O
plano que abre Encontros e Desencontros poderia
ter saído diretamente do filme anterior de Sofia
Coppola: um corpo feminino visto de costas, deitado
de lado e imóvel, trajando apenas uma camiseta
e calcinhas; uma imagem-síntese, de intimidade
e de forte teor melancólico tão peculiar
e característico de As Virgens Suicidas.
Se podemos resumir o filme de estréia de Coppola
a um estudo sobre alienação, costumes
e fantasias adolescentes, com evidente entrega pessoal,
fica claro que seu segundo filme segue desde o início
uma mesma matriz, um mesmo princípio de investigação.
Enquanto As Virgens Suicidas evoca todo um universo
de personagens, com regras particulares e dramaturgia
mais fechada, Encontros e Desencontros é
um filme mais aberto, propenso à contaminação,
cuja dramaturgia nasce sobretudo da mise-en-scéne.
Encontros institui, como princípio, uma
espécie de laboratório de livre criação,
de construção de espaços e ritmos
que permitam aos atores alçarem vôos livres;
Mais que um estudo de personagens (Coppola evita a psicologia,
a "profundidade"), um estudo de atores.
A premissa é estabelecida nos primeiros minutos:
vemos um astro americano de filmes de ação
(Bill Murray) observando pela janela de um táxi
as ruas de Tóquio, onde chega para filmar uma
campanha comercial de uma marca local de uísque;
alternadamente, vemos uma jovem recém-casada
(Scarlett Johanson) enfrentando o tédio num quarto
de hotel graças à ausência do marido
fotógrafo (Giovanni Ribisi). Deste fiapo de trama
de fato, menos uma trama que um ponto de partida
, Coppola passa a tecer uma longa série
de variações sobre um tema: multiplicam-se
situações de deslocamento, de solidão,
de não-pertencimento.
Se com Johanson Coppola insiste em imagens típicas
de alienação urbana, (nacos de tempo morto
sobrepondo seu corpo aos prédios que ela observa
pela janela de seu quarto e passeios sem direção
pelas ruas da cidade), é em Murray que a diretora
deposita o maior investimento. Murray teve pouquíssimas
chances de fazer o protagonista nos filmes que realizou
ao longo da carreira; ainda mais raros são aqueles
que procuraram extrair mais dele que o repertório
habitual de expressões faciais. Em Coppola, Murray
encontrou não apenas uma diretora que lhe tenha
presenteado com toda uma vasta possibilidade de diferentes
registros (não apenas cômicos), mas uma
que soube filmá-lo como nenhum outro. É
impossível imaginar Encontros e Desencontros
sem Murray; ele é toda a razão de ser
do filme.
Coppola extrai do ator a disposição de
atuar em um incontável elenco de situações
cômicas: do mais delirante registro físico
(as sequências da piscina, da sala de ginástica,
da massagista) à observação mais
detida do rosto e das expressões (as sequências
em que assiste TV no quarto, a sessão de fotos),
passando pelo desacerto com os gadgets, à
maneira de Tati (os ruídos emitidos pelo celular,
pelo aparelho de fax e pelos aparelhos de ginástica),
Murray encontra espaço para desenvolver uma personagem
absolutamente adorável, palpável em sua
fragilidade e desespero mudo.
Previsivelmente, as narrativas convergem no encontro
das personagens, dando início ao relato das aventuras
dos dois pelas noites de Tóquio. A partir daí,
o registro muda sutilmente, explorando as mais diversas
modalidades de relacionamento entre os dois, instituindo
um equilíbrio sempre precário. A riqueza
desta segunda parte de Encontros e Desencontros
está em nunca encerrar este relacionamento em
qualquer modo definitivo; Coppola realiza um estudo
sobre a distância e a proximidade dos corpos,
à maneira do Cassavetes de Gloria, explorando
a cada novo momento diferentes e ricas nuances, reinventando
a relação com cada mudança de comportamento.
Há cargas e cargas de emoção depositadas
num simples toque, numa troca de olhares, num abraço,
num aperto de mão.
Encontros e Desencontros é um filme lindamente
imperfeito; seus momentos mais belos são fugidios,
produtos da mais pura simplicidade e do risco. Sofia
Coppola parece evitar a todo custo uma estratégia
ou cálculo; seu programa é outro: deixar
as coisas aconterem e encontrar a melhor maneira de
filmá-las. Não há modo mais feliz
de filmar a matéria humana.
Fernando Veríssimo
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