CONTRA-CRÍTICA: LE MONDE VIVANT, DE EUGÈNE GREEN

Em Le Monde vivant, a moral em jogo é de que a palavra liberta. Mas ela liberta o quê? O filme tem a aparência de uma fábula mágica onde basta se dizer o que se é (ou o que se quer ser) para que assim seja na realidade do filme – “eis o leão”, diz alguém, e não importa que o que apareça na tela seja na verdade o plano de um cachorro. Mas não se trata aqui de uma ficção que opera milagres, porque o filme nunca consegue afastar de si um certo ar de negociação. Há mais um sentimento de aceitação (prazeroso, risonho, certo) que propriamente de fascinação e delírio por aquele mundo. A idéia, o projeto de Green pode ser descrito mais ou menos assim: a ficção como um caminho livre que só presta contas a ela própria, à sua capacidade de articular, passando por cima de todo o resto (trama, imagens, personagens) se for preciso. E essa prestação de contas, que conta com o espectador como testemunha, acaba surgindo como algo bastante engraçado e esquizofrênico: a ficção às vezes zomba de si mesma, num tipo de sátira que se passa dentro das brechas deixadas pela linguagem e pela língua (“brecha” é uma palavra importante para o filme).

O que falta então a Le Monde vivant? Falta substância. Ou talvez falte, no mínimo, um ogro visto por inteiro (montagem proibida). O filme é feito de quê? É uma narrativa lacunada (trucada), quebradiça, um jogo suave que aparece e desaparece da tela quase como se nem mesmo existisse. Todas as encenações são absolutamente falsas, porque carecem tanto de verdade cênica como de sentimento religioso: a personagem distribui o pão às crianças e diz algo como: “o pão e a palavra são a origem da vida”. E daí? O que importa isso ao filme? A cena se apóia em um signo longínquo, que não aporta absolutamente nada à narrativa – porque Green faz uma sátira lingüística, não um filme religioso (no sentido de uma profissão de fé). Le Monde vivant é uma espécie de filme-enunciado onde a ficção é como que tragada por seus próprios buracos, pelas suas próprias brechas, pelo estilo, pelo “rigor da câmera” – e ela desaparece absolutamente.

Fica ainda mais difícil de vê-lo como o grande filme que muitos aqui defendem assistindo-o apenas hoje, depois de A Religiosa Portuguesa, com certeza um dos filmes mais interessantes que passaram pelo Brasil no ano passado. O que há de tão diferente entre dois filmes que parecem a princípio tão afinados em estilo? Em A Religiosa Portuguesa, a narrativa é dilatada, os planos parecem pesar uma tonelada (eles ficam na cabeça, por meses). Existe uma dificuldade, alguma coisa que antecede e transborda do filme (uma cidade, seus signos históricos, sua beleza) e com que ele tem de lidar. O diálogo no final entre a protagonista e a freira (ou santa) que passa suas noites numa capela da cidade, ainda que tenha um sentido justificador (isto é, de dar um sentido religioso mais ou menos concreto às ações mundanas da protagonista), nunca encobre a experiência do filme em si. Novamente, não se trata de uma ficção que opera milagres, porque é como se o milagre já existisse, antecipado na própria beleza da imagem. Um plano que aparentemente pode parecer um pouco gratuito coloca bem a diferença que há entre os dois filmes. Em uma das cenas de filmagem, Green mostra o movimento de um operador de câmera ao longo uma panorâmica: o corpo imóvel, rígido, silencioso, o movimento cerrado de giro daquele corpo robótico (câmera, operador, tripé etc.) que se desloca, mesmo sem sair do lugar, até encontrar a margem exata de uma das extremidades do quadro. O plano, que lembra de longe as cenas de filmagem em O Desprezo (o fundo azul indissolúvel, uma certa visão épica do ato de filmar, simultaneamente sua limitação e sua transcedentalidade), não é só uma metáfora do rigor do filme, ele significa alguma coisa, em si (a pura fascinação por aquele corpo conjunto de operador e câmera, filmado na simetria de um deus) e em relação às outras imagens (contraplano narrativo e metafórico do filme). O filme todo é esse afundamento narrativo na sua própria matéria, na própria substância de que ele é feito (a ficção dentro da ficção).

Mas voltemos a Le Monde vivant, porque ele é o verdadeiro assunto do texto. Nele, Green é exatamente o oposto de um cineasta como Straub, porque aqui a palavra aparece descolada da imagem, ela se antecipa à imagem (a utilidade da encenação frontal parece ser justamente fazer o verbo escapar da imagem, passar à frente dela). Se Straub sempre lutou com todas as suas forças para que o mundo deixasse de ver a atuação em seus filmes sob o prisma da “estranheza” ou do “distanciamento”, Green vai no sentido justamente contrário; ele busca um não-tom nas falas para produzir artificialidade, que é a base da negociação que o filme estabelece com o espectador. Mas aonde leva isso tudo? Me parece que filme pode até ser um belo objeto pitoresco para quem está cansado do ranço do cinema contemporâneo (fazendo justiça ao trabalho da pauta que figura na seção de artigos desta edição da Contracampo), mas ele está longe de apontar caminhos para onde quer que seja.

Calac Nogueira

Junho de 2010