Foi-se
o tempo em que ao talento e oportunismo de Lars Von
Trier se associava uma torturada e tortuosa forma de
ver a humanidade. Os acessos de santificação
contra as mesquinharias da humanidade se resolviam em
todo tipo de terreno pantanoso: um hospital virava terreno
de science-fiction meta-religiosa (a série
O Reino), uma cidade era palco da devoção
sem limites e, o que era melhor, irracional
à recuperação de um amor (Ondas
do Destino) ou simplesmente viver é uma questão
de jogo e aposta, em que o sublime pode residir em puras
representações de idiotia perante uma
sociedade da auto-imagem (Os Idiotas, ainda sua
obra-prima). Mas o anseio do superstar falou mais alto
e, da mesma forma que a ambigüidade moral do rock
glam (que, aliás, é a maior fonte de canções
para as trilhas de Von Trier: Bowie, Elton John...)
foi diluída para poder atingir os estádios
e transformou-se em rock de arena, Lars Von Trier abandonou
a contaminada temática de seus temas para nos
apresentar heroínas quase santas sofrendo em
nossa frente por duas horas e meia. A forma cinematográfica
acompanha: do musical em Dançando no Escuro
ao pastiche de Brecht operado em Dogville, a
realidade é unidimensional mesmo que o parti-pris
formal seja forte e veemente (embora a aparente arbitrariedade
em relação ao tema e ao acompanhamento
da história nos faça supor que se trata
mais de um efeito oportunista de assinatura oh!
o Grande Lars mais uma vez inova a arte cinematográfica
do que uma verdadeira aposta de cinema
acreditar que existe uma forma de cinema capaz de dar
conta de uma determinada constelação de
acontecimentos e que pode nascer beleza de alguma coisa
que está no meio desse jogo).
Dogville começa como todo e qualquer filme
de Lars Von Trier desde Ondas do Destino (apenas
Os Idiotas difere levemente da estrutura geral):
uma personagem dotada da Graça (em Dogville
trata-se de Grace, não poderia ser mais evidente)
entrega-se severamente a uma comunidade, que primeiro
aparenta abraçá-la e puxá-la para
perto de si mas depois vai mostrando suas garras e começa
a supliciar progressivamente e em ascendentes graus
de crueldade a personagem desviante. O sentimento de
inevitabilidade da tragédia é moeda fácil:
tanto com Selma quanto com Grace, qualquer das opções
que a heroína for tomar será a errada.
E, naturalmente, há de esperar-se a punição,
que Lars Von Trier saberá filmar, quando for
a hora, com todo o sadismo a que está acostumado.
Mas não é só a trama que permanece
a mesma. A estruturação do relato também
é a de sempre: uma reta ascendente de suplícios
e sujeições a que a personagem principal
responde sempre com mais elevação moral
e capacidade de sofrer e mostrar misericórdia
para com seus algozes.
Lars Von Trier só tem uma história a mostrar
ao mundo: como o homem é o principal devorador
do homem, como os bons sentimentos podem ser belos mas
redundam num nada de incompreensão pelos outros
homens, como a santidade é o oposto complementar
da baixeza moral e dos valores mundanos. Seria então
Lars Von Trier uma parente dinamarquês distante
de Luis Buñuel e Erich Von Stroheim? De forma
alguma. Enquanto Dom Luis e o falso "Von"
resolviam seus filmes num terreno abertamente naturalista
e anti-psicologista pois afinal são os
instintos animais e a força do meio que determinam
o comportamento dos personagens, não se trata
de uma questão de "escolha" ,
Lars Von Trier parece mais se aproximar de Bergman ao
transformar sua visão sobre a miséria
do mundo em enredos psicológicos em que sempre
estão embutidas as mesmas e velhas problemáticas
católicas de sempre: salvação,
humildade, perdão. Havendo livre arbítrio,
o homem escolhe a cada momento fazer sempre o pior possível
a cada decisão tomada, transformando a convivência
social no pior dos mundos possíveis, como um
Leibniz ao contrário (ou ao menos um Pangloss).
Assim, o "cinema da crueldade" constante dos
filmes de Buñuel ou Stroheim sai da visão
de mundo do diretor e metamorfoseia-se em crueldade
dos personagens. Mas Grace ou Selma não são
avatares do Padre Nazário ou de Viridiana, espíritos
jogados ao mundo para perceber como é vão
e arrogante o mundo da castidade e dos valores de ascendência
moral religiosa. Ou, em todo caso, a relação
que se desenvolve entre o diretor e seus protagonistas
é totalmente diferente o que faz com que
sintamos os personagens de forma diferente. Em Buñuel,
o relato em terceira pessoa é onipresente, ao
passo que o cinema de Lars Von Trier se constrói
numa falsa e cínica tentativa de primeira pessoa
que, por alguns momentos, deixa o estatuto de "filtro"
do filme (uma vez que sentimos o filme junto com elas
e nos compadecemos pelas ocorrências tristes de
suas vidas) para ser devorada sozinha pelos dragões,
enquanto Von Trier permanece em distância regulamentar
por trás da câmera. A covardia em não
acompanhar até o último instante seus
personagens (coisa que, mal ou bem, o realizador faz
em Ondas do Destino e Os Idiotas), o cinismo
em desfazer-se deles quando é oportuno limitam
de forma definitiva o interesse em Dogville.
Poderíamos acreditar que Dogville é
um filme político: numa cidadezinha nas Montanhas
Rochosas, EUA, em um período crítico na
história do país (pouco após o
crack de 1929), aparece a bela Grace, perseguida
por mafiosos. Ela é inicialmente aceita pelos
membros daquela comunidade muito pobre, começa
em retribuição a fazer pequenos trabalhos
para todos os moradores da localidade, até que
a rotina e a crueldade das pessoas faz com que ninguém
veja Grace mais com os olhos benevolentes de antes,
e passam a tratá-la como uma escrava branca,
molde ao qual ela vai adequando-se aos poucos (progressão
dramática obriga), até o momento em que
é algemada, vilipendiada e violentada por todos
os homens da região. A discussão teórica
do filme acontece em paralelo à sua própria
realização, com as assembléias
e as divagações do personagem de Paul
Bettany: começa como um drama sobre a aceitação
do estrangeiro, aos poucos transforma a problemática
do filme no sentimento de pureza em relação
aos julgamentos apressados de cada membro daquela comunidade,
e por fim transforma-se em análise do fascismo
de grupo a partir do momento em que Grace tenta fugir
e retorna sem querer a Dogville. Acontece que, para
que Dogville fosse um filme político,
seria preciso mais do que dar ínfimas indicações
sobre localidade geográfica e tênues traços
que ligam os personagens do filme com a situação
política vivida hoje no mundo (o fundamentalista
sentimento de estar do lado certo, a certeza de que
é uma luta do bem contra o mal, etc.). Esse anti-americanismo
de butique parece antes uma provocação
e resposta à forma pela qual foi recebido Dançando
no Escuro pela imprensa americana mais do que uma
verdadeira pesquisa sobre as raízes da mesquinharia
média americana. O próprio filme é
mais ambicioso: "Não quero falar de Dogville
especificamente, porque quero que minha história
tenha ambições universais", esquematicamente
responde a Nicole Kidman o personagem interpretado por
Paul Bettany. Para Lars Von Trier, a crueldade e a certeza
de si não são algo especificamente americano;
são para o diretor menos um dado político
ou social do que um quadro onto-teo-lógico de
miserabilismo existencial (no fundo, qualquer comportamento,
do mais nobre ao menos, redunda na mais absoluta insuficiência,
a Terra sendo nosso verdadeiro inferno) e decadência
(porque, voltamos a lembrar, não é porque
a falta é algo constitutivo do homem, mas porque
a cada instante o homem renova seu laço com o
demônio e trai seu deus por livre e espontânea
vontade a arbitrariedade dos maus tratos a que
Grace é submetida, do menino Jason até
seu namorado, do cego até a professora, só
fazem confirmá-lo). A banalidade do anti-americanismo
em Dogville que funciona apenas, repetimos,
como provocação esconde mais profundamente
uma visão de humanidade não menos banal,
esquemática e superficial.
A forma do relato (romance do século XVIII) e
da disposição cenográfica (teatral,
com marcações no chão designando
as casas, as ruas, os canteiros de flores e a casa de
cachorro) de Dogville podem certamente ser algo
digno de interesse pelo parti-pris de anti-naturalismo
cenográfico e pelo estranhamento que causam
algo que sem dúvida faz sensação
nos públicos de cinema de arte , mas no
fundo só se prestam para tornar a trama mais
generalizante e transformar Dogville numa cidadezinha
qualquer, do alto da Noruega em 2090 até um vilarejo
na Mongólia no século XIV a ambição
universalizante mencionada pelo personagem escritor,
jamais esqueçamos. Em suas entrevistas, Lars
Von Trier faz menção a um projeto de tomar
Dogville como ponto de partida para uma experiência
em que o cinema englobaria todas as formas artísticas,
teatro, arte plástica, poesia, romance, etc.
Pela fatura completa, ou seja, pelo filme que vemos,
Dogville é menos uma evolução
da forma e do relato cinematográfico do que uma
refratária e reacionária estrutura de
teatro filmado por televisão pública.
Naturalmente, os tiques estéticos de Von Trier
estão todos lá: o jump cut e a
câmera na mão como matéria prima,
os primeiros planos no rosto dos personagens, a atuação
estilizada... Mas todo esse cardápio, que já
foi (re)definidor e vigoroso no final dos anos 90, é
hoje nada mais do que um produto requentado e assimilado,
resultado da opção de alguém que
decidiu sentar no trono de sua majestade e de cima decidiu
preguiçosamente ordenar o mundo de acordo com
uma concepção prévia e através
de modelos baratos de recognição. Um particular
toque de covardia são os planos finais, com fotografias
(reais e de época) de negros e brancos (quase
pretos de tão pobres, diria Caetano Veloso) americanos,
enquanto a banda sonora leva "Young Americans"
de David Bowie. Dogville (a cidade e o filme) se reflete
em nosso mundo real através da utilização
"artística" dessas fotografias, e o
mundo todo se transforma no teatro de crueldade de Lars
Von Trier. Seguirá para a posteridade como uma
das seqüências de créditos finais
mais asquerosas e abjetas de todos os tempos.
Em As Cinco Obstruções, Lars Von
Trier tenciona fazer uma "homenagem" ao cineasta
Jorgen Leth. "Homenagem" porque a natureza
do mimo consiste em levar o realizador a refazer cinco
vezes um de seus clássicos filmes-ensaio, O
Homem Perfeito. Mas, a cada vez, Leth terá
que trabalhar de acordo com limitações
esdrúxulas concebidas por Von Trier. Naturalmente,
a cada "obstrução", o nível
das imposições piora (como fases num videogame,
aliás). Talvez aí resida no fundo a verdade
de Lars Von Trier: submeter seus interlocutores (como
Björk, Nicole Kidman deixou Cannes acreditando,
como Hamlet, que há algo de podre no reino da
Dinamarca) mesmo como forma de carinho. Nisso pode haver
tudo, mau caratismo, cinismo ou perversidade. Mas Lars
Von Trier só não pode ser chamado de incoerente.
Se o mundo é um constante fluxo de suplícios
e submissões, o único gesto possível
de carinho é direcionar a crueldade para aqueles
que amamos, usar essa crueldade (sadismo seria mais
o caso, talvez) para a produção de alguma
coisa. A felicidade e a liberdade, no entanto, essas
se encontram muito longe de Dogville. Filmar
aquilo de que se gosta está fora de questão.
Esse é até agora e talvez sempre
será o limite do talento de nosso pastor
dinamarquês.
Ruy Gardnier
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