DOGVILLE
Lars Von Trier, Dogville, Din/Fra/Nor/Hol/Fin/Ita/Ale/ Jap/Ing/EUA, 2003

Mundo Cão

A melhor defesa é o ataque – e Dogville é um filme com a faca nos dentes.

Não adianta cobrar de Dogville sutileza, nem tampouco cobrar ponderação. É manipulador e direto.
Inscreve-se, sim, numa certa tendência do cinema internacional, a saber, a de um cinema agressivo e manipulador do mal-estar de sua platéia. Mas do grosso da produção que poderíamos filiar a este cinema Dogville se afasta em pontos cruciais, e vamos a eles. O filme se esgota em seu mal-estar? Não. Esconde-se em seu discurso? Não. Tem um tom de angústia exasperada, sufocante e um tanto imobilizante? Não – seu tom não é de angústia, é de confronto. Sua agressividade não poupa os personagens, mas deixa caminhos para os espectadores. Estes três pontos são fundamentais para digerir Dogville. Personagens, não custa lembrar, não existem na vida real. Dogville é uma fábula sinistra.

Dogville se utiliza de várias estratégias do filme anterior do realizador – Von Trier já passara as três horas de Dançando No Escuro exibindo e pondo em crise a essência da manipulação cinematográfica, explicitanto e denunciando os próprios artifícios a cada instante. Cumprindo ao mesmo tempo os papéis de manipulador e de delator da sua própria manipulação, deixou aberto seu caminho no filme anterior e agora era apenas o caso de voltar pela trilha já conhecida, em busca de um final em tudo diferente – e, em termos narrativos, aquilo que Dançando no Escuro precisou de três horas para expor Dogville faz desde o seu primeiro plano até o último. Se no filme anterior éramos eventualmente lembrados do espetáculo por números musicais, agora não temos sequer cenários de fundo para sustentar o devaneio da ficção naturalista. E novamente temos a trama sendo conduzida de modo verdadeiramente grosseiro (sem demérito algum no adjetivo, ou todo o cinema de Trier teria que ser condenado) com o intuito de explicitar as intenções do realizador. Se em outros filmes a implausibilidade já não se disfarçava, neste ela realmente é, mais do que solução, a própria estratégia da narrativa, sobretudo (mas não somente) no final, quando toda a fuga da personagem principal passa a não fazer qualquer sentido. Isso, de fato, não tem a menor importância para Dogville – o interesse não é pela trama que provoca a situação, mas a situação em si da jovem que se sacrifica pela cidade. Não há a célebre suspensão da descrença, senão se por uma disposição irresoluta e inabalável do espectador. Sofre pelos personagens quem quer – eles não são de carne e osso, e nem tampouco a história tem entre suas preocupações centrais o cuidado com plausibilidade ou verossimilhança. Foi preciso em Dançando no Escuro um filme inteiro para mostrar isso para os apaixonados por Selma, mas agora não é preciso mais do que remover paredes e informar os cenários com riscos no chão. Com esta simples decisão, não há sujeito capaz de jogar nas costas do realizador a responsabilidade pelo sofrimento da platéia com o destino dos personagens. É um filme, não custa lembrar – não custa mesmo, sai até mais barato. O realizador é responsável pelo destino dos personagens, mas o espectador só sofre porque quer. Se de fato há uma ousadia tremenda em abandonar cenários, ela se justifica mais do que pela simples experimentação, relação com teatro, teleteatro ou valorização dos atores (ainda que todos esses pontos tenham seu peso, sobretudo o último) – desde o primeiro instante, a narrativa já indica à platéia que há algo ali a ser entendido a partir do sofrimento de Grace e dos demais habitantes de Dogville.

A fábula de Dogville tem uma moral amarga, tem a amargura de tratar, ao fim e ao cabo, dos temas do recalque e da violência. Depois de ver suas musas se entregarem ao holocausto nos últimos filmes, dispostas a se sacrificar até o fim pelo que amam, Von Trier enxerga a outra face – a hora do troco. Daí vem a sua dissociação final e amarga com a musa maltratada (ao contrário das heroínas dos filmes anteriores, Grace não se mantém fiel ao seu sonho) para trazer bem claro o ponto central da sua fabulação: violência se volta contra si mesma. Não é pouca coisa a se dizer nos dias de hoje, nem tampouco pode receber as acusações comuns ao cinema do mal-estar de que se aproxima: não é niilista, não se deixa dominar pela angústia, não se vê impotente. Na verdade, em meio à sua manipulação dos personagens, o narrador mais parece observar com irônica amargura um final de violência inevitável do que oferecer apoio, compreensão ou empatia às ações de suas criações – mais parece lidar com elas como símbolos (os nomes dos personagens já sugerem isso, uma vez que vários deles nos remetem a outras narrativas).

Não há sutileza: o escritor apaixonado (covarde, incapaz de conter as barbáries sociais e fechado em sua ilusão de sua arte) Tom diz a Grace que a ilustração dada por ela é muito melhor e mais eficiente que a que ele poderia imaginar. Grace nos traz um mundo onde as pequenas violências geram as grandes violências. Que os personagens sejam punidos pelos nossos erros, então, e azar o deles – o nosso mundo, este cabe a nós tocar do jeito certo. Posicionando-se contra as pequenas violências cotidianas (as fotos finais indicam com clareza de que se está falando) e contra a grande violência (não custa lembrar, estamos em 2003), o narrador dá o seu recado. Não é mais possível para o narrador contar a história do sofrimento suportado estoicamente, a história do sacrifício individual pelo coletivo ou pelo amor, como Trier fez recentemente. Num momento em que se observa situações de confronto e de auto-defesa ante sofrimentos alheios, a hora é de contar a história do troco. Não é uma história bonita de se ver – mas é a história que estamos vivendo. O narrador usa elementos clássicos já bem conhecidos (a história da cidade corrupta contra o indivíduo, por exemplo, tem boa tradição no teatro, em Nossa Cidade, O Inimigo do povo e, inclusive para a trama da recompensa, A Visita da Velha Senhora, e se pode dizer o mesmo de dramas com violência sexual) que, a princípio, poderiam se passar em qualquer tempo e lugar. Mas cada tempo tem suas fábulas – e o recado está dado. Não deixando dúvidas em uns poucos detalhes significativos (sobretudo as fotos e a música que encerram o filme), o filme se entrelaça definitivamente com seu tempo. Mesmo que fosse essa sua única qualidade (e não é), já não seria pouca coisa.

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Ou então: se outras qualidades não tivesse, já não seria pouca coisa a força dos personagens criados por atores fabulosos, conhecidos ou não. O narrador usa o truque de nos fazer ouvir Vivaldi e os sons de portas invisíveis, mas o truque dos personagens (que é o que vale no final) é só o elenco que compõe o filme. Se o filme é sobretudo de sua protagonista, ele ainda nos dá o prazer de rever figuras como Lauren Bacall, Harriet Andersson, Ben Gazzara e James Caan. Mas Nicole Kidman e a sua Grace, de fato, dominam a tela e o filme de uma forma, no final, até um tanto assustadora. Nicole Kidman fascina – e Trier escolheu a mais bela para se aproximar do macabro. Usa um puro carisma cinematográfico para nos fazer olhar o abismo. Grace é um perigo, mas Nicole traz uma beleza rara a esse olhar.


Daniel Caetano