mostrando pedaços de corpos israelenses
(ao contrário do que um primeiro olhar poderia
ler) parecia insinuar que talvez nesse ato limite de
"barbárie", nesse show de horrores e carne humana
em pedaços, havia sim um sentimento, uma intuição
de valoração da vida do inimigo e que,
de alguma forma, parecia mais perto de uma possibilidade
de descoberta do lugar do outro e do reconhecimento
da dor, da existência alheia do que nessa estranha
frieza numérica e anticéptica da guerra
dos norte-americanos. O primeiro movimento para o reconhecimento
do Ser do inimigo, parecia passar justamente por esse
processo de percebê-lo, tomá-lo em suas
mãos, sujar-se dele...e honrá-lo enquanto
símbolo (e troféu). Os EUA, noutro sentido,
tornam-se tão mais cruéis quanto mais
parecem poder acreditar que pode haver uma guerra sem
que eles tenham sequer de sujar as mãos de sangue.
Ou seja: uma guerra em que só se derrubam estátuas
de bronze e palácios de areia... Como nos jogos
de videogame, em que os corpos dos inimigos mortos desaparecem,
se fundindo como fantasmas ao colorido do cenário.
Felipe Bragança
Textos
da semanas anteriores:
Da TV e dos corpos humanos,
parte 1 (por Felipe Bragança)
Violência
da edição, edições da violência
(por Felipe Bragança)
Fauna
in concert: Tribos, Ayrton Senna, Monique Evans, João
Kléber (por Francisco Guarnieri)
Repórter
Cidadão: pouca cidadania, reportagem duvidosa
(por Francisco Guarnieri)
Semana
de carnaval (por Francisco Guarnieri)
A
dona da verdade (por Felipe Bragança)
Mormaço
(por Felipe Bragança)
Retrospectiva
2003 Parte 2 (por Felipe Bragança)
Retrospectiva
2003 (por Felipe Bragança)
A
Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos
treze (por Roberto Cersósimo)
Algum
começo... (por Felipe Bragança)
Uma
novela de... (por Roberto Cersósimo)
O
canal das mulheres, a cidade dos homens (por Felipe
Bragança)
O
fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo)
Televisão cidadã, cidadãos televisivos
(por Felipe Bragança)
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