Não
há
uma forma única de se fazer um filme sobre/com/para
adolescentes. Pode ser uma radiografia institucional (High
School,
Frederick Wiseman, 1968), pode ser um filme que mescla um olhar
etnográfico a uma coletânea de
peripécias no
estilo aquele-dia-em-que-tudo-acontece (Wassup Rockers,
Larry
Clark, 2005), pode ser um filme sobre as diferenças de
classe
(Wassup Rockers
de novo;
A Garota de Rosa Choque,
Howard
Deutch, 1986), pode ser um drama coletivo cruel e
demolidor
(Passe ton bac d'abord, Pialat, 1979), pode ser um
filme de
terror (Carrie, De Palma, 1976). Pode ser uma
porção
de coisas. Mas se há uma vertente dominante no
“filme de
adolescente” é aquela elaborada em torno dos
famosos
ritos de passagem, que constituem a visão
romântica do
momento especial em que um jovem descobre seu primeiro amor e/ou
enfrenta seu primeiro grande obstáculo longe dos pais. Os
anos
de colegial e o começo da vida universitária
são
os contextos mais freqüentes.
O filme pode contar com apenas um ou dois personagens principais, mas
é crucial que haja ao redor deles um conjunto diversificado
de
personagens: o cool, o nerd, o desportista, a gostosona, a esquisita etc. A situação dramática
mais comum é
o aluno tímido e diferente da maioria (em alguns casos, o
rejeitado da turma) tentando sair com a menina mais popular da
escola. Paralelamente, uma expectativa maior mobiliza todos: uma
competição esportiva, uma festa (no caso dos
filmes
americanos, a prom night, o baile de fim de ano
onde a escola
elege o casal da temporada), o vestibular, a escolha do novo
grêmio
estudantil.
É
nesta última opção, as
eleições
para o grêmio, que As Melhores Coisas
da Vida se
apóia para articular os dramas íntimos dos
personagens
adolescentes a uma preocupação de ordem coletiva.
Três
chapas se formam na escola em que Mano e seus amigos estudam: a dos
socialistas, a dos capitalistas e a dos politicamente corretos. Mais
ou menos três versões em miniatura e caricatura
dos três
principais partidos que estarão em confronto nas
próximas
eleições presidenciais. Forço a barra?
Talvez...
Mano
(Francisco Miguez)
e Carol (Gabriela Rocha) estão do lado dos politicamente
corretos. Pregam a tolerância, a diversidade, a paz.
Não
sem antes enfrentar as nefastas conseqüências do
preconceito e da estigmatização, ela por ter
beijado um
professor, ele por ter um pai gay. O filme é uma mistura
ingrata de comédia romântica adolescente e
melodrama
familiar; tenta se articular dentro de uma estrutura de filme
adolescente tradicional, mas se perde num drama totalmente
estrangeiro a esse universo. Mano e Carol estão destinados a
ficar juntos no final, após vencidos os devidos
obstáculos,
isso é óbvio desde o início (o que
não é
nenhum problema). Mas o enredo romântico é em
vários
momentos ofuscado pela trama familiar: Mano, sua mãe e seu
irmão precisam lidar com o desmantelamento da
família
depois que o pai, um acadêmico bem sucedido, vai morar com
outro homem.
Em
muitos dos melhores
filmes de adolescente, os pais são apenas vultos, figuras
praticamente ausentes. O conflito de gerações
–
característica do melodrama clássico, por exemplo
–
não tem muito lugar no gênero aqui em
questão. As
coisas se dão entre pessoas da mesma idade, na
dialética
imanente de suas oposições. Nos filmes de John
Hughes
(Mulher Nota 1000, Curtindo a Vida Adoidado)
e em
outros clássicos do gênero (Negócio
Arriscado), é típico os pais viajarem
na primeira
cena e só voltarem na última, para encontrar a
casa
arrumadinha, depois da bagunça ter sido feita e desfeita
pelo
filho. Um moleque sozinho em casa durante o fim de semana é
o
pretexto ideal para que um filme mostre os adolescentes exercendo sua
maravilhosa especialidade: fazer merda. O mundo adulto é em geral um
entrave à
ficção adolescente. É preciso criar,
pela
ausência mesma dos pais, o espaço aberto em que a
energia libidinal transbordante dos adolescentes poderá
circular livremente. Um dos pontos de conflito do cinema adolescente,
aliás, se dá quando a ausência dos pais
é
preenchida por outras instâncias castradoras – o
professor, a polícia, a Lei. Instâncias que
poderão ser vencidas ou
não, mas em
todo caso serão enfrentadas. Um bom filme
adolescente
precisa ser, em alguma medida, um culto à rebeldia.
Algo
que As Melhores Coisas do Mundo
definitivamente não
é. O filme é sobre a adolescência mas
é
vigiado por um superego de adulto. E de adulto conservador.
Daí
a impressão que inevitavelmente temos: os adolescentes que o
filme mostra parecem ser criados dentro de uma bolha muito
frágil,
muito suscetível. Claro: é o olhar dos adultos
que
querem eternamente escoltar seus filhos na vida social, afetiva e
tudo mais (pensar na cena da reunião dos pais na escola), ao
invés de dar a eles as referências
necessárias e,
em seguida, soltá-los no mundo. Os
adolescentes de As
Melhores Coisas do Mundo
não saem de seu aquário em nenhum momento.
Não
há ferida (social, moral) que possa abri-los para uma
realidade maior. São personagens aparentemente protegidos do
choque de realidade pelo qual eles precisam passar para crescer,
conhecer o mundo.
Inácio Araújo foi na mosca ao comentar o filme em
seu
blog: “É uma história do 'apartheid'
brasileiro,
que começa pela educação, por sinal, e
aliás
o filme pode até ser instrutivo a esse respeito: ele
é
muito fiel ao trabalho desses colégios onde os filhos dos
ricos paulistas são confinados, sob segurança
estrita,
aprendem a ser criativos e tal, mas não mantêm
contato
com o mundo (não é culpa dos colégios:
o mundo
estudantil brasileiro, paulista ao menos, está
constituído
assim)”. Os únicos vilões do filme,
como ele bem
destacou, são os personagens que espalham as
notícias
pela escola (a menina que tem o blog de fofocas e o ex-melhor amigo
de Mano). Todo o resto poderá se harmonizar ao final. A
questão narrativa do filme, no fundo, pode se resumir a: o que
fazer para salvar o aquário?
Quem
entra no cinema
pensando que vai ver um filme de adolescente surpreende-se com um
drama que reina quase absoluto na primeira meia-hora: a
separação
dos pais de Mano como uma grande tragédia familiar. À
Deriva
já era assim também. Que droga de filme adolescente
é esse em que o ponto de partida é um draminha de
divórcio? Pelo visto, os jovens da elite brasileira estão
totalmente dependentes do bom funcionamento da
família tradicional e dos valores burgueses convencionais, e seu
grande drama consiste na dissolução de ambos. Em vez de
liberá-los para fazer merda por aí, o filme
prende seus
personagens adolescentes numa redoma em que seus destinos parecem
sobredeterminados pelas atitudes dos pais. A grande angústia
dos adolescentes desses filmes não está na
dificuldade
de escapar às restrições impostas
pelas
instituições (a família sendo a
primeira delas)
e, assim, evitar a simples repetição de um ciclo
(aprender uma profissão, casar, ter filhos, ter um carro,
uma
casa...), mas na possibilidade iminente dessa
instituição
ter falhado e esse ciclo ter se interrompido na
geração
anterior, não podendo se repetir com eles. Ou seja, a
lógica
se inverte. Num filme adolescente que se preze, o protagonista luta
para se livrar da dependência dos pais e conquistar o
território de sua vida futura. Aqui, ele se abala quando
descobre que o caminho traçado por seus pais, e que ele
estaria naturalmente destinado a herdar sem esforço, sem
conquista, sofreu um desvio. Os protagonistas nesses dois filmes
só
decidem encontrar um caminho próprio, fazer o que sua
condição
adolescente os impele a fazer (perder a virgindade, experimentar
sensações novas) quando imersos em
catástrofes
familiares, quando se decepcionam com os pais por eles terem comprometido o conforto afetivo do lar doce lar. Um pathos
bizarro. Ou talvez um testemunho fiel do grande atraso moral em que
vivemos. Um atraso que se cristaliza mais intensamente na
consciência
dos jovens.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Abril de 2010
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