Excessos
melodramáticos na trilha sonora e alguns vícios
dramáticos típicos do documentário-investigativo
não chegam a tirar de Na Captura dos Friedmans
o seu brilho maior. Partindo de uma premissa de reportagem
investigativa (nos moldes criados e cultivados pela
televisão e pelo cinema norte-americanos desde
a década de 60), o filme de Andrew Jarecki consegue
ultrapassar os ideais mais fáceis da "descoberta"
em prol de um olhar que se interessa mais pela tensão
afetiva dos discursos do que em suas capacidades de
revelar, ou não, a verdade.
A partir do caso de acusação de pedofilia
a um pacato professor de informática de Long
Island, o filme traça uma habilidosa narrativa
fragmentada de toda a repercussão pública
e íntima do evento. Com um riquíssimo
material de arquivo nas mãos (o irmão
mais velho da família, David, tinha o hábito
de registrar o cotidiano dos Friedman em sua câmera
de vídeo), o filme alcança um grau de
intimidade inédito em qualquer filme do gênero.
A tensão entre os discursos diante da câmera
de cinema e as imagens revistas nos vídeos caseiros
de 13 anos antes, desenham com detalhes as mudanças
nas relações e na auto-imagem de família-modelo
norte-americana, carregada pelos Friedman até
então. Não se trata, porém, de
um filme contra-moralista, que tentasse mostrar os "podres"
por trás das máscaras de felicidade -
não: a riqueza de Na captura dos Friedmans
é conseguir que todas essas camadas e máscaras
de seus personagens convivam sem qualquer hierarquia
ou preferência do autor.
Utilizando-se de depoimentos de policiais e profissionais
da justiça, o filme narra com detalhes as diferentes
fases das investigações, do processo e
do julgamento que condenou Arnold e Jesse Friedman à
prisão. Entre descrições factuais
e opinativas, Jarecki consegue o mérito de colocar
o discurso oficial no mesmo rodamoinho de idéias,
julgamentos e afirmações dos familiares
de Arnold, das crianças molestadas e dos pais
das mesmas. O filme consegue assim, um dispositivo narrativo
que retira das falas mostradas o seu caráter
de explicação, de narração
de eventos e as eleva ao nível da expressão
afetiva e cultural de uma pequena cidade norte-americana
diante de um tabu. O escândalo da pedofilia, insuflado
pela mídia, cria um redemoinho histérico
em que não se pode mais colocar em qualquer uma
daquelas vozes a possibilidade da verdade. Nesse sentido,
o filme deixa de lado o ideal desvelador dos "filmes
investigativos" e se torna um meticuloso trabalho de
observação das formas de relação
familiares, dos jogos de poder entre pai, mãe
e filhos, e do cotidiano como substrato dramático
muito mais rico do que os clichês telejornalísticos
da denúncia e do escândalo. Primeiro filme
de Andrew Jarecki, esse brilhante filme demonstra um
olhar que se enriquece por estar interessado não
em um documentário-direto (retratista da vida),
mas (pelo contrário) na ficção
discursiva que devolve a vida a seu lugar de mistério,
de inexplicável.
É pena que, diante de material tão rico
e de proposta tão instigante, Jarecki por vezes
opte pelo terreno fácil do melodrama para trazer
o espectador para dentro do dilema e do trauma familiar:
câmeras lentas e pianos melancólicos são
elementos que em algumas cenas (como a que David chora
sozinho diante de seu vídeo diário) tornam-se
meramente reiterativos e, por demais, apelativos. Marca
de um cineasta estreante, talvez, inseguro de seu discurso
diante de um púbico norte-americano tão
acostumado à exploração patologizante
de casos como o narrado. Ainda assim, investindo em
terreno minado e fazendo algumas concessões às
fórmulas da comoção fácil,
Jarecki faz um filme raro e desconcertante, que abre
uma bela expectativa sobre seus futuros trabalhos.
Felipe Bragança
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