De
um modo geral e grosseiro, podemos dizer que esquizofrenia
de autor ou rende obra-prima ou fornece resultado morno,
causando estranhamento à mesma proporção
que dissolve o interesse do espectador para se tornar
uma obra auto-reflexiva. Peixe Grande, filme
em que Tim Burton põe em conflito o próprio
universo de fantasia que preencheu sua carreira, pertence
ao segundo caso; é um filme onde o estilo de
Burton parece por demais desmobilizado, como se tivessem
friccionado suas enzimas ao ponto da desnaturação
(o que se confirma pela estranha textura do filme, insípida
na maior parte do tempo). É claro que isso não
significa dizer que o filme não seja provido
de muitas imagens interessantes, algumas particularmente
bonitas. Peixe Grande tem seus momentos, belos
momentos (o gigante Karl ajeitando a casa torta, a cena
em que o tempo pára, a primeira seqüência
na cidadela achada em meio à floresta, toda a
seqüência na Guerra da Coréia), mas
que se intercalam com outros não propriamente
estimulantes por vezes até enfadonhos
dentro de um filme marcadamente desigual.
Há um subtexto bastante profícuo no novo
filme de Burton: uma vez indecifráveis em sua
vida banal e corriqueira, os homens podem muito bem
se transportar para uma dimensão imaginária,
onde o fechamento do mundo num diagrama entregue à
maleabilidade do pensamento aliado à previsibilidade
(cujo paroxismo consiste em saber como será a
própria morte, fator fundamental no filme) oriunda
da lógica de funcionamento dos universos ficcionais
aos quais é dada certa autonomia , afasta
a fatalidade do cotidiano, enquanto o absurdo acaba
gerando uma insuspeita noção de liberdade.
Edward Bloom (Ewan McGregor na juventude e Albert Finney
na velhice), o protagonista de Peixe Grande,
justamente narra seu passado em forma de conto fantástico,
com episódios mirabolantes e tipos improváveis
dignos das mais famosas obras de literatura infantil.
Numa falsa-indicação (brilhante, aliás),
o filme começa com Bloom contando suas estórias
para o filho ainda criança, o que sugere que
o exagero das narrativas se dirija a um olhar infantil
que naturalmente atrai a sobrenaturalização.
Com o decorrer do filme, entretanto, percebemos que
mesmo para seu filho adulto (Billy Crudup), assim como
para qualquer outra pessoa, independente da idade, Bloom
sempre conta estórias nas quais preserva o gosto
pela fantasia. O fechamento do ser num universo autônomo
e distinto daquele em que se apresentou primeiramente
é tão crucial para a sua compreensão,
dentro do proposto pelo filme, que somente quando Edward
estiver à beira da morte é que o filho
o compreenderá. Ali, prestes a se tornar obra
fechada, Edward abre a brecha de que seu filho sempre
reclamou a inexistência. Interessante equação
esta que transforma um homem imaginário algo
muito mais próximo e tangível que o homem
vivente. Mas, apesar de todo interesse conteudístico
que Peixe Grande consegue introduzir, parece
bastante problemático o que o filme representa
para a obra de Tim Burton.
Ao assistir a um Marte Ataca ou a um Beetlejuice,
o espectador que não conhece Tim Burton corre
o sério risco de exclamar: "Filme esquisito!".
Fato no mínimo curioso, o espectador acostumado
aos filmes do diretor, por sua vez, fará a mesma
exclamação diante de Peixe Grande,
porém pela lógica inversa: a este último
o filme causará um profundo estranhamento não
pela exposição de um universo fantasioso
tão caro ao cineasta (e parcialmente alheio ao
"Verossímil" ao menos àquele construído
pelo senso comum ou por todo um corpus cinematográfico
atrelado a convenções de gênero),
mas sim pela colocação desse universo
em xeque. A oposição entre realidade (ou
verdade que seja) e fábula (ou mentira que seja)
jamais encontra conforto na mente desse espectador,
que sempre viu em Tim Burton alguém que já
começava o filme posicionando a câmera
do lado de lá do muro que separa os dois universos
aqui confrontados. Por mais que o filme as misture na
sua parte final, no possível intuito de desautorizar
a separação que num primeiro momento aceitou
discutir, não deixa de ser incômoda a coexistência
de duas linhas dramáticas que correm em paralelo
e cujo confronto direto é o que move a narrativa
como um todo (as melhores estórias contadas pelo
pai, a bem da verdade, funcionam como peças autônomas,
mas o filme em si necessita do presente, do "real"
para prosseguir). A reconciliação pai-e-filho
coincide com a reconciliação dessas duas
instâncias narrativas, numa cena a do enterro
que definitivamente não está à
altura da usual qualidade de mise-en-scène
de Burton.
O estranhamento piora quando tomamos conhecimento de
que ele considera este seu trabalho mais pessoal, por
espelhar sua relação com o pai. Se tivermos
de procurar por Tim Burton no filme, não há
como não encontrá-lo no pai, no contador
de estórias, muito antes de qualquer suspeita
de que ele possa ser o filho. A imagem mais recorrente
do personagem do filho é seu rosto sob penumbra,
um limbo ingrato onde a descrença no pai (mais
do que isso, a não admiração) evidencia
um baixo potencial de deslumbramento com o mundo (ficcional?
materialista? pouco importa), o que, a tirar
tão-somente pelos outros Edwards de sua carreira
não o Bloom mas sim o Mãos de Tesoura
e o Wood , passa longe do que vinha se apresentando
como uma provável visão de mundo de Tim
Burton. Enquanto para montar a cinebiografia de um personagem
real, em Ed Wood, ele se dirigiu a um universo
estritamente do cinema (seja este tributário
dos filmes do próprio Ed Wood, do expressionismo
alemão ou de qualquer outra parte), foi construindo
a vida de um personagem ficcional que sua veia de fabulista
se viu obliterada. Crise do autor Tim Burton ou reflexo
da própria ficção cinematográfica
em crise? não custa lembrar que todas
as estórias de Bloom são ambientadas mais
ou menos na reta final da idade de ouro de Hollywood.
O universo ficcional por ele mesmo: aí residia
grande parte da beleza dos filmes de Tim Burton. Em
Peixe Grande, a problematização
desse universo não apenas atravanca a trajetória
de um encantamento que certamente o engrandeceria (tudo
que emociona no filme remete a esse estado de suspensão
da sua oposição de base e de entrega irrestrita
ao fantasioso) como ainda se dá de modo pouco
inspirado (o filme não funciona nem como elogio
da fábula, nem como questionamento válido
do estatuto da ficção no cinema contemporâneo,
nem como drama familiar carece de força
a chave melodramática em que se desenvolvem as
cenas de prestação de contas sentimentais
de Edward, já velho e enfraquecido por uma doença,
com o filho). A obra de Tim Burton se situa acima da
discussão proposta em seu novo filme, e por isso
soa tão incompreensível ele admitir o
outro lado da moeda para depois reafirmar a antiga crença.
Algo como: "viram só como os acontecimentos
ficam muito mais ricos, belos e interessantes quando
filtrados por uma mente criativa?". Para Tim Burton,
contudo, tal afirmação é tão
indecifrável quanto desnecessária (existe
maior elogio à fábula que Edward Mãos
de Tesoura?).
Mesmo a trilha sonora que concorreu ao Oscar e foi composta
por Danny Elfman, cujos trabalhos em companhia tanto
de Tim Burton quanto de Gus Van Sant atestam sua competência,
não passa de uma reedição de suas
músicas anteriores, o que corrobora a impressão
de uma falta de inspiração generalizada
e da recorrência a atalhos (como a escolha óbvia
da fotografia de opor as cenas do presente e as estórias
contadas em tom fantasioso através de alternância
entre cores frias e cores quentes, cenas escuras e cenas
bem iluminadas etc). A verdade é que, em termos
visuais, Burton perdeu muito com a ausência de
Stefan Czapsky, diretor de fotografia que o acompanhava
em outras quimeras, e Peixe Grande não
provoca nem metade da pregnância experimentada
nos grandes filmes do cineasta.
Conforme já dito, Peixe Grande possui
sim seus méritos, a exemplo da cena em que a
cantora coreana, até então filmada de
perfil, muda de posição e revela uma gêmea
siamesa ali a magia se entranha quase que por
imposição. E seria injustiça não
sublinhar o êxito da atuação de
Ewan McGregor, que cada vez mais fornece provas de que
seu verdadeiro nicho, o lugar onde se sente verdadeiramente
à vontade, consiste nas produções
ultra-estilizadas e propensas à fantasia sem
limites (vide Abaixo o Amor, vide Moulin Rouge).
Quanto a Tim Burton, o que Peixe Grande concretizou
foi uma experiência que, dramática e imageticamente,
está mais para o retrocesso do que para a auto-superação.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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