Film Socialisme, Jean-Luc Godard, Suíça, 2010
(UN CERTAIN REGARD)
Ainda que tentemos assisti-lo quantas vezes for possível, o
novo filme-bricolagem de Jean-Luc Godard é mais uma de suas obras
incontornáveis, que põem em cena infinitas e inesgotáveis questões. Um filme
sobre o qual é realmente difícil falar sem ser simplista, mas que, no entanto,
nos obriga a confrontá-lo, até porque a essa altura já é seguro dizer que se
trata do grande filme do Festival de Cannes desse ano. Tentarei fazer o único
texto que me parece possível e justo – uma resposta pessoal a algumas das suas provocações.
***
De imediato, é impossível não ter a atenção desviada para o
que é feito deliberadamente na tradução dos diálogos do filme, que ocorrem em
múltiplas línguas, embora predominantemente em francês. Apesar de o texto dito
pelos personagens parecer sempre composto de sujeito e predicado, gramaticalmente
completo, o que vemos nas legendas (quando elas existem) é uma supressão
absoluta da sintaxe, restando apenas duas ou três palavras-chaves que nos dão
um sentido geral daquilo que é dito, se incorporando assim à imagem como mais
um dos elementos da bricolagem godardiana. Essa escolha, se para muitos
a princípio parecerá absurda (e é excelente que o Festival a tenha respeitado),
no limite é apenas uma derivação natural do cinema de J.-L.G. Pois o que ele
faz e sempre fez essencialmente é associar imagens a idéias (ou pensamentos), um
principio elementar do cinema. Para Godard, toda imagem sem idéia é inútil,
assim como de nada serve, para um homem de cinema, uma idéia sem imagem.
É claro que nada é tão simples assim. Vincular uma idéia a
uma imagem é tanto um dos princípios do cinema quanto serve de moto perfeito para a publicidade. Godard, mais do que ninguém, tem plena consciência
disso, e é por isso que alguns dos efeitos mais impactantes de Film
Socialisme vêm justamente da construção dramática, que vai sendo tecida de
forma razoavelmente aleatória na primeira parte do filme, quando acompanhamos
alguns personagens (entre os quais, a cantora Patti Smith e o filósofo Alain
Badiou representando eles mesmos) que fazem um cruzeiro no mediterrâneo e
discutem, entre outras coisas, sobre história, dinheiro e geometria. Ao mesmo
tempo, o filme vem complementar estas questões através de uma colagem de
imagens de arquivo que se alternam às do navio, que por sua vez também tomam a
forma de colagem – de texturas e de sons. Godard alterna planos filmados em um HD
que exacerba a cor e a limpidez a um limite quase irreal (como num comercial de
perfume) com imagens toscamente registradas em um aparelho de celular. Cabe
aqui uma observação: incrível como parte exclusivamente dos veteranos (Manoel
de Oliveira e agora Godard, segundo realizador mais velho da mostra Un Certain
Regard) toda tentativa de atualizar a ontologia da imagem a partir das novas
possibilidades tecnológicas.
Passando para a segunda parte, o filme alcança o ponto
máximo de narratividade (no entanto de maneira igualmente não-convencional), a
partir de uma dramaturgia familiar que vem encontrar seu lugar ao lado do
discurso global do filme, mas não necessariamente intrincada nele. Nesse
momento não há mais imagens de arquivo nem mudança de registro (mantém-se
apenas o HD). O cenário é a casa/posto de gasolina da notável família Martin, que
este ano concorrerá às eleições, enquanto uma jornalista e uma cinegrafista
esperam indefinidamente por uma entrevista. Os Martin representam no filme um
posto de resistência (tal qual sugere um intertítulo que, na conclusão da
história, os associa à Resistência francesa na Segunda Guerra) à política e à
cultura da sociedade contemporânea. O filho mais novo, um garoto de não mais de
sete anos, veste a camisa do partido comunista, escuta música clássica e pinta
como Renoir. Sua irmã mais velha se recusa a utilizar o verbo ser e ameaça
matar aqueles que falarem mal de Balzac. Uma lhama e um burro terminam de
compor o cenário absurdo no qual vivem esses personagens – para que possa haver
uma alternativa política ao modo como as coisas se encontram hoje, se trata
antes de dinamitar todas as convenções.
Film Socialisme se conclui em uma terceira parte onde
finalmente não há mais personagens, mas apenas um emaranhado de imagens e de
textos que complexificam boa parte das questões que já haviam aparecido até ali,
assim como encaminham outras. Planos de The Cheyennes de John Ford, entre
outros filmes, vêm unir-se a uma cena de Les Plages d’Agnès onde vemos
dois trapezistas saltando no ar, sobre a qual o próprio Godard diz (em
entrevista à Inrockuptibles1) ter achado a imagem perfeita para a
representação da paz entre Israel e Palestina. Film Socialisme desenvolve
através de suas mil imagens um pensamento trágico sobre o estado atual do mundo
e da Europa, cujo presente traz as marcas indeléveis de um passado de guerras,
repressões e imperialismo – hoje os canalhas são sinceros, eles acreditam na
Europa – é a principal frase do filme, que será repetida até que possamos
decorá-la. Trágico, digo, não apenas por sua gravidade, mas também por sua
estrutura em três atos, onde cada um é a parte constituinte que não poderia
faltar – um primeiro que se planifica sobre o presente de um mundo
irremediavelmente contaminado pelo dinheiro, um segundo que representa uma
possibilidade (ainda que utópica e surrealista) para o futuro, e um terceiro,
que vasculha fundo o passado da humanidade até chegar a um ponto em que não há
mais imagem possível, se não o intertítulo conclusivo: “No comment”.
Alice Furtado
1. Uma tradução em inglês encontra-se disponível no blog Cinemasparagus.
Maio de 2010
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