PARALELAS E TRANSVERSAIS
Ligado em Você, de Bobby e Peter Farrelly
Quero Ficar com Polly, de John Hamburg


Stuck On You, EUA, 2003
Along Came Polly, EUA, 2003


Uma questão de autoria


Volta e meia reaparece a discussão sobre a validade da identificação de uma chamada "autoria" dentro do modelo de produção ultra-industrial hollywoodiano. Se por um lado parece uma discussão um tanto batida, é sempre bom ter em mãos dois filmes como os aqui discutidos para exemplificá-la tanto quanto seja possível.

Assim que termina Ligado em Você, o primeiro crédito a aparecer nas telas é auto-explicativo quanto a isso (até pela forma "contundente" com que aparece): "A Farrelly Brothers Film". Não há dúvida, como o filme já não deixava: estamos na presença de dois autênticos "autores" dentro do cinemão hollywoodiano atual. Como se fosse necessária qualquer outra prova, nos chega quase ao mesmo tempo este Quero Ficar com Polly: Polly, não custa lembrar, era a irmã da ovelha Dolly – portanto a clone da clone. O filme deste John Hamburg não difere muito: clonagem explícita, de terceira geração, resultando em um "frankenstein" disforme que, ao surgir na tela, nos faz ficar bastante preocupados com a continuidade das pesquisas científicas na área genética. Definitivamente, o DNA dos Farrelly não se copia com facilidade, muito menos por diluidores atrás do troco mais fácil.

Da mesma forma também são diluidores do trabalho dos irmãos os críticos que tentam enxergar neste novo filme deles um desvio rumo ao "politicamente correto" (que já se anunciaria no filme anterior, o de fato menos bem resolvido O Amor é Cego). Ora, compreender a obra dos Farrelly dentro de uma lógica pura e simples de um "mau gosto gratuito", do escatológico e do grotesco, do humor negro irresponsável, é nunca ter entendido os seus filmes – motivo pelo qual o tal Hamburg parece tentar copiar o que há de mais epitelial nos Farrelly anteriores (tendo Quem Vai Ficar com Mary como matriz principal, sem dúvida). O que os críticos mais rápidos (e rasteiros) querem sempre é "catalogar" os cineastas dentro de categorias estanques de fácil apreensão. Com isso, esperam que eles realizem para sempre os mesmos filmes – e ao invés de ler o que há de mais essencial e profundo (o conteúdo, o subtexto, a mise-en-scène) num trabalho, ficando nos índices mais óbvios deste.

Há que se considerar que, no quesito escatologia e mau gosto radicalizados (sempre enxergados, aliás, como uma proposta antes política – dentro do contexto audiovisual americano – do que irresponsável e "grosseirona", para manter o vocabulário das velhas matronas), os Farrelly encontraram em Eu, Eu Mesmo e Irene um ápice de realização que os colocava numa encruzilhada artística: afinal, o que há mais há para se fazer em termos de ousadia com este material? Estamos presos a esta fórmula? O Amor é Cego seria uma primeira resposta negativa a esta pergunta (assim como Osmosis Jones, aliás), com a grande qualidade de mostrar que eles não estavam acomodados, e queriam ousar de outras formas.

O que viria a seguir? Uma comédia sobre irmãos siameses. Para muitos, eu incluído aí, o prospecto era um pouco assustador: porque a premissa em si parecia extremamente arriscada em tornar os Farrelly reféns de si mesmos, ou melhor, da apreensão deles feita pela crítica quase em geral. Mas, se O Amor é Cego ainda não era um filme que funcionava plenamente dentro de novos critérios, este Ligado em Você vem reafirmar a força e a coerência da proposta de cinema dos cineastas.

E aonde está essa coerência e ousadia? Para começar, falemos do aspecto dramatúrgico. Ao tratar de um tema como este, só parecem haver duas opções: o humor rasgado e paródico, sem qualquer relação com a realidade (e por isso mesmo palatável); ou o dramalhão de TV para sábado à noite no Supercine. Claro que, estando a segunda opção completamente excluída do instrumental dos Farrelly, só restaria a primeira, certo? Errado. Os Farrelly mostram sua coragem ao construir uma terceira opção: uma comédia sim, muitas vezes rasgada sim, só que tendo por trás um trabalho cuidadoso de construção de personagens e de narrativa, nunca caindo no caminho simplista da comédia "surreal". Trata-se de um passo enormemente corajoso, justamente pela apreensão simplista que acaba acontecendo por parte de muitos: os Farrelly ficaram politicamente corretos. Ora, façam-me o favor: a sensibilidade ao humano, e acima de tudo à questão do "anormal" dentro do humano, sempre esteve no cinema deles. Só que eles não têm o menor medo de falar sério e rir-se, ao mesmo tempo, daquilo que não é "normal". No seu humor há uma aliança com o que vemos, ocasionalmente, em comediantes cegos ou paralíticos: eles conseguem rir como se fossem eles mesmos os donos das "anomalias", sem perder de vista o substrato humano. Fácil é rir de tudo, fácil é não querer admitir a graça; difícil é fazer como eles fazem: admitir que o que há de mais sério é engraçado também.

Logo no início do filme há uma cena quase discursiva sobre o que desejam os Farrelly com seu cinema: desafiar os que se consideram "normais" – a cena no restaurante dos irmãos siameses é potente com o confronto: "Who are the freaks?" Então, se os irmãos usam deficientes em inúmeros papéis (e na figuração, em número impressionante) nos seus filmes, nunca foi por achar graça de ridicularizá-los (como ficaria implícito em quem os acha "politicamente corretos" agora). Foi por achar politicamente importante colocá-los em cena – e se o fazem com os excessos como os deste filme, é para deixar bem claro como isso está completamente ausente nos outros filmes, no cinema como um todo. Se o círculo de amizades dos gêmeos siameses (eles mesmos os "golden boys" Matt Damon e Greg Kinnear) é formado por uma latina, uma chinesa e um negro, não se trata de corolário de "igualdade de representação de raças", mas sim da afirmação de que os diferentes precisam se afirmar por si, porque não adianta esperar a aceitação que virá dos outros. Não há nada de politicamente correto nisso, no máximo de político. Há que não se confundir as duas instâncias.

Politicamente incorreto, afinal, não é chutar a muleta do aleijado nem mostrar merda e esperma na tela – isso no cinema deles sempre foi sintoma, não motivação. Sacudir o "establishment", de dentro, é muito mais do que isso. É, por exemplo, colocar Cher (que, como todos os outros atores, mostra muita coragem no papel que assume – assim como Griffin Dunne ou Meryl Streep) interpretando a si mesma como uma "bitch" total, com C maiúsculo, como ela diz. Não somente rindo de si mesmos, mas rindo de tudo que aquelas personas representam no mundo audiovisual americano (citemos ainda o personagem do agente picareta de Seymour Cassell – ainda mais ácido e brilhante). O retrato do meio artístico (especialmente o televisivo, mas não somente) é o que há de mais radicalmente afrontoso neste filme – não por acaso no final os irmãos estão de volta no seu restaurante de meia-tigela, no seu "teatro comunitário". O filme faz a trajetória dourada do "sonho do artista" ao contrário – e termina onde começou.

No meio tempo, os Farrelly encenam algumas das melhores e mais sutis piadas do cinema recente. As piadas "grotescas" sempre foram a minoria no seu cinema, que é muito mais potente nos "one-liners" desconcertantes à la Groucho Marx, ou nas piadas de entrelinhas. De fato, os irmãos são raros mestres em três tipos de humor que dominam igualmente: o da piada fácil e sem noção, onde o que surpreende é "até onde eles irão" (citemos a luta entre os irmãos siameses, ou a mexida digital na bunda de Cher); o da piada inesperada, cuja graça vem do completo inesperado de sua inserção (como o da frase "We lost them" dita no hospital no pós-operatório, na cena da fantasia de urso de pelúcia ou na encenação do musical no final); mas, principalmente (e como este humor é muito mais sutil é aquele que os críticos raramente notam), o humor proveniente da mise-en-scène, o humor puramente cinematográfico. Em Ligado em Você há uma passagem em especial que ajuda a deixar muito claro o domínio dos irmãos deste humor: a da filmagem da série de TV que tenta "esconder" o irmão siamês que não é ator. Se ali está tematizado o enquadramento como fonte de humor, os irmãos Farrelly jogam com isso o tempo todo: nos planos e contra planos com os irmãos siameses, nos discretos reenquadramentos ou exclusões do quadro que criam graça por si mesmos, no trabalho de todos os elementos constitutivos da cena e da montagem (onde se destaque o trabalho dos atores, em especial o exuberante humor de Greg Kinnear neste filme – histriônico e sutil em todas as cenas). A graça dos Farrelly passa longe de ser exclusiva de um "mau gosto": é humor de construção sofisticada sem nunca deixar de ser incômodo e radical, sem medo de usar todas as ferramentas independente de quem será atingido por elas (establishment ou mesmo o público).

Seu domínio do humor e da linguagem do cinema (que pode ser visto ainda em coisas simples como o trabalho dos flashbacks ou a filmagem do musical no final) se juntam neste filme a um cuidadoso trabalho de roteiro. O que é ainda mais surpreendente num filme que corria o risco muito grande de se refugiar na já citada facilidade do surrealismo, ou na repetição de uma mesma piada. O filme supera todas as expectativas criando uma trama e personagens (cuja chave humorística radical nunca os retira da condição humana) que permitem que, por exemplo, num determinado momento o filme seja sobre o incômodo dos primeiros encontros amorosos – deixando quase totalmente de lado as piadas com a condição física dos irmãos e indo tratar de suas características de personalidade. Da mesma forma, quando se introduz no final a questão da cirurgia para separação dos irmãos, todo o trabalho do roteiro, dos atores e da direção não fogem do humor nem da seriedade da situação. Cineastas menores se refugiariam num modelo "Shrek", onde os "freaks" defendem sua existência, mas no final só continuam felizes ao negar sua condição como tal; ou, por outra, fariam uma defesa tola da alegria extrema de se afirmar como os "freaks", querendo ignorar as dores deste processo. Os Farrelly não: os irmãos se operam, se separam, mas só encontram a tranquilidade ao conseguirem ver que nem um nem outro são a solução. Estar grudado é melhor muitas vezes, estar separado em outras: o resto é maniqueísmo. E se o cinema dos Farrelly é sobre algo, seria isso: estar vivo, ser humano, nunca é simplista. É hilário, ridículo, e sublime ao mesmo tempo. Não aceita categoria, separações, nem regras morais inúteis. Desafiar as convenções – da sociedade, e do cinema mesmo.

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Também é ato político, nem um pouco inconsciente, deixar para o rodapé dos Farrelly o comentário sobre o filme de John Hamburg: é onde ele merece estar. Se os Farrelly só entendem o cinema deles como um de incômoda e inderrubável resistência aos modelos sociais e de cinema, Hamburg faz cinema de outra cepa. Não há em Quero Ficar com Polly um só plano cuja mise-en-scène não seja toda errada – não apenas óbvia, mas muito pior, pois nem o mais óbvio do humor ela consegue filmar a contendo. A câmera parece estar sempre no lugar errado, os cortes no pior dos tempos (a cena de sexo é horrenda, as de dança de salsa mais ainda), os atores no ápice do desinteresse ou da repetição mecânica daquilo que já fizeram antes (em Ben Stiller isso é especialmente claro). As cenas "grosseiras", que tentam emular um cinema dos Farrelly pelo que há de mais óbvio, não entendem que não há piada sem contexto – e aqui elas soam absurdamente deslocadas e não-orgânicas, numa história absolutamente banal, conservadora e repetitiva. Uma comédia romântica igual a qualquer outra (na verdade pior), com direito a "reconciliações redentoras", psicologismos baratos (o discurso paterno no final é constrangedor), obviedades dramatúrgicas (não basta o cara ser "travado", ele tem que ser um profissional de medição de riscos,etc), etc. Mais do mesmo que tenta, desesperadamente, colar alguma "novidade" a si, buscando adesivos de outros lugares: não só o "suposto" humor dos Farrelly (porque deles nada há aqui), mas também de outros filmes como Entrando numa Fria ou Zoolander; personas da TV como a Debra Messing de Will & Grace; atores de "qualidade" (como o cada vez mais pastiche-de-si-mesmo Philip Seymour Hoffman); ou ainda atores "deslocados" (não é por acaso que Bryan Brown e Alec Baldwin nunca fizeram comédias: eles não sabem mesmo). Que a repetição, o clone deformado, faça mais sucesso que o original, ora, isso é natural: o clone foi criado para ser bem aceito, o original para incomodar.


Eduardo Valente