“Ce
qui est, est.” / “Ce qui est dit, est
dit.”
Em
seu célebre artigo “Génie de Howard
Hawks”
(1953), Jacques Rivette diz que “a evidência
é a
marca do gênio” do diretor de Monkey
Business.
O estilo de Hawks deve ser buscado na parcela puramente
física
do filme, no que este tem de mais imediato, de mais associado
à
ação, ao gesto, ao homem reagindo às
modulações
do espaço. “Os
passos do herói traçam a figura de seu
destino”.
O primordial é da ordem da
ação. A
inteligência artesanal de Hawks se aplica diretamente ao
mundo
sensível: “Ele prova o movimento ao andar, a
existência
ao respirar. O que é, é.”1
No
primeiro plano de Le Monde vivant
(2003), de Eugène Green, vemos um quarto vazio, com uma cama
arrumada e uma pequena janela ao fundo. Ocorre um breve
diálogo
em off. Trata-se de
um casal conversando sobre o desaparecimento do filho, quase como se
fosse uma trilha de comentário sobre a ausência
que o
quarto vazio, em si, já significa.
A mãe diz que fazem três dias desde que o filho
desapareceu, o pai diz que o filho manterá contato, a
mãe
crava que não, o pai pergunta como ela pode saber, ela
responde: “O que está dito, está
dito”.
O
filho disse que não retornaria e assim será, pois
a
palavra empenhada contém a verdade, a única
verdade
possível. Se em Hawks a evidência do mundo estava
na
ação, em Le Monde vivant ela se desloca para aquilo que, em Green, é o elo vivo entre
o
signo e a coisa: a palavra. O mundo vive
em nós através da palavra. E a
recíproca é
verdadeira, já que a palavra, para vir à luz,
precisa
ser transcrita na matéria do mundo ou passar por um corpo
para
se tornar fala.
A
mise
en scène,
na visão de Rivette sobre o cinema de Hawks, prolongava as
vibrações do mundo nos movimentos do corpo e
vice-versa. Em Green, por sua vez, é por meio da palavra que
o
homem cria seu elo definitivo com o mundo. Ora, tornar
sensível
o elo entre o homem e o mundo nada mais é que a tarefa
principal da mise
en scène
descrita por Rivette. O desdobramento lógico é
que a
palavra, centro e origem da mise
en scène de
Green, cumpre a mesma função que o combate
corporal e
as lutas calorosas cumpriam enquanto meio natural dos heróis
de Hawks. Para Green, “tudo parte da língua, mesmo
as
coisas visuais”2. Sua estética se define pela
tríade
homem-palavra-mundo, ou pelas relações do homem e
do
mundo tendo como mediador a palavra, a linguagem. Talvez as frases de
Rivette (cujo Hurlevent [1985], aliás, já apontava em parte o caminho que
Green
seguiria) e do início de Le
Monde Vivant
possam se fundir numa só: o que é,
está dito.
Dar corpo ao espírito
das palavras
Mediante
o uso enfático da palavra, o cinema de Green se abre para um
mundo que extrapola o corpóreo e o terreno e atinge o
misterioso, o espiritual, o mitológico – em
resumo: o
poético. Em Toutes
les nuits,
o jovem Jules (Adrien Michaux) afirma – para o choque de seu
professor de literatura e de seus colegas de faculdade – que
“a
poesia é a presença manifesta na linguagem de uma
ordem”, ordem entendida não no sentido
político
(“mas toda ordem é
política!”, protesta uma
aluna – o ano é 1968), e sim como
“alguma coisa
universal que se pode sentir quando se está totalmente
sozinho
em uma igreja”. O que nem seu professor nem seus colegas
percebem é que, com tal afirmação,
Jules não
revela uma postura reacionária, mas pratica um poderoso ato
de
resistência. Ele defende a poesia como o último
refúgio
de um absoluto da linguagem.
Derivada dessa poesia definida por Jules
como ato de fé,
a palavra greeniana é o ligante natural entre o corpo e o
espírito, é a busca do caminho que liga a
fonética
do cotidiano aos mais profundos mistérios do sagrado. Aquela
dicção tão peculiar de seus
personagens é
a depuração do momento em que o corpo se conjuga
ao
verbo que o anima. Green retira a musicalidade da
declamação
típica do teatro barroco, com o qual ele trabalhava antes de
partir para o cinema, e interioriza os diálogos, como se
cada
personagem, ao falar com outro, falasse antes consigo mesmo, se
inter-rogasse a todo instante.
A
palavra cumpre em seu cinema a função que o desenho
cumpria na cosmologia estética de Federico Zuccari (pintor e
arquiteto italiano do período maneirista): o signo da
presença
de Deus nos homens e no mundo (ele assim interpretava
etimologicamente: Disegno
= segno
di dio in noi 3).
À semelhança do desenho perfeito que Zuccari
celebrava
como o “segundo sol do cosmos”, a
“segunda natureza
criadora”, “o segundo espírito do mundo
que
vivifica e alimenta”, a palavra aparece em Green como a
própria
criação do mundo, como o elemento que aproxima o
homem,
criador de obras de arte, de Deus, criador da natureza.
Signos
Numa
das mais memoráveis cenas de Le Monde vivant, Nicolas
(Adrien Michaux) vem
andando e se depara com o “chevalier au lion”
(Alexis
Loret). Só que o leão em questão
é um
labrador. O que faz dele um leão? O fato de que seu dono
assim
o designa. Se está dito que é um leão,
ninguém
há de contestar. Esse privilégio da
idéia sobre
a matéria, do signo sobre o corpo, pode sugerir um cinema
“elevado” (sublimado, até), purista,
austero. Mas
não: Le Monde Vivant
é um divertimento. Green nos transporta ao estado
epifânico
em que se dão os grandes milagres da linguagem, mas o faz
por
intermédio desse tipo de fantasia recreativa: chamar um
cachorro de leão e assim crer e fazer crer.
Outra
cena: Nicolas tem seu primeiro encontro com a princesa mantida
prisioneira no alto da torre de uma capela. A primeira coisa que ela
diz é: “Você não é
um cavaleiro”.
“O que distingue um cavaleiro de um
não-cavaleiro?”,
Nicolas pergunta. “A espada”, ela responde. Ela
poderia
ter dito também: “um signo”. Como se
pode ser
cavaleiro sem a espada? Como se pode ser cavaleiro sem o signo que
cria a significação-cavaleiro? Entre o
desígnio
em si e sua presença fenomenal, a princesa percebe uma
defasagem acarretada pela ausência de um objeto cujo aspecto
fálico, inclusive, não é negligenciado
(ocorre
depois uma cena, maliciosamente cômica, em que Nicolas vai
beijar a princesa, já portando uma espada na cintura, e ela
reclama que foi “picada” pela ponta da espada, numa
clara
metáfora da ereção que o jovem teria
tido
naquele momento).
Nessa
ordem instaurada pela linguagem, nada existe antes de receber um
nome, ou antes de se articular
com
alguma outra coisa (universo, portanto, oposto ao de Mal
dos Trópicos,
onde as coisas existem antes, sobretudo antes, de receberem um nome ou
se articularem numa linguagem pautada pelo choque entre signos 4). Uma vez
reivindicada a necessidade do signo, da linguagem, o diálogo
entre Nicolas e a princesa passa do plano de conjunto ao
campo-contracampo, cada plano correspondendo a uma fala. O plano
é
frontal, o corte é seco. A decupagem e a montagem de Green
respondem a uma demanda intrínseca à
crença
absoluta na palavra e, por extensão, na
transparência do
mundo: frontalidade e objetividade.
Em
Les Signes (2006), o
laconismo do signo (que faz um plano valer por mil, um objeto valer
por todos os outros, uma palavra substituir uma frase etc) se acentua
e segue uma espécie de ritualística. Uma mulher
(Christelle Prot) troca a vela de um candelabro todo dia,
religiosamente. Ela explica a seu filho mais velho que a chama da
vela, colocada junto à janela do apartamento que
dá de
frente para um canal, é um signo, um sinal para Deus e para
o
marido dela, um pescador que um belo dia desapareceu. A vela
funciona, assim, como um chamariz. Se o lugar do signo é a
janela, é porque ele deve ocupar o limite entre dois mundos:
a
função do signo é justamente comunicar
o
interior ao exterior, mesmo se não houver nenhuma garantia
de
que tal transmissão ocorrerá.
A chama de uma vela
é
ainda outra coisa: signo instável, tremeluzente,
tão
mais intenso quanto maior for sua iminência de apagar. O que
é uma presença? É tudo aquilo que
corre o risco de desaparecer. É o traço mais forte deixado por um corpo ou um objeto no mundo,
antes da sua desaparição completa (lembrar das sombras de
Adrien Michaux e Natacha Régnier sumindo num crescente
clarão na penúltima cena de Le Pont des Arts).
Como
a personagem de Christelle Prot em Les Signes,
Green demonstra em todos os seus filmes uma fé absoluta no
signo, algo que seu primeiro longa, Toutes les
nuits (2001),
já afirma: para
figurar Maio de 68, por exemplo, ele só precisa de uma
pequena
barricada montada por alguns pneus, três ou quatro jovens
carregando tochas, dois policiais armados de cassetete. Nas cenas
passadas em Nova York, terra natal do diretor, o procedimento
é
ainda mais radical, e a cidade é construída
apenas por
uma ambiência sonora. A mesma lógica do
labrador/leão
impera aqui: se o filme diz que aquela calçada –
deserta
em pleno réveillon! – pertence a Nova York,
está
dito (e os sons dos fogos de artifício e da
multidão
eufórica estão lá para confirmar). A
fé
no signo e na presença leva a uma economia dos meios
–
sabedoria de um cineasta que veio do teatro.
Tudo que Green assimila das outras artes é trabalhado em
seus
filmes de modo “impuro”. Ele incorpora praticamente
sem
alteração alguns componentes do discurso
literário
e da encenação teatral que, codificados por
outras
práticas significantes, não conseguem atravessar
com
suavidade a tela de cinema e, em último caso, chocam-se a
ela
com violência, com peso; esses signos, essas palavras, essas
presenças heterogêneas que não
traspassam a tela,
que não se dissolvem no fluido transparente da captura do
real, todas essas coisas obrigatoriamente afrontam o espectador, pois
nada lhes resta senão aparecer de forma crua e despudorada
diante de nós. Green filma o nu frontal do gesto
pictórico,
da cenografia teatral, da poética literária.
A
fronteira da alvorada
Se
eu tivesse de
escolher uma cena favorita dentro do cinema de Eugène Green,
ficaria com aquele momento de Le Monde vivant em
que, no
coração da madrugada, horário por si
só
propício às aparições, o
“chevalier
au lion” retorna do mundo dos mortos, como que trazido pelo
vento da noite, e dá a mão à sua amada
Pénélope
(Christelle Prot). O encontro das mãos dos dois personagens
é
um momento mágico, um dos mais belos da década. Assim
como Dreyer, Duras, Rivette, Vincent Gallo e Philippe Garrel,
Eugène
Green sabe que o cinema, quando levado a certos limites, permite aos
homens travar um diálogo secreto com os mortos.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
1. Publicado
nos Cahiers
du Cinéma
nº 23.
2. Ver entrevista a
Jean-Sébastien Chauvin, em Cahiers du
Cinéma,
abril de 2001, p. 101.
3. Cf. Erwin Panofsky,
Idea: a evolução do conceito do Belo,
São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
4. Pego atalho num
texto que escrevi na época de Mal dos
Trópicos:
“Apichatpong filma o mundo num momento que antecede a
separação
e a organização diferencial de seus objetos. Um
mundo
em que as coisas ainda não receberam nomes, transposto para
uma linguagem que, corrompendo a fórmula saussuriana ("em
linguagem, existem apenas diferenças"), evolui por
desdiferenciação. Antes de uma estrutura
estática
de nomes designando coisas, pessoas, lugares e eventos, os filmes de
Apichatpong trazem um presente fugidio, composto por corpos que se
banham na poesia imanente do tempo” (cf. Contracampo
nº
66).
Março de 2010
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