Um pôster de Buster Keaton no quarto de Michele Apicella (personagem vivido por Nanni Moretti em cinco de seus filmes, de Io sono un autarchico a Palombella Rossa) evidencia sua filiação a uma das tradições mais antigas do cinema, a dos diretores-comediantes. Mais do que a codificação do gênero, o timing das gags, o que Moretti herda é o personagem. De Keaton a Tati, de Chaplin a Jerry Lewis até Woody Allen ou Luc Moullet, uma regra sem exceções: o personagem do diretor cômico é necessariamente um desajustado, uma alteridade a priori em relação ao mundo que se filma. Se o ativismo político que sempre acompanhou a carreira de Moretti nunca lhe permitiu fazer uma obra inteiramente desconectada da realidade de seu país e do mundo, ele certamente soube encontrar, nessa versão fabular de si mesmo, o personagem ideal para um tal projeto de cinema. Quem mais poderia ser eleito para falar de uma realidade que lhe parece absurda (impressão que cresce filme a filme, já que o trabalho ficcional não esconde o ímpeto de documentar seu próprio tempo) senão aquele que a vê como um outro, porque apesar de todas as tentativas não consegue se integrar socialmente, não é capaz de cumprir o papel que dele se espera - o que vai desde o acerto de um pênalti (Palombella Rossa) até a realização de um documentário sobre as eleições presidenciais (Aprile)? Invariavelmente Moretti, personagem, falha. Como Carlitos, dispõe da mesma incapacidade em fazer algo funcionar1. Nanni está tão longe de suas atribuições como diretor de cinema em Aprile, ou o papa de Habemus Papam, quanto Carlitos como funcionário da pensão em Um idílio no campo.
Para entender melhor essa herança, basta lembrar os motivos que Moretti elegeu tratar em seus filmes - médicos, esporte, trabalho. Mais do que dados autobiográficos, são atividades sociais. Nesse sentido ele não poderia estar mais longe de Allen e mais perto de Chaplin, apesar da neurose idiossincrática e egocêntrica do protagonista que sempre nos faz lembrar, numa chave mais fácil, do primeiro. A estrutura em episódios, que organiza Caro diário, por exemplo, não é por acaso. Assim como Carlitos, personagem que ultrapassa as fronteiras entre os filmes, o personagem de Moretti, ao passar de uma “esquete” a outra, a um novo espaço-tempo que abriga uma nova encenação (numa estrutura simplificada, a mudança pode ser de um único elemento, como os pacientes no consultório do psicólogo de O quarto do filho), se vê de repente dentro de situações que em teoria deveriam mudar seu papel ou no mínimo sua maneira de agir, mas ele continua sempre o mesmo, teimosamente incólume. Em Aprile, elipses enormes marcam essas passagens de um lugar (com toda a sua especificidade) a outro – o set do filme de época, a gravação do documentário, o nascimento do filho – sem que em nenhum momento sejam reforçadas as relações causais ou mesmo cronológicas entre eles. Seria um erro dizer que os filmes de Moretti são a-narrativos, mas é preciso observar que antes da trama2, o que existe é uma sucessão de situações que se acumulam em direção ao limite do nonsense (que está longe de não ter sentido). Nesse ponto, Moretti empresta também a estrutura formal clássica da comédia, ou de um filme como Amarcord, que vem à mente diversas vezes ao longo de Caro diário ou Aprile.
A diferença entre Moretti e Carlitos reside no fato de que este último (personagem, não diretor) pouco se importa com o entorno, está naturalmente mais preocupado com a própria sobrevivência, enquanto o primeiro (personagem e diretor), do alto de sua classe média, tentará insistentemente intervir não para salvar sua pele, mas com alguma esperança no país e na sociedade, ignorando sua total impotência. “Parla qualche cosa di sinistra!”, ele grita para a televisão enquanto assiste ao debate presidencial e vê Massimo D’Alema, o candidato à esquerda (ou de centro-centro-esquerda), se afundar no silêncio. O herói, se é que podemos chama-los assim, se desloca, e não é exagero dizer que se antes era necessário ir ao cinema assistir ao vagabundo (e reconhecer sua existência), hoje é necessário ir assistir ao inconformado. Em ambos os casos, a imagem de oposição é a de um mundo absurdo porém absolutamente real, por mais fantásticas que sejam as peripécias de seus personagens. Moretti, tal qual seu duplo na tela, vive assombrado pela função que deve desempenhar enquanto cineasta diante do mundo. Se aquele que vive na tela é incapaz de cumprí-la, o que está fora a persegue como poucos, com filmes angustiados, nem sempre agradáveis apesar do contrapeso cômico (o mesmo com Chaplin). Palombella Rossa, talvez um dos trabalhos mais eminentemente políticos de Moretti, todo passado em torno de uma partida de pólo aquático, é um dos filmes mais obsessivos já feitos, em que não sair do lugar é o gesto fundamental.
Moretti é um Carlitos possível para o nosso tempo. Um século se passou e hoje podemos dizer que o capitalismo aprendeu a dissimuladamente mostrar-se menos perverso às multidões, incorporou as cores, a ideia de uma participação festejada. As relações são complexas, não há mais a mesma fronteira tão definida entre os que estão dentro e os que estão fora, no lugar uma multidão de semi-incluídos, um pé lá outro cá. Moretti, personagem, pode nunca ter sofrido os problemas concretos, de natureza propriamente financeira, de Carlitos (ou Mr. Verdoux, ou até mesmo o rei em Nova York), mas vive constantemente à margem, com sentimentos sempre dissonantes da tonalidade afetiva partilhada pela comunidade à qual tenta pertencer - sua família, sua equipe de pólo aquático, sua Itália.
Alice Furtado
1. Bazin diria "cada vez que Carlitos tenta utilizar um objeto de acordo com seu modo utilitário, quer dizer social, ou ele o faz de maneira ridiculamente estabanada (em particular à mesa), ou são os próprios objetos que se recusam, no limite, voluntariamente"
2. A exceção é O Quarto do Filho.
Agosto
de 2012
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