AS MELHORES COISAS DO MUNDO
Laís Bodanzky, Brasil, 2010

Não há uma forma única de se fazer um filme sobre/com/para adolescentes. Pode ser uma radiografia institucional (High School, Frederick Wiseman, 1968), pode ser um filme que mescla um olhar etnográfico a uma coletânea de peripécias no estilo aquele-dia-em-que-tudo-acontece (Wassup Rockers, Larry Clark, 2005), pode ser um filme sobre as diferenças de classe (Wassup Rockers de novo; A Garota de Rosa Choque, Howard Deutch, 1986), pode ser um drama coletivo cruel e demolidor (Passe ton bac d'abord, Pialat, 1979), pode ser um filme de terror (Carrie, De Palma, 1976). Pode ser uma porção de coisas. Mas se há uma vertente dominante no “filme de adolescente” é aquela elaborada em torno dos famosos ritos de passagem, que constituem a visão romântica do momento especial em que um jovem descobre seu primeiro amor e/ou enfrenta seu primeiro grande obstáculo longe dos pais. Os anos de colegial e o começo da vida universitária são os contextos mais freqüentes. O filme pode contar com apenas um ou dois personagens principais, mas é crucial que haja ao redor deles um conjunto diversificado de personagens: o cool, o nerd, o desportista, a gostosona, a esquisita etc. A situação dramática mais comum é o aluno tímido e diferente da maioria (em alguns casos, o rejeitado da turma) tentando sair com a menina mais popular da escola. Paralelamente, uma expectativa maior mobiliza todos: uma competição esportiva, uma festa (no caso dos filmes americanos, a prom night, o baile de fim de ano onde a escola elege o casal da temporada), o vestibular, a escolha do novo grêmio estudantil.

É nesta última opção, as eleições para o grêmio, que As Melhores Coisas da Vida se apóia para articular os dramas íntimos dos personagens adolescentes a uma preocupação de ordem coletiva. Três chapas se formam na escola em que Mano e seus amigos estudam: a dos socialistas, a dos capitalistas e a dos politicamente corretos. Mais ou menos três versões em miniatura e caricatura dos três principais partidos que estarão em confronto nas próximas eleições presidenciais. Forço a barra? Talvez...

Mano (Francisco Miguez) e Carol (Gabriela Rocha) estão do lado dos politicamente corretos. Pregam a tolerância, a diversidade, a paz. Não sem antes enfrentar as nefastas conseqüências do preconceito e da estigmatização, ela por ter beijado um professor, ele por ter um pai gay. O filme é uma mistura ingrata de comédia romântica adolescente e melodrama familiar; tenta se articular dentro de uma estrutura de filme adolescente tradicional, mas se perde num drama totalmente estrangeiro a esse universo. Mano e Carol estão destinados a ficar juntos no final, após vencidos os devidos obstáculos, isso é óbvio desde o início (o que não é nenhum problema). Mas o enredo romântico é em vários momentos ofuscado pela trama familiar: Mano, sua mãe e seu irmão precisam lidar com o desmantelamento da família depois que o pai, um acadêmico bem sucedido, vai morar com outro homem.

Em muitos dos melhores filmes de adolescente, os pais são apenas vultos, figuras praticamente ausentes. O conflito de gerações – característica do melodrama clássico, por exemplo – não tem muito lugar no gênero aqui em questão. As coisas se dão entre pessoas da mesma idade, na dialética imanente de suas oposições. Nos filmes de John Hughes (Mulher Nota 1000, Curtindo a Vida Adoidado) e em outros clássicos do gênero (Negócio Arriscado), é típico os pais viajarem na primeira cena e só voltarem na última, para encontrar a casa arrumadinha, depois da bagunça ter sido feita e desfeita pelo filho. Um moleque sozinho em casa durante o fim de semana é o pretexto ideal para que um filme mostre os adolescentes exercendo sua maravilhosa especialidade: fazer merda. O mundo adulto é em geral um entrave à ficção adolescente. É preciso criar, pela ausência mesma dos pais, o espaço aberto em que a energia libidinal transbordante dos adolescentes poderá circular livremente. Um dos pontos de conflito do cinema adolescente, aliás, se dá quando a ausência dos pais é preenchida por outras instâncias castradoras – o professor, a polícia, a Lei. Instâncias que poderão ser vencidas ou não, mas em todo caso serão enfrentadas. Um bom filme adolescente precisa ser, em alguma medida, um culto à rebeldia.

Algo que As Melhores Coisas do Mundo definitivamente não é. O filme é sobre a adolescência mas é vigiado por um superego de adulto. E de adulto conservador. Daí a impressão que inevitavelmente temos: os adolescentes que o filme mostra parecem ser criados dentro de uma bolha muito frágil, muito suscetível. Claro: é o olhar dos adultos que querem eternamente escoltar seus filhos na vida social, afetiva e tudo mais (pensar na cena da reunião dos pais na escola), ao invés de dar a eles as referências necessárias e, em seguida, soltá-los no mundo. Os adolescentes de As Melhores Coisas do Mundo não saem de seu aquário em nenhum momento. Não há ferida (social, moral) que possa abri-los para uma realidade maior. São personagens aparentemente protegidos do choque de realidade pelo qual eles precisam passar para crescer, conhecer o mundo. Inácio Araújo foi na mosca ao comentar o filme em seu blog: “É uma história do 'apartheid' brasileiro, que começa pela educação, por sinal, e aliás o filme pode até ser instrutivo a esse respeito: ele é muito fiel ao trabalho desses colégios onde os filhos dos ricos paulistas são confinados, sob segurança estrita, aprendem a ser criativos e tal, mas não mantêm contato com o mundo (não é culpa dos colégios: o mundo estudantil brasileiro, paulista ao menos, está constituído assim)”. Os únicos vilões do filme, como ele bem destacou, são os personagens que espalham as notícias pela escola (a menina que tem o blog de fofocas e o ex-melhor amigo de Mano). Todo o resto poderá se harmonizar ao final. A questão narrativa do filme, no fundo, pode se resumir a: o que fazer para salvar o aquário?

Quem entra no cinema pensando que vai ver um filme de adolescente surpreende-se com um drama que reina quase absoluto na primeira meia-hora: a separação dos pais de Mano como uma grande tragédia familiar. À Deriva já era assim também. Que droga de filme adolescente é esse em que o ponto de partida é um draminha de divórcio? Pelo visto, os jovens da elite brasileira estão totalmente dependentes do bom funcionamento da família tradicional e dos valores burgueses convencionais, e seu grande drama consiste na dissolução de ambos. Em vez de liberá-los para fazer merda por aí, o filme prende seus personagens adolescentes numa redoma em que seus destinos parecem sobredeterminados pelas atitudes dos pais. A grande angústia dos adolescentes desses filmes não está na dificuldade de escapar às restrições impostas pelas instituições (a família sendo a primeira delas) e, assim, evitar a simples repetição de um ciclo (aprender uma profissão, casar, ter filhos, ter um carro, uma casa...), mas na possibilidade iminente dessa instituição ter falhado e esse ciclo ter se interrompido na geração anterior, não podendo se repetir com eles. Ou seja, a lógica se inverte. Num filme adolescente que se preze, o protagonista luta para se livrar da dependência dos pais e conquistar o território de sua vida futura. Aqui, ele se abala quando descobre que o caminho traçado por seus pais, e que ele estaria naturalmente destinado a herdar sem esforço, sem conquista, sofreu um desvio. Os protagonistas nesses dois filmes só decidem encontrar um caminho próprio, fazer o que sua condição adolescente os impele a fazer (perder a virgindade, experimentar sensações novas) quando imersos em catástrofes familiares, quando se decepcionam com os pais por eles terem comprometido o conforto afetivo do lar doce lar. Um pathos bizarro. Ou talvez um testemunho fiel do grande atraso moral em que vivemos. Um atraso que se cristaliza mais intensamente na consciência dos jovens.

Luiz Carlos Oliveira Jr.


Abril de 2010