ENCONTROS E DESENCONTROS
Sofia Coppola, Lost In Translation, EUA, 2003

O plano que abre Encontros e Desencontros poderia ter saído diretamente do filme anterior de Sofia Coppola: um corpo feminino visto de costas, deitado de lado e imóvel, trajando apenas uma camiseta e calcinhas; uma imagem-síntese, de intimidade e de forte teor melancólico tão peculiar e característico de As Virgens Suicidas. Se podemos resumir o filme de estréia de Coppola a um estudo sobre alienação, costumes e fantasias adolescentes, com evidente entrega pessoal, fica claro que seu segundo filme segue desde o início uma mesma matriz, um mesmo princípio de investigação.
Enquanto As Virgens Suicidas evoca todo um universo de personagens, com regras particulares e dramaturgia mais fechada, Encontros e Desencontros é um filme mais aberto, propenso à contaminação, cuja dramaturgia nasce sobretudo da mise-en-scéne. Encontros institui, como princípio, uma espécie de laboratório de livre criação, de construção de espaços e ritmos que permitam aos atores alçarem vôos livres; Mais que um estudo de personagens (Coppola evita a psicologia, a "profundidade"), um estudo de atores.

A premissa é estabelecida nos primeiros minutos: vemos um astro americano de filmes de ação (Bill Murray) observando pela janela de um táxi as ruas de Tóquio, onde chega para filmar uma campanha comercial de uma marca local de uísque; alternadamente, vemos uma jovem recém-casada (Scarlett Johanson) enfrentando o tédio num quarto de hotel graças à ausência do marido fotógrafo (Giovanni Ribisi). Deste fiapo de trama – de fato, menos uma trama que um ponto de partida –, Coppola passa a tecer uma longa série de variações sobre um tema: multiplicam-se situações de deslocamento, de solidão, de não-pertencimento.

Se com Johanson Coppola insiste em imagens típicas de alienação urbana, (nacos de tempo morto sobrepondo seu corpo aos prédios que ela observa pela janela de seu quarto e passeios sem direção pelas ruas da cidade), é em Murray que a diretora deposita o maior investimento. Murray teve pouquíssimas chances de fazer o protagonista nos filmes que realizou ao longo da carreira; ainda mais raros são aqueles que procuraram extrair mais dele que o repertório habitual de expressões faciais. Em Coppola, Murray encontrou não apenas uma diretora que lhe tenha presenteado com toda uma vasta possibilidade de diferentes registros (não apenas cômicos), mas uma que soube filmá-lo como nenhum outro. É impossível imaginar Encontros e Desencontros sem Murray; ele é toda a razão de ser do filme.

Coppola extrai do ator a disposição de atuar em um incontável elenco de situações cômicas: do mais delirante registro físico (as sequências da piscina, da sala de ginástica, da massagista) à observação mais detida do rosto e das expressões (as sequências em que assiste TV no quarto, a sessão de fotos), passando pelo desacerto com os gadgets, à maneira de Tati (os ruídos emitidos pelo celular, pelo aparelho de fax e pelos aparelhos de ginástica), Murray encontra espaço para desenvolver uma personagem absolutamente adorável, palpável em sua fragilidade e desespero mudo.

Previsivelmente, as narrativas convergem no encontro das personagens, dando início ao relato das aventuras dos dois pelas noites de Tóquio. A partir daí, o registro muda sutilmente, explorando as mais diversas modalidades de relacionamento entre os dois, instituindo um equilíbrio sempre precário. A riqueza desta segunda parte de Encontros e Desencontros está em nunca encerrar este relacionamento em qualquer modo definitivo; Coppola realiza um estudo sobre a distância e a proximidade dos corpos, à maneira do Cassavetes de Gloria, explorando a cada novo momento diferentes e ricas nuances, reinventando a relação com cada mudança de comportamento. Há cargas e cargas de emoção depositadas num simples toque, numa troca de olhares, num abraço, num aperto de mão.

Encontros e Desencontros é um filme lindamente imperfeito; seus momentos mais belos são fugidios, produtos da mais pura simplicidade e do risco. Sofia Coppola parece evitar a todo custo uma estratégia ou cálculo; seu programa é outro: deixar as coisas aconterem e encontrar a melhor maneira de filmá-las. Não há modo mais feliz de filmar a matéria humana.


Fernando Veríssimo