Mundo
Cão
A melhor defesa é o ataque e Dogville
é um filme com a faca nos dentes.
Não adianta
cobrar de Dogville sutileza, nem tampouco cobrar
ponderação. É manipulador e direto.
Inscreve-se, sim, numa certa tendência do cinema
internacional, a saber, a de um cinema agressivo e manipulador
do mal-estar de sua platéia. Mas do grosso da
produção que poderíamos filiar
a este cinema Dogville se afasta em pontos cruciais,
e vamos a eles. O filme se esgota em seu mal-estar?
Não. Esconde-se em seu discurso? Não.
Tem um tom de angústia exasperada, sufocante
e um tanto imobilizante? Não seu tom não
é de angústia, é de confronto.
Sua agressividade não poupa os personagens, mas
deixa caminhos para os espectadores. Estes três
pontos são fundamentais para digerir Dogville.
Personagens, não custa lembrar, não existem
na vida real. Dogville é uma fábula
sinistra.
Dogville se utiliza de várias estratégias
do filme anterior do realizador Von Trier já
passara as três horas de Dançando No
Escuro exibindo e pondo em crise a essência
da manipulação cinematográfica,
explicitanto e denunciando os próprios artifícios
a cada instante. Cumprindo ao mesmo tempo os papéis
de manipulador e de delator da sua própria manipulação,
deixou aberto seu caminho no filme anterior e agora
era apenas o caso de voltar pela trilha já conhecida,
em busca de um final em tudo diferente e, em
termos narrativos, aquilo que Dançando no
Escuro precisou de três horas para expor Dogville
faz desde o seu primeiro plano até o último.
Se no filme anterior éramos eventualmente lembrados
do espetáculo por números musicais, agora
não temos sequer cenários de fundo para
sustentar o devaneio da ficção naturalista.
E novamente temos a trama sendo conduzida de modo verdadeiramente
grosseiro (sem demérito algum no adjetivo, ou
todo o cinema de Trier teria que ser condenado) com
o intuito de explicitar as intenções do
realizador. Se em outros filmes a implausibilidade já
não se disfarçava, neste ela realmente
é, mais do que solução, a própria
estratégia da narrativa, sobretudo (mas não
somente) no final, quando toda a fuga da personagem
principal passa a não fazer qualquer sentido.
Isso, de fato, não tem a menor importância
para Dogville o interesse não é
pela trama que provoca a situação, mas
a situação em si da jovem que se sacrifica
pela cidade. Não há a célebre suspensão
da descrença, senão se por uma disposição
irresoluta e inabalável do espectador. Sofre
pelos personagens quem quer eles não são
de carne e osso, e nem tampouco a história tem
entre suas preocupações centrais o cuidado
com plausibilidade ou verossimilhança. Foi preciso
em Dançando no Escuro um filme inteiro
para mostrar isso para os apaixonados por Selma, mas
agora não é preciso mais do que remover
paredes e informar os cenários com riscos no
chão. Com esta simples decisão, não
há sujeito capaz de jogar nas costas do realizador
a responsabilidade pelo sofrimento da platéia
com o destino dos personagens. É um filme, não
custa lembrar não custa mesmo, sai até
mais barato. O realizador é responsável
pelo destino dos personagens, mas o espectador só
sofre porque quer. Se de fato há uma ousadia
tremenda em abandonar cenários, ela se justifica
mais do que pela simples experimentação,
relação com teatro, teleteatro ou valorização
dos atores (ainda que todos esses pontos tenham seu
peso, sobretudo o último) desde o primeiro
instante, a narrativa já indica à platéia
que há algo ali a ser entendido a partir do sofrimento
de Grace e dos demais habitantes de Dogville.
A fábula de Dogville tem uma moral amarga,
tem a amargura de tratar, ao fim e ao cabo, dos temas
do recalque e da violência. Depois de ver suas
musas se entregarem ao holocausto nos últimos
filmes, dispostas a se sacrificar até o fim pelo
que amam, Von Trier enxerga a outra face a hora
do troco. Daí vem a sua dissociação
final e amarga com a musa maltratada (ao contrário
das heroínas dos filmes anteriores, Grace não
se mantém fiel ao seu sonho) para trazer bem
claro o ponto central da sua fabulação:
violência se volta contra si mesma. Não
é pouca coisa a se dizer nos dias de hoje, nem
tampouco pode receber as acusações comuns
ao cinema do mal-estar de que se aproxima: não
é niilista, não se deixa dominar pela
angústia, não se vê impotente. Na
verdade, em meio à sua manipulação
dos personagens, o narrador mais parece observar com
irônica amargura um final de violência inevitável
do que oferecer apoio, compreensão ou empatia
às ações de suas criações
mais parece lidar com elas como símbolos
(os nomes dos personagens já sugerem isso, uma
vez que vários deles nos remetem a outras narrativas).
Não há sutileza: o escritor apaixonado
(covarde, incapaz de conter as barbáries sociais
e fechado em sua ilusão de sua arte) Tom diz
a Grace que a ilustração dada por
ela é muito melhor e mais eficiente que a que
ele poderia imaginar. Grace nos traz um mundo onde as
pequenas violências geram as grandes violências.
Que os personagens sejam punidos pelos nossos erros,
então, e azar o deles o nosso mundo, este
cabe a nós tocar do jeito certo. Posicionando-se
contra as pequenas violências cotidianas (as fotos
finais indicam com clareza de que se está falando)
e contra a grande violência (não custa
lembrar, estamos em 2003), o narrador dá o seu
recado. Não é mais possível para
o narrador contar a história do sofrimento suportado
estoicamente, a história do sacrifício
individual pelo coletivo ou pelo amor, como Trier fez
recentemente. Num momento em que se observa situações
de confronto e de auto-defesa ante sofrimentos alheios,
a hora é de contar a história do troco.
Não é uma história bonita de se
ver mas é a história que estamos
vivendo. O narrador usa elementos clássicos já
bem conhecidos (a história da cidade corrupta
contra o indivíduo, por exemplo, tem boa tradição
no teatro, em Nossa Cidade, O Inimigo do povo
e, inclusive para a trama da recompensa, A Visita
da Velha Senhora, e se pode dizer o mesmo de dramas
com violência sexual) que, a princípio,
poderiam se passar em qualquer tempo e lugar. Mas cada
tempo tem suas fábulas e o recado está
dado. Não deixando dúvidas em uns poucos
detalhes significativos (sobretudo as fotos e a música
que encerram o filme), o filme se entrelaça definitivamente
com seu tempo. Mesmo que fosse essa sua única
qualidade (e não é), já não
seria pouca coisa.
***
Ou então: se outras qualidades não tivesse,
já não seria pouca coisa a força
dos personagens criados por atores fabulosos, conhecidos
ou não. O narrador usa o truque de nos fazer
ouvir Vivaldi e os sons de portas invisíveis,
mas o truque dos personagens (que é o que vale
no final) é só o elenco que compõe
o filme. Se o filme é sobretudo de sua protagonista,
ele ainda nos dá o prazer de rever figuras como
Lauren Bacall, Harriet Andersson, Ben Gazzara e James
Caan. Mas Nicole Kidman e a sua Grace, de fato, dominam
a tela e o filme de uma forma, no final, até
um tanto assustadora. Nicole Kidman fascina e
Trier escolheu a mais bela para se aproximar do macabro.
Usa um puro carisma cinematográfico para nos
fazer olhar o abismo. Grace é um perigo, mas
Nicole traz uma beleza rara a esse olhar.
Daniel Caetano
|