NA CAPTURA DOS FRIEDMANS
Andrew Jarecki, Capturing The Friedmans, EUA, 2003

Excessos melodramáticos na trilha sonora e alguns vícios dramáticos típicos do documentário-investigativo não chegam a tirar de Na Captura dos Friedmans o seu brilho maior. Partindo de uma premissa de reportagem investigativa (nos moldes criados e cultivados pela televisão e pelo cinema norte-americanos desde a década de 60), o filme de Andrew Jarecki consegue ultrapassar os ideais mais fáceis da "descoberta" em prol de um olhar que se interessa mais pela tensão afetiva dos discursos do que em suas capacidades de revelar, ou não, a verdade.

A partir do caso de acusação de pedofilia a um pacato professor de informática de Long Island, o filme traça uma habilidosa narrativa fragmentada de toda a repercussão pública e íntima do evento. Com um riquíssimo material de arquivo nas mãos (o irmão mais velho da família, David, tinha o hábito de registrar o cotidiano dos Friedman em sua câmera de vídeo), o filme alcança um grau de intimidade inédito em qualquer filme do gênero. A tensão entre os discursos diante da câmera de cinema e as imagens revistas nos vídeos caseiros de 13 anos antes, desenham com detalhes as mudanças nas relações e na auto-imagem de família-modelo norte-americana, carregada pelos Friedman até então. Não se trata, porém, de um filme contra-moralista, que tentasse mostrar os "podres" por trás das máscaras de felicidade - não: a riqueza de Na captura dos Friedmans é conseguir que todas essas camadas e máscaras de seus personagens convivam sem qualquer hierarquia ou preferência do autor.

Utilizando-se de depoimentos de policiais e profissionais da justiça, o filme narra com detalhes as diferentes fases das investigações, do processo e do julgamento que condenou Arnold e Jesse Friedman à prisão. Entre descrições factuais e opinativas, Jarecki consegue o mérito de colocar o discurso oficial no mesmo rodamoinho de idéias, julgamentos e afirmações dos familiares de Arnold, das crianças molestadas e dos pais das mesmas. O filme consegue assim, um dispositivo narrativo que retira das falas mostradas o seu caráter de explicação, de narração de eventos e as eleva ao nível da expressão afetiva e cultural de uma pequena cidade norte-americana diante de um tabu. O escândalo da pedofilia, insuflado pela mídia, cria um redemoinho histérico em que não se pode mais colocar em qualquer uma daquelas vozes a possibilidade da verdade. Nesse sentido, o filme deixa de lado o ideal desvelador dos "filmes investigativos" e se torna um meticuloso trabalho de observação das formas de relação familiares, dos jogos de poder entre pai, mãe e filhos, e do cotidiano como substrato dramático muito mais rico do que os clichês telejornalísticos da denúncia e do escândalo. Primeiro filme de Andrew Jarecki, esse brilhante filme demonstra um olhar que se enriquece por estar interessado não em um documentário-direto (retratista da vida), mas (pelo contrário) na ficção discursiva que devolve a vida a seu lugar de mistério, de inexplicável.

É pena que, diante de material tão rico e de proposta tão instigante, Jarecki por vezes opte pelo terreno fácil do melodrama para trazer o espectador para dentro do dilema e do trauma familiar: câmeras lentas e pianos melancólicos são elementos que em algumas cenas (como a que David chora sozinho diante de seu vídeo diário) tornam-se meramente reiterativos e, por demais, apelativos. Marca de um cineasta estreante, talvez, inseguro de seu discurso diante de um púbico norte-americano tão acostumado à exploração patologizante de casos como o narrado. Ainda assim, investindo em terreno minado e fazendo algumas concessões às fórmulas da comoção fácil, Jarecki faz um filme raro e desconcertante, que abre uma bela expectativa sobre seus futuros trabalhos.


Felipe Bragança