Faz
mais ou menos dez dias que escrevi a crítica de As
Melhores Coisas do Mundo. E gostaria de voltar ao assunto em
alguns pontos:
- O
filme se vendeu
como um êxito de dramaturgia que respeita o modo como os
adolescentes dialogam entre si, o que de fato ocorre em alguns
momentos, menos por conta da competência dos roteiristas do
que
pelo frescor dos atores debutantes, não-profissionais, pouco
contaminados pelas escolinhas de teatro e – sabedoria
mínima
da diretora – incentivados a mudar as falas do roteiro
tornando-as mais naturais, mais próximas de como eles se
comportam em sua linguagem cotidiana. Mas um
filme com aquele comentário feminista de Pedro (Fiuk) para o
irmão (“você pode ir a um puteiro, se
quiser
perder a virgindade humilhando uma mulher”) não
pode ser
considerado um filme que realmente fala a linguagem viva e
espontânea
dos adolescentes.
-
Dei bola preta no
quadro de cotações, mas devo confessar que
não
acho o filme um equívoco completo e absoluto. Fernando
Miguez
e Gabriela Rocha são dois talentos descobertos; os momentos
em
que simpatizo com seus personagens se devem ao carisma deles. E todo
o elenco adolescente de apoio também é muito bom.
Em
compensação, tudo que o casting acertou na
escolha da
molecada não-profissional foi contrabalançado por
alguns desastres no elenco de famosos. Tentaram transformar o Fiuk na
versão
brasileira do Louis Garrel de Amantes Constantes.
Tinha tudo para dar errado e deu. E o que dizer de Paulo
Vilhena fazendo um professorzinho de violão que nas horas
vagas se torna psicólogo de Mano?
-
Impossível não
detestar a cena em que Mano perde a virgindade. A menina não
é
mostrada, e isso é tão mal disfarçado
que a cena
adquire um aspecto morto, mecânico, falso. A câmera
está
numa posição de isenção, um
“não
mostro nem deixo de mostrar”; há um jogo de
desfoque
terrível: o foco sai da ação e se
transfere para
uns enfeites coloridos em primeiro plano. O esvaziamento
dramático
dessa cena é inexplicável. No clássico
Picardias
Estudantis, a personagem de Jennifer Jason Leigh perde a
virgindade no banco de reservas de um campo de futebol. Durante o
ato, tem um plano subjetivo dela lendo as
pixações
obscenas que estão no teto. Aquilo é mise
en scène,
é a partilha de uma experiência, é o levantamento
de questões (o que podemos inferir do sentimento dela a partir
daquele plano? – o desfoque em As Melhores Coisas do Mundo, inversamente, cala qualquer tipo de questão).
- O
fundo do poço
é a cena em que Francisco Miguez e Denise Fraga jogam ovos
na
parede da cozinha. Sem querer insistir nas
comparações
e já insistindo: em Kramer vs. Kramer, o
casal se
separa, a mãe vai embora e deixa o filho de sete anos com o
pai (Dustin Hoffman). No dia seguinte, o pai acorda (ou é
acordado pelo filho, não lembro), faz um café
forte
demais, se embola todo ao preparar as torradas para o filho, suja a
pia ao quebrar os ovos, queima a mão na frigideira, deixa o
suco cair no chão. Passadas algumas semanas, o menino
acorda,
vai na cozinha, pega dois pratinhos, um pacote de donuts, serve um
donut pra ele, outro pro pai, que chega logo em seguida com o suco.
No final do filme, um ano e meio após a
separação,
o pai prepara as french toasts com total
desenvoltura, sem
sujar nada, sem errar a receita. Isso é o mundo real, ou
–
para não limitar a questão a um valor de realismo
–
isso é o mundo que nos interessa ver: as pessoas enfrentam
as
mudanças. Na cena do primeiro café da
manhã, o
personagem de Dustin Hoffman está transtornado, ferido por
dentro, é evidente, mas há uma
situação
concreta solicitando-o (preparar o café da manhã)
e
essa tarefa impõe que ele viva esse drama ao mesmo
tempo em
que executa uma ação prática no mundo
de todos
os dias. O drama se entranha e se impregna na
ação.
Em As
melhores
coisas do mundo, diferentemente, Mano e sua mamãe
purgam
suas mazelas (sentimentais, existenciais) atirando ovos na parede,
gesto escapista, impotente, patético,
teatralização
grotesca que decorre, no fundo, da incapacidade dos realizadores do
filme (roteirista, diretora) de
compreender como uma pessoa age
em situações nas quais se veja fragilizada.
É
a mesma lógica das cenas em que Mano fica parado em algum
lugar enquanto a cidade se move ao fundo em alta velocidade. Pobreza
de dramatização que pode facilmente se converter
em mil
interpretações rasas sobre o estado
psicológico
do personagem.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Maio de 2010
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