Curioso
como vários filmes recentes falam sobre fábulas,
sobre a arte de contar histórias. O Senhor
dos Anéis: O Retorno do Rei, Terra dos
Sonhos, Adeus Lênin, Swimming Pool
À Beira da Piscina, O Herói
da Família. A eles, une-se Peixe Grande,
nova e brilhante empreitada de Tim Burton pelo terreno
da imaginação.
Em Peixe Grande temos, a princípio, dois
filmes em um: o primeiro se centra no mundo de fantasias
inventado por Edward Bloom (Albert Finney e Ewan McGregor,
ambos ótimos), e o segundo na "vida real" de
Will (Billy Crudup), filho de Edward, que se ressente
das mentiras contadas pelo pai, até o inevitável
ajustes de contas ao final. De forma que Tim Burton
realiza uma obra notadamente maniqueísta: os
contos-de-fadas são extraordinários, originais,
com cenas que funcionam como verdadeiros libelos a favor
da fabulação, enquanto a realidade é
sem graça, chata, escorregando para o melodrama
barato. Mas, se há duas linhas narrativas, que
opõem a realidade às ficções
de Edward Bloom, deve-se perceber que a suposta realidade
não passa de outra ficção, na medida
em que Peixe Grande se apresenta enquanto história
inventada e narrada por Will, na qual seus "pais",
tanto o jovem das fábulas quanto o velho do cotidiano,
são personagens, e não narradores.
Desde o início, é Will quem narra a saga
do patriarca, anunciando ser "impossível dissociar
a verdade da mentira". Como ele conhece a trama de antemão,
e como a conta já "convertido" (pois,
ao final, o filho embarca na fantasia, inventando o
desenrolar da história, especialmente no que
tange à morte de Edward), conclui-se que Will,
como o pai, é um tremendo mentiroso.
O encontro de Will com a Jenny adulta (Helena Bonham
Carter) é capital para se compreender a proposta
de Burton, visto que a importância da cena se
encontra no fato de Jenny narrar o retorno de Edward
Bloom a Spectre da mesma forma que ele contaria. Se
Peixe Grande fosse apenas a realidade contraposta
à imaginação (de um lado, o filho
buscando a verdade e, de outro, o pai inventando mentiras),
tal narração seria injustificável,
pois a citada seqüência se integraria ao
núcleo "vida real" do filme. No entanto,
ela muda de significado se vista como parte da fábula
criada por Will para nos contar de que modo a fantasia
o tocou e o transformou. Para tanto, o filho se utiliza,
majoritariamente, de seu pai, personagem por ele construído
e através do qual enuncia a história,
como também, neste momento, de Jenny, quebrando
a aparente dicotomia da obra e mostrando que o real
é igualmente fictício.
A relação entre Will e Edward Bloom, em
Peixe Grande, assemelha-se àquela travada
entre Platão e Sócrates na filosofia.
Quais proposições deixadas por Sócrates
ficaram para a posteridade? Rigorosamente nenhuma, uma
vez que não as escreveu. Sócrates, apesar
da comprovada existência histórica, só
persiste no pensamento filosófico porque Platão
o transformou no protagonista de seus Diálogos,
de sorte que todos os conceitos formulados por Sócrates
são, na verdade, criações de Platão
e é justamente a passagem do mestre para
o plano da ficção que permitiu a Platão
enunciá-los.
Assim, ao tornar o pai tão ficcional quanto os
demais personagens que desfilam pela tela, Will é
capaz de narrar sua própria conversão
à fábula. Ou seja, Peixe Grande jamais
coloca em xeque a crença no poder da fantasia,
pois Burton realiza um filme completo e deliciosamente
tendencioso, feito para, pintando o "real"
da pior forma possível, idolatrar o sonho, adorar
os cativantes personagens imaginados (Edward à
frente), enfim, aderir ao conto-de-fada sem concessões,
enquanto maneira de viver.
As histórias contadas pelo pai são certamente
cheias de voltas e exageradíssimas, mas elas
não existem para saibamos suas conclusões.
Por exemplo, visto que Edward Bloom já sabe como
e quando vai morrer, ele não se preocupa, somente
vive cada instante, ao contrário de seu pai (avô
de Will), cuja perspectiva da morte iminente o impede
de aproveitar o dia. De modo que os finais não
importam: as ficções valem por si, enquanto
ação e Edward é um personagem
ativo, pois suas criações sempre envolvem
o ato de fazer algo, seja correr atrás da mulher
de sua vida, seja salvar uma cidadezinha fantasma, seja
fisgar o maior peixe do rio , já que todos
os que cercam o patriarca (a esposa, Jenny, o gigante,
o dono do circo, as gêmeas siamesas, o poeta e,
sobretudo, o filho) são tocados pelo maravilhoso
dom da fábula: passam a acreditar que há
algo além da realidade cotidiana, passam a crer
na possibilidade de mudança, deles mesmos e dos
outros, por meio da ficção.
Com Peixe Grande, Tim Burton nos propõe
uma verdadeira política da recepção:
qual o efeito da fantasia sobre aqueles a quem se destina
a narrativa? Para Will, representou libertar-se do dia-a-dia
medíocre ao qual estava preso. E para nós?
Paulo Ricardo de Almeida
|