DOGVILLE
Lars Von Trier, Dogville, Din/Fra/Nor/Hol/Fin/Ita/Ale/ Jap/Ing/EUA, 2003

Foi-se o tempo em que ao talento e oportunismo de Lars Von Trier se associava uma torturada e tortuosa forma de ver a humanidade. Os acessos de santificação contra as mesquinharias da humanidade se resolviam em todo tipo de terreno pantanoso: um hospital virava terreno de science-fiction meta-religiosa (a série O Reino), uma cidade era palco da devoção sem limites – e, o que era melhor, irracional – à recuperação de um amor (Ondas do Destino) ou simplesmente viver é uma questão de jogo e aposta, em que o sublime pode residir em puras representações de idiotia perante uma sociedade da auto-imagem (Os Idiotas, ainda sua obra-prima). Mas o anseio do superstar falou mais alto e, da mesma forma que a ambigüidade moral do rock glam (que, aliás, é a maior fonte de canções para as trilhas de Von Trier: Bowie, Elton John...) foi diluída para poder atingir os estádios e transformou-se em rock de arena, Lars Von Trier abandonou a contaminada temática de seus temas para nos apresentar heroínas quase santas sofrendo em nossa frente por duas horas e meia. A forma cinematográfica acompanha: do musical em Dançando no Escuro ao pastiche de Brecht operado em Dogville, a realidade é unidimensional mesmo que o parti-pris formal seja forte e veemente (embora a aparente arbitrariedade em relação ao tema e ao acompanhamento da história nos faça supor que se trata mais de um efeito oportunista de assinatura – oh! o Grande Lars mais uma vez inova a arte cinematográfica – do que uma verdadeira aposta de cinema – acreditar que existe uma forma de cinema capaz de dar conta de uma determinada constelação de acontecimentos e que pode nascer beleza de alguma coisa que está no meio desse jogo).

Dogville começa como todo e qualquer filme de Lars Von Trier desde Ondas do Destino (apenas Os Idiotas difere levemente da estrutura geral): uma personagem dotada da Graça (em Dogville trata-se de Grace, não poderia ser mais evidente) entrega-se severamente a uma comunidade, que primeiro aparenta abraçá-la e puxá-la para perto de si mas depois vai mostrando suas garras e começa a supliciar progressivamente e em ascendentes graus de crueldade a personagem desviante. O sentimento de inevitabilidade da tragédia é moeda fácil: tanto com Selma quanto com Grace, qualquer das opções que a heroína for tomar será a errada. E, naturalmente, há de esperar-se a punição, que Lars Von Trier saberá filmar, quando for a hora, com todo o sadismo a que está acostumado. Mas não é só a trama que permanece a mesma. A estruturação do relato também é a de sempre: uma reta ascendente de suplícios e sujeições a que a personagem principal responde sempre com mais elevação moral e capacidade de sofrer e mostrar misericórdia para com seus algozes.

Lars Von Trier só tem uma história a mostrar ao mundo: como o homem é o principal devorador do homem, como os bons sentimentos podem ser belos mas redundam num nada de incompreensão pelos outros homens, como a santidade é o oposto complementar da baixeza moral e dos valores mundanos. Seria então Lars Von Trier uma parente dinamarquês distante de Luis Buñuel e Erich Von Stroheim? De forma alguma. Enquanto Dom Luis e o falso "Von" resolviam seus filmes num terreno abertamente naturalista e anti-psicologista – pois afinal são os instintos animais e a força do meio que determinam o comportamento dos personagens, não se trata de uma questão de "escolha" –, Lars Von Trier parece mais se aproximar de Bergman ao transformar sua visão sobre a miséria do mundo em enredos psicológicos em que sempre estão embutidas as mesmas e velhas problemáticas católicas de sempre: salvação, humildade, perdão. Havendo livre arbítrio, o homem escolhe a cada momento fazer sempre o pior possível a cada decisão tomada, transformando a convivência social no pior dos mundos possíveis, como um Leibniz ao contrário (ou ao menos um Pangloss). Assim, o "cinema da crueldade" constante dos filmes de Buñuel ou Stroheim sai da visão de mundo do diretor e metamorfoseia-se em crueldade dos personagens. Mas Grace ou Selma não são avatares do Padre Nazário ou de Viridiana, espíritos jogados ao mundo para perceber como é vão e arrogante o mundo da castidade e dos valores de ascendência moral religiosa. Ou, em todo caso, a relação que se desenvolve entre o diretor e seus protagonistas é totalmente diferente – o que faz com que sintamos os personagens de forma diferente. Em Buñuel, o relato em terceira pessoa é onipresente, ao passo que o cinema de Lars Von Trier se constrói numa falsa e cínica tentativa de primeira pessoa que, por alguns momentos, deixa o estatuto de "filtro" do filme (uma vez que sentimos o filme junto com elas e nos compadecemos pelas ocorrências tristes de suas vidas) para ser devorada sozinha pelos dragões, enquanto Von Trier permanece em distância regulamentar por trás da câmera. A covardia em não acompanhar até o último instante seus personagens (coisa que, mal ou bem, o realizador faz em Ondas do Destino e Os Idiotas), o cinismo em desfazer-se deles quando é oportuno limitam de forma definitiva o interesse em Dogville.

Poderíamos acreditar que Dogville é um filme político: numa cidadezinha nas Montanhas Rochosas, EUA, em um período crítico na história do país (pouco após o crack de 1929), aparece a bela Grace, perseguida por mafiosos. Ela é inicialmente aceita pelos membros daquela comunidade muito pobre, começa em retribuição a fazer pequenos trabalhos para todos os moradores da localidade, até que a rotina e a crueldade das pessoas faz com que ninguém veja Grace mais com os olhos benevolentes de antes, e passam a tratá-la como uma escrava branca, molde ao qual ela vai adequando-se aos poucos (progressão dramática obriga), até o momento em que é algemada, vilipendiada e violentada por todos os homens da região. A discussão teórica do filme acontece em paralelo à sua própria realização, com as assembléias e as divagações do personagem de Paul Bettany: começa como um drama sobre a aceitação do estrangeiro, aos poucos transforma a problemática do filme no sentimento de pureza em relação aos julgamentos apressados de cada membro daquela comunidade, e por fim transforma-se em análise do fascismo de grupo a partir do momento em que Grace tenta fugir e retorna sem querer a Dogville. Acontece que, para que Dogville fosse um filme político, seria preciso mais do que dar ínfimas indicações sobre localidade geográfica e tênues traços que ligam os personagens do filme com a situação política vivida hoje no mundo (o fundamentalista sentimento de estar do lado certo, a certeza de que é uma luta do bem contra o mal, etc.). Esse anti-americanismo de butique parece antes uma provocação e resposta à forma pela qual foi recebido Dançando no Escuro pela imprensa americana mais do que uma verdadeira pesquisa sobre as raízes da mesquinharia média americana. O próprio filme é mais ambicioso: "Não quero falar de Dogville especificamente, porque quero que minha história tenha ambições universais", esquematicamente responde a Nicole Kidman o personagem interpretado por Paul Bettany. Para Lars Von Trier, a crueldade e a certeza de si não são algo especificamente americano; são para o diretor menos um dado político ou social do que um quadro onto-teo-lógico de miserabilismo existencial (no fundo, qualquer comportamento, do mais nobre ao menos, redunda na mais absoluta insuficiência, a Terra sendo nosso verdadeiro inferno) e decadência (porque, voltamos a lembrar, não é porque a falta é algo constitutivo do homem, mas porque a cada instante o homem renova seu laço com o demônio e trai seu deus por livre e espontânea vontade – a arbitrariedade dos maus tratos a que Grace é submetida, do menino Jason até seu namorado, do cego até a professora, só fazem confirmá-lo). A banalidade do anti-americanismo em Dogville – que funciona apenas, repetimos, como provocação – esconde mais profundamente uma visão de humanidade não menos banal, esquemática e superficial.

A forma do relato (romance do século XVIII) e da disposição cenográfica (teatral, com marcações no chão designando as casas, as ruas, os canteiros de flores e a casa de cachorro) de Dogville podem certamente ser algo digno de interesse pelo parti-pris de anti-naturalismo cenográfico e pelo estranhamento que causam – algo que sem dúvida faz sensação nos públicos de cinema de arte –, mas no fundo só se prestam para tornar a trama mais generalizante e transformar Dogville numa cidadezinha qualquer, do alto da Noruega em 2090 até um vilarejo na Mongólia no século XIV – a ambição universalizante mencionada pelo personagem escritor, jamais esqueçamos. Em suas entrevistas, Lars Von Trier faz menção a um projeto de tomar Dogville como ponto de partida para uma experiência em que o cinema englobaria todas as formas artísticas, teatro, arte plástica, poesia, romance, etc. Pela fatura completa, ou seja, pelo filme que vemos, Dogville é menos uma evolução da forma e do relato cinematográfico do que uma refratária e reacionária estrutura de teatro filmado por televisão pública. Naturalmente, os tiques estéticos de Von Trier estão todos lá: o jump cut e a câmera na mão como matéria prima, os primeiros planos no rosto dos personagens, a atuação estilizada... Mas todo esse cardápio, que já foi (re)definidor e vigoroso no final dos anos 90, é hoje nada mais do que um produto requentado e assimilado, resultado da opção de alguém que decidiu sentar no trono de sua majestade e de cima decidiu preguiçosamente ordenar o mundo de acordo com uma concepção prévia e através de modelos baratos de recognição. Um particular toque de covardia são os planos finais, com fotografias (reais e de época) de negros e brancos (quase pretos de tão pobres, diria Caetano Veloso) americanos, enquanto a banda sonora leva "Young Americans" de David Bowie. Dogville (a cidade e o filme) se reflete em nosso mundo real através da utilização "artística" dessas fotografias, e o mundo todo se transforma no teatro de crueldade de Lars Von Trier. Seguirá para a posteridade como uma das seqüências de créditos finais mais asquerosas e abjetas de todos os tempos.

Em As Cinco Obstruções, Lars Von Trier tenciona fazer uma "homenagem" ao cineasta Jorgen Leth. "Homenagem" porque a natureza do mimo consiste em levar o realizador a refazer cinco vezes um de seus clássicos filmes-ensaio, O Homem Perfeito. Mas, a cada vez, Leth terá que trabalhar de acordo com limitações esdrúxulas concebidas por Von Trier. Naturalmente, a cada "obstrução", o nível das imposições piora (como fases num videogame, aliás). Talvez aí resida no fundo a verdade de Lars Von Trier: submeter seus interlocutores (como Björk, Nicole Kidman deixou Cannes acreditando, como Hamlet, que há algo de podre no reino da Dinamarca) mesmo como forma de carinho. Nisso pode haver tudo, mau caratismo, cinismo ou perversidade. Mas Lars Von Trier só não pode ser chamado de incoerente. Se o mundo é um constante fluxo de suplícios e submissões, o único gesto possível de carinho é direcionar a crueldade para aqueles que amamos, usar essa crueldade (sadismo seria mais o caso, talvez) para a produção de alguma coisa. A felicidade e a liberdade, no entanto, essas se encontram muito longe de Dogville. Filmar aquilo de que se gosta está fora de questão. Esse é até agora – e talvez sempre será – o limite do talento de nosso pastor dinamarquês.


Ruy Gardnier