Uma questão de autoria
Volta e meia reaparece a discussão sobre a validade
da identificação de uma chamada "autoria"
dentro do modelo de produção ultra-industrial
hollywoodiano. Se por um lado parece uma discussão
um tanto batida, é sempre bom ter em mãos
dois filmes como os aqui discutidos para exemplificá-la
tanto quanto seja possível.
Assim que termina Ligado em Você, o primeiro
crédito a aparecer nas telas é auto-explicativo
quanto a isso (até pela forma "contundente" com
que aparece): "A Farrelly Brothers Film". Não
há dúvida, como o filme já não
deixava: estamos na presença de dois autênticos
"autores" dentro do cinemão hollywoodiano atual.
Como se fosse necessária qualquer outra prova,
nos chega quase ao mesmo tempo este Quero Ficar com
Polly: Polly, não custa lembrar, era a irmã
da ovelha Dolly portanto a clone da clone. O
filme deste John Hamburg não difere muito: clonagem
explícita, de terceira geração,
resultando em um "frankenstein" disforme que, ao surgir
na tela, nos faz ficar bastante preocupados com a continuidade
das pesquisas científicas na área genética.
Definitivamente, o DNA dos Farrelly não se copia
com facilidade, muito menos por diluidores atrás
do troco mais fácil.
Da mesma forma também são diluidores do
trabalho dos irmãos os críticos que tentam
enxergar neste novo filme deles um desvio rumo ao "politicamente
correto" (que já se anunciaria no filme anterior,
o de fato menos bem resolvido O Amor é Cego).
Ora, compreender a obra dos Farrelly dentro de uma lógica
pura e simples de um "mau gosto gratuito", do escatológico
e do grotesco, do humor negro irresponsável,
é nunca ter entendido os seus filmes motivo
pelo qual o tal Hamburg parece tentar copiar o que há
de mais epitelial nos Farrelly anteriores (tendo Quem
Vai Ficar com Mary como matriz principal, sem dúvida).
O que os críticos mais rápidos (e rasteiros)
querem sempre é "catalogar" os cineastas dentro
de categorias estanques de fácil apreensão.
Com isso, esperam que eles realizem para sempre os mesmos
filmes e ao invés de ler o que há
de mais essencial e profundo (o conteúdo, o subtexto,
a mise-en-scène) num trabalho, ficando nos índices
mais óbvios deste.
Há que se considerar que, no quesito escatologia
e mau gosto radicalizados (sempre enxergados, aliás,
como uma proposta antes política dentro
do contexto audiovisual americano do que irresponsável
e "grosseirona", para manter o vocabulário das
velhas matronas), os Farrelly encontraram em Eu,
Eu Mesmo e Irene um ápice de realização
que os colocava numa encruzilhada artística:
afinal, o que há mais há para se fazer
em termos de ousadia com este material? Estamos presos
a esta fórmula? O Amor é Cego seria
uma primeira resposta negativa a esta pergunta (assim
como Osmosis Jones, aliás), com a grande
qualidade de mostrar que eles não estavam acomodados,
e queriam ousar de outras formas.
O que viria a seguir? Uma comédia sobre irmãos
siameses. Para muitos, eu incluído aí,
o prospecto era um pouco assustador: porque a premissa
em si parecia extremamente arriscada em tornar os Farrelly
reféns de si mesmos, ou melhor, da apreensão
deles feita pela crítica quase em geral. Mas,
se O Amor é Cego ainda não era
um filme que funcionava plenamente dentro de novos critérios,
este Ligado em Você vem reafirmar a força
e a coerência da proposta de cinema dos cineastas.
E aonde está essa coerência e ousadia?
Para começar, falemos do aspecto dramatúrgico.
Ao tratar de um tema como este, só parecem haver
duas opções: o humor rasgado e paródico,
sem qualquer relação com a realidade (e
por isso mesmo palatável); ou o dramalhão
de TV para sábado à noite no Supercine.
Claro que, estando a segunda opção completamente
excluída do instrumental dos Farrelly, só
restaria a primeira, certo? Errado. Os Farrelly mostram
sua coragem ao construir uma terceira opção:
uma comédia sim, muitas vezes rasgada sim, só
que tendo por trás um trabalho cuidadoso de construção
de personagens e de narrativa, nunca caindo no caminho
simplista da comédia "surreal". Trata-se de um
passo enormemente corajoso, justamente pela apreensão
simplista que acaba acontecendo por parte de muitos:
os Farrelly ficaram politicamente corretos. Ora, façam-me
o favor: a sensibilidade ao humano, e acima de tudo
à questão do "anormal" dentro do humano,
sempre esteve no cinema deles. Só que eles não
têm o menor medo de falar sério e rir-se,
ao mesmo tempo, daquilo que não é "normal".
No seu humor há uma aliança com o que
vemos, ocasionalmente, em comediantes cegos ou paralíticos:
eles conseguem rir como se fossem eles mesmos os donos
das "anomalias", sem perder de vista o substrato humano.
Fácil é rir de tudo, fácil é
não querer admitir a graça; difícil
é fazer como eles fazem: admitir que o que há
de mais sério é engraçado também.
Logo no início do filme há uma cena quase
discursiva sobre o que desejam os Farrelly com seu cinema:
desafiar os que se consideram "normais" a cena
no restaurante dos irmãos siameses é potente
com o confronto: "Who are the freaks?" Então,
se os irmãos usam deficientes em inúmeros
papéis (e na figuração, em número
impressionante) nos seus filmes, nunca foi por achar
graça de ridicularizá-los (como ficaria
implícito em quem os acha "politicamente corretos"
agora). Foi por achar politicamente importante colocá-los
em cena e se o fazem com os excessos como os
deste filme, é para deixar bem claro como isso
está completamente ausente nos outros filmes,
no cinema como um todo. Se o círculo de amizades
dos gêmeos siameses (eles mesmos os "golden boys"
Matt Damon e Greg Kinnear) é formado por uma
latina, uma chinesa e um negro, não se trata
de corolário de "igualdade de representação
de raças", mas sim da afirmação
de que os diferentes precisam se afirmar por si, porque
não adianta esperar a aceitação
que virá dos outros. Não há nada
de politicamente correto nisso, no máximo de
político. Há que não se confundir
as duas instâncias.
Politicamente incorreto, afinal, não é
chutar a muleta do aleijado nem mostrar merda e esperma
na tela isso no cinema deles sempre foi sintoma,
não motivação. Sacudir o "establishment",
de dentro, é muito mais do que isso. É,
por exemplo, colocar Cher (que, como todos os outros
atores, mostra muita coragem no papel que assume
assim como Griffin Dunne ou Meryl Streep) interpretando
a si mesma como uma "bitch" total, com C maiúsculo,
como ela diz. Não somente rindo de si mesmos,
mas rindo de tudo que aquelas personas representam no
mundo audiovisual americano (citemos ainda o personagem
do agente picareta de Seymour Cassell ainda mais
ácido e brilhante). O retrato do meio artístico
(especialmente o televisivo, mas não somente)
é o que há de mais radicalmente afrontoso
neste filme não por acaso no final os
irmãos estão de volta no seu restaurante
de meia-tigela, no seu "teatro comunitário".
O filme faz a trajetória dourada do "sonho do
artista" ao contrário e termina onde começou.
No meio tempo, os Farrelly encenam algumas das melhores
e mais sutis piadas do cinema recente. As piadas "grotescas"
sempre foram a minoria no seu cinema, que é muito
mais potente nos "one-liners" desconcertantes à
la Groucho Marx, ou nas piadas de entrelinhas. De fato,
os irmãos são raros mestres em três
tipos de humor que dominam igualmente: o da piada fácil
e sem noção, onde o que surpreende é
"até onde eles irão" (citemos a luta entre
os irmãos siameses, ou a mexida digital na bunda
de Cher); o da piada inesperada, cuja graça vem
do completo inesperado de sua inserção
(como o da frase "We lost them" dita no hospital no
pós-operatório, na cena da fantasia de
urso de pelúcia ou na encenação
do musical no final); mas, principalmente (e como este
humor é muito mais sutil é aquele que
os críticos raramente notam), o humor proveniente
da mise-en-scène, o humor puramente cinematográfico.
Em Ligado em Você há uma passagem
em especial que ajuda a deixar muito claro o domínio
dos irmãos deste humor: a da filmagem da série
de TV que tenta "esconder" o irmão siamês
que não é ator. Se ali está tematizado
o enquadramento como fonte de humor, os irmãos
Farrelly jogam com isso o tempo todo: nos planos e contra
planos com os irmãos siameses, nos discretos
reenquadramentos ou exclusões do quadro que criam
graça por si mesmos, no trabalho de todos os
elementos constitutivos da cena e da montagem (onde
se destaque o trabalho dos atores, em especial o exuberante
humor de Greg Kinnear neste filme histriônico
e sutil em todas as cenas). A graça dos Farrelly
passa longe de ser exclusiva de um "mau gosto": é
humor de construção sofisticada sem nunca
deixar de ser incômodo e radical, sem medo de
usar todas as ferramentas independente de quem será
atingido por elas (establishment ou mesmo o público).
Seu domínio do humor e da linguagem do cinema
(que pode ser visto ainda em coisas simples como o trabalho
dos flashbacks ou a filmagem do musical no final) se
juntam neste filme a um cuidadoso trabalho de roteiro.
O que é ainda mais surpreendente num filme que
corria o risco muito grande de se refugiar na já
citada facilidade do surrealismo, ou na repetição
de uma mesma piada. O filme supera todas as expectativas
criando uma trama e personagens (cuja chave humorística
radical nunca os retira da condição humana)
que permitem que, por exemplo, num determinado momento
o filme seja sobre o incômodo dos primeiros encontros
amorosos deixando quase totalmente de lado as
piadas com a condição física dos
irmãos e indo tratar de suas características
de personalidade. Da mesma forma, quando se introduz
no final a questão da cirurgia para separação
dos irmãos, todo o trabalho do roteiro, dos atores
e da direção não fogem do humor
nem da seriedade da situação. Cineastas
menores se refugiariam num modelo "Shrek", onde os "freaks"
defendem sua existência, mas no final só
continuam felizes ao negar sua condição
como tal; ou, por outra, fariam uma defesa tola da alegria
extrema de se afirmar como os "freaks", querendo ignorar
as dores deste processo. Os Farrelly não: os
irmãos se operam, se separam, mas só encontram
a tranquilidade ao conseguirem ver que nem um nem outro
são a solução. Estar grudado é
melhor muitas vezes, estar separado em outras: o resto
é maniqueísmo. E se o cinema dos Farrelly
é sobre algo, seria isso: estar vivo, ser humano,
nunca é simplista. É hilário, ridículo,
e sublime ao mesmo tempo. Não aceita categoria,
separações, nem regras morais inúteis.
Desafiar as convenções da sociedade,
e do cinema mesmo.
* * *
Também é ato político, nem um pouco
inconsciente, deixar para o rodapé dos Farrelly
o comentário sobre o filme de John Hamburg: é
onde ele merece estar. Se os Farrelly só entendem
o cinema deles como um de incômoda e inderrubável
resistência aos modelos sociais e de cinema, Hamburg
faz cinema de outra cepa. Não há em Quero
Ficar com Polly um só plano cuja mise-en-scène
não seja toda errada não apenas
óbvia, mas muito pior, pois nem o mais óbvio
do humor ela consegue filmar a contendo. A câmera
parece estar sempre no lugar errado, os cortes no pior
dos tempos (a cena de sexo é horrenda, as de
dança de salsa mais ainda), os atores no ápice
do desinteresse ou da repetição mecânica
daquilo que já fizeram antes (em Ben Stiller
isso é especialmente claro). As cenas "grosseiras",
que tentam emular um cinema dos Farrelly pelo que há
de mais óbvio, não entendem que não
há piada sem contexto e aqui elas soam
absurdamente deslocadas e não-orgânicas,
numa história absolutamente banal, conservadora
e repetitiva. Uma comédia romântica igual
a qualquer outra (na verdade pior), com direito a "reconciliações
redentoras", psicologismos baratos (o discurso paterno
no final é constrangedor), obviedades dramatúrgicas
(não basta o cara ser "travado", ele tem que
ser um profissional de medição de riscos,etc),
etc. Mais do mesmo que tenta, desesperadamente, colar
alguma "novidade" a si, buscando adesivos de outros
lugares: não só o "suposto" humor dos
Farrelly (porque deles nada há aqui), mas também
de outros filmes como Entrando numa Fria ou Zoolander;
personas da TV como a Debra Messing de Will &
Grace; atores de "qualidade" (como o cada vez mais
pastiche-de-si-mesmo Philip Seymour Hoffman); ou ainda
atores "deslocados" (não é por acaso que
Bryan Brown e Alec Baldwin nunca fizeram comédias:
eles não sabem mesmo). Que a repetição,
o clone deformado, faça mais sucesso que o original,
ora, isso é natural: o clone foi criado para
ser bem aceito, o original para incomodar.
Eduardo Valente
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