RIO DE JANO
Ana Azevedo, Eduardo Souza Lima e Renata Baldi, Idem, Brasil, 2003

O Rio de Janeiro não é apenas cenário destacado do cinema brasileiro, mas espaço geográfico onde muitos
personagens afirmam um estilo de vida, o carioca, voltado para o prazer e para o drible nas dificuldades. Esse cariocismo expresso nas telas quase sempre celebra as maravilhas naturais e a vitalidade humana da cidade, com homens cheios de ginga na abordagem das mulheres e mulheres cheias de molejo ao serem abordadas pelos homens. Essa identidade do carioca que sabe viver é vinculada sobretudo à Zona Sul, com seus bares barulhentos, praias infestadas de corpos esculturais, de se desenrolam as azarações e as dores dos amores, tema principal dessa vertente ensolarada da produção. Mas nem tudo é Pão de Açúcar e Arpoador. Também há um outro Rio muito filmado pelas câmeras, o do morro e das favelas, no qual os conflitos afetivos dão lugar aos confrontos armados. Na maioria dos casos, esses opostos não se cruzam, ou, quando fazem esquina um com o outro, a intersecção é exposta de forma dicotômica. Predomina a idéia de uma cidade partida, mostrada por um ângulo, pelo outro ou pelo choque de um contra o outro.

Nesse sentido, Rio de Jano, é uma novidade. Ao acompanhar o cartunista francês Jano, durante uma de suas passagens pela cidade, o trio de realizadores apóia-se no olhar estrangeiro para, sempre mediados por seus próprios olhares da gema, revelarem a multiplicidade do Rio e da carioquice. Vemos uma cidade cerzida, heterogênea, composta de Pão de Açúcar e de Maracanã, mas também de São Cristovão e Madureira, de terreiro de umbanda e de porão de rock, de feira cultural em Laranjeiras e das ladeiras do Vidigal, de roda de samba em botquim e de show de funk em Rio das Pedras. Faz-se assim uma desmistificação de um carioquismo redutor e às vezes calhorda, arrotado por alguns filmes em uma afirmação de superiodade regionalista montada como um discurso de convencimento de carioca para carioca. Em Rio de Jano, não há essa auto-afirmação. A identidade da cidade e dos moradores está nos ambientes e nas pessoas, na forma de falar e no humor, na falta de formalidade para ser sincero sem deixar de ser cordial. A cidade fala por si sem precisar ninguém dela falar por ela. O Rio e o carioca surge naturalmente sem ser tematizado.

Jano interage com a cidade e seus moradores enquanto colhe referenciais para seus desenhos. Encanta-se com o culto à bunda das popozudas, fica fascinado com as cores do Flamengo, toca gaita em show de rock. Acha curioso e engraçado que, em um país de proporções gigantescas, há fixação por dimitivos. "O que são cinco minutinhos? Minutos de 50 segundos"?, pergunta e ri. Guiando-se pelas impressões dele sobre lugares visitados por escolha da produção, os realizadores usam o olhar de fora para olhar melhor para seu próprio meio. A capacidade de observação de sutilezas de Jano, seja nos desenhos, sejam em suas entrevistas, é refletida pelas imagens do filme, seja na decupagem da riqueza gráfica de cada trabalho, seja na colocação da câmera em determinados locais. Por ser tão harmônica a integração do observador no universo oservado, o filme cai quando abandona o Rio e fecha foco em Jano. Talvez seja um procedimento necessário, conceitualmente, para melhor situar o espectador em relação ao artista, mas, coerência à parte e sendo coerente com o título, Rio de Jano é bom mesmo quando Jano funde-se ao Rio. Poucas vezes o cinema filmou a cidade com tanto afeto e sem folclorizações/mistificações como nessa surpreendente obra de estreantes em longa-metragem.


Cléber Eduardo