Da
TV e dos corpos humanos parte 1
A mina
O que é que passa pela cabeça de um repórter,
de um jornalista, de um diretor de televisão,
para colocar no ar, no Fantástico, imagens
detalhadas de bonecos (interpretando pessoas) sendo
seguidamente dilacerados por minas terrestres? Sob a
chancela precária da denúncia, "para
mostrar o poder de fogo dos traficantes" (a partir
da localização de equipamento semelhante
numa favela carioca), a reportagem promove um sádico
exercício de violência gratuita, mostrando
os pormenores dos efeitos da explosão das minas
sobre as pernas "do boneco" e querendo se
vender como jornalismo bem-intencionado. Explodir representações
de corpos humanos no horário nobre só
para esclarecer que "é esse o armamento
que está nas mãos dos traficantes"
é uma construção discursiva que
beira o terrorismo ou, em outra chave, o analfabetismo
audiovisual. E não me venham defender essa covardia
discursiva, essa apelação primária,
como tentativa de mostrar a "gravidade da situação".
A gravidade da situação se mostra (se
é que se mostra...), e se pensa, com menos covardia
e mais investigação. Ver as pernas do
boneco se despedaçar (em diversos ângulos)
e ficar imaginando os efeitos das minas em "corpos
de verdade" não me parece ter qualquer função
discursiva a não ser a de causar desconforto
no espectador. Dizendo estar retratando o "medo"
da população, a televisão se transforma,
em verdade, em seu principal meio de difusão
e cultivo. E, ainda pior, faz isso vestindo a carapuça
do "dever cumprido".
As minas
Mudando de assunto, mas sem sair de cima: Está
certo que a bundalização da televisão
brasileira alcançou níveis de monotonia
insuperáveis nos últimos 10 anos, mas
há algo de muito estranho nos contra-efeitos
que as reações negativas a ela, causaram.
Na última segunda-feira, Alexandre Frota foi
ao programa de João Kleber (na RedeTV!)
fazer propaganda de seus filmes pornôs e promover
um concurso que vai escolher a próxima moçoila
a ser filmada atuando com ele. Normal? Normal. Ou quase.
Há algo de muito bizarro na forma com que João
Kléber (e a direção de seu programa)
resolveram reciclar seu perfil (em parte para responder
às críticas ao suposto "baixo-nível"
de seus quadros), alcançando um resultado tão
esquizofrênico, quanto cínico:
Enquanto as moçoilas rebolavam no palco, diante
do olhar modorrento de senhoras de idade, o apresentador
(com seu novo modelito fashion e de "bom-gosto"
– uma certa negação ao perfil popularesco
de Silvio Santos) tecia comentários sobre a "importância
da indústria do cinema pornográfico",
sobre como o seu programa estava sendo de "vanguarda
e inteligente" ao colocar aquelas mulheres rebolando
semi-nuas diante das câmeras, e de como era essencial
entender que seu programa era "polêmico,
porém sério"... Peralá!...Mostrar
mulheres bonitas dançando e rebolando na televisão
(ou no cinema) é uma coisa ancestral. Erotismo,
sacanagem e sexo são elementos vivos do cotidiano
e não há nada de errado em sua exploração/invenção
via TV, mas tentar dar ao bom e velho pee-pee show
o tom de uma abordagem séria da questão
do mercado do audiovisual erótico, é outra
coisa. Talvez seja uma forma de sua audiência
de senhoras de família, aceitar bem o que estão
vendo (por seu "cunho sócio-jornalístico"),
enquanto seus maridos olham e apreendem o bumbum
das jovens modelos. Talvez. Mas o certo é que
cinismo tem limite. E esse discurso bombril da
"representatividade cultural" também.
(O Alexandre Frota é mais inteligente do que
isso).
* * *
E a pergunta da semana é:
Alguém ainda agüenta ver reconstituições
do acidente que matou Ayrton Senna?...
Felipe Bragança
Textos
da semanas anteriores:
Violência
da edição, edições da violência
(por Felipe Bragança)
Fauna
in concert: Tribos, Ayrton Senna, Monique Evans, João
Kléber (por Francisco Guarnieri)
Repórter
Cidadão: pouca cidadania, reportagem duvidosa
(por Francisco Guarnieri)
Semana
de carnaval (por Francisco Guarnieri)
A
dona da verdade (por Felipe Bragança)
Mormaço
(por Felipe Bragança)
Retrospectiva
2003 Parte 2 (por Felipe Bragança)
Retrospectiva
2003 (por Felipe Bragança)
A
Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos
treze (por Roberto Cersósimo)
Algum
começo... (por Felipe Bragança)
Uma
novela de... (por Roberto Cersósimo)
O
canal das mulheres, a cidade dos homens (por Felipe
Bragança)
O
fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo)
Televisão cidadã, cidadãos televisivos
(por Felipe Bragança)
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