Quando
a Contracampo opta por defender certos produtos industriais
hollywoodianos (como As Panteras Detonando ou
Exterminador do Futuro 3), geralmente os leitores
estranham num primeiro momento, mais acostumados (ou
quase viciados) a procurar suas informações
"críticas" sobre cinema em meios de comunicação
que tentam opor quase sempre conteúdo e forma,
ou mais diretamente diversão e reflexão.
Mais do que isso: quando se elogia um filme como o de
McG por conta de sua hiperexplosão de signos
e seus significados, e sua negação da
trama narrativa como obrigatoriedade de estrutura dramática,
o leitor pode discutir que se isso por si só
faz de uma obra um belo filme, trata-se de uma fórmula
que depende menos de quem a produz do que de que ela
simplesmente exista. Por isso mesmo, é oportuna
a estréia de Fúria em Duas Rodas,
para que voltemos ao filme de McG podendo opô-lo
a um filme que facilite a comparação com
ele.
Desde o primeiro plano deste Torque, o espectador
está avisado que não vai assistir um típico
produto hollywoodiano clássico, principalmente
porque o filme faz questão de chamar a atenção
para si mesmo e para sua realização em
cada fotograma projetado ao contrário
da regra sagrada da invisibilidade do processo de realização.
Não há no filme de Joseph Kahn um só
plano que não seja auto-consciente, sendo que
alguns beiram o mais radical abstracionismo cromático
e um esgarçamento quase completo do tecido do
cinema de ação. Kahn mistura a sua formação
em videoclipes com os clichês da publicidade,
e no meio do caminho presta sinceras homenagens à
estrutura dramática dos cartoons (melhor seria
dizer, dos mangás). Quando leva esta sua opção
ao máximo, como nas sequências do final
do filme, Kahn cria uma ópera audiovisual impossível
de ser negada no seu fascínio puramente estético
(especialmente na disputa entre as duas mulheres, onde
a inserção de marcas publicitárias
no cinema parece estar sendo satirizada, de tão
explorada; e na cena da perseguição final
pela cidade, onde todo resquício de lógica
ou leis da física são jogadas fora por
uma sequência que, de tão mexida em computador,
de fato parece mais um anime do que uma cena de ação
ao vivo).
Só que aí entra a diferença de
Kahn para McG: embora Kahn exercite este seu fascínio
pelo balé audiovisual, seu filme não parece
ter a clareza de propósito de Panteras Detonando.
Faltam a ele tanto o humor cáustico e referencial
de McG (nos momentos em que parece acreditar na seriedade
de seu filme seja pela trama, seja pelos personagens)
quanto a coragem de afrontar o espectador como o filme
das "meninas superpoderosas" fazia. Kahn está
mais preocupado em ser "cool" do que qualquer coisa,
e aí sátira e pretensão se misturam
demais, o que nunca acontecia em Panteras
que claramente não pretendia nada além
de se divertir (até mais do que divertir o espectador).
Já Kahn e o produtor Neal H. Moritz (que, não
custa lembrar, é o "dono" das séries Triplo
X e Velozes e Furiosos e desde já
se qualifica como a criança crescida que mais
gosta de destruir veículos e dirigir rápído
na Hollywood atual) parecem sempre dúbios quanto
ao material de que tratam: será que eles assumem
o caráter arquetípico e hiper-clichê
de todas as imagens que usam (cenas como a da chegada
ao circo dos motoqueiros, com as mulheres de biquínis
e camisetas molhadas, indicam que sim); ou será
que acreditam plenamente em alguma novidade que elas
tragam (as cenas de ação indicam isso)?
O que é fato indiscutível é que
Torque quer ser um filme cool por sua forma;
Panteras Detonando era cool pelo seu ar blasé,
distanciado e cínico com tudo a que se referia.
O mais estranho e possível é pensar nele
como mais uma adaptação do mercado a um
"confronto" com seu modelo: se Panteras deixava
nu o rei ao indicar uma completa saturação
dos modelos de filme de ação, ou de seu
tratamento audiovisual em pleno início do século
XXI, Torque parece pegar esta saturação
como dado para propôr nova ordenação
deste universo, novamente inserido nos modelos de produção
anterior (especialmente no seu diálogo com merchandising,
venda de estilo de vida, etc). Por isso, mesmo com vários
momentos isolados de inegável interesse, fica
o claro cheiro de passo atrás.
Eduardo Valente
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