13ª MOSTRA DE TIRADENTES

Um Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro, e algumas questões de classe

Embora pouco se fale dela hoje em dia, a luta de classes permanece a tal ponto arraigada em nossa vivência social que seguimos nos relacionando com o mundo através deste viés sem nem mesmo perceber. Quando Cleber Eduardo (crítico e curador da Mostra de Tiradentes) abre o texto do catálogo da mostra com estas citações: “O Brasil do século XXI é um país novo-rico e conservador” (Luiz Carlos Oliveira Jr. em “A Mitologia e a Realidade do Cinema Brasileiro”, publicado aqui na Contracampo) e “O paradoxo deriva de uma concretização aparentemente contrária à intenção que a gerou poder ser adequada a essa mesma intenção.” (Vladimir Safatle em Cinismo e Falência da Crítica), temos como que selada a inter-relação entre quadro econômico-social, postura crítica, proposição artística e... o conceito de paradoxo.

E talvez o grande paradoxo que alimenta Tiradentes é o fato de que a promoção do novo, ou pouco visto, acompanhada da proposta de debate crítico sistemático, ao mesmo tempo em que abre as portas para o que há de mais livre e ousado em termos de forma e pensamento cinematográficos, mina em grande parte a postura crítica e o embate. Como uma estufa para o cultivo do porvir, a mostra pode estar promovendo uma retro-alimentação estético-formal do “novo cinema brasileiro”. Aqui, realizadores consomem avidamente os filmes uns dos outros através do filtro da crítica especializada, envoltos pela anuência de uma curadoria carinhosa com os filmes, atenta ao risco e a iniciativas arrojadas e propostas difíceis, em suma, uma curadoria preocupada também em deixar sua marca autoral. Desta forma, a todos é garantida a chancela da relevância dentro de um cenário cada vez mais plural e caótico – uma vez que a produção só aumenta. Todos são parte de um mesmo conjunto seleto, em que apenas as questões serão discutidas e debatidas, pois a tomada de posição faria parte de um momento anterior e se encontraria embutida na própria seleção do filme.

Em meio a esta elite artística, como em qualquer elite, a condescendência é grande. Portanto, esgarçamentos estéticos sem propósitos claros ou experimentações auto-indulgentes e inconseqüentes circulam com aceitação quase inconteste. Rumo a um anunciado novo academicismo, planos fixos, tempos estendidos e a observação contemplativa – ah, sempre ela! – passam a incitar a mais profunda desconfiança por parte do olhar exigente. Pois, na maior parte das vezes, o conceito que amarraria tais manifestações de superfície a uma real concepção artística é frouxo ou inexistente.

Seriam estes os novos-ricos do cinema brasileiro? O pretenso reverso do conservadorismo cinematográfico se tornando tão afeito à falta de movimento e encontrando a paralisia que os assegura um lugar tranqüilo em meio aos “escolhidos”, qualquer confronto de fato passa a ser visto com maus olhos.

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E como esta elite cinematográfica, seleta, quase clandestina (uma vez que há, no mundo lá fora, a real elite do cinema brasileiro, aquela que controla em alguma medida os meios de produção e distribuição) lida com as questões de classe sócio-econômica? Na maior parte das vezes, as vozes têm sua procedência na classe média intelectualizada e para ela se endereçam. Neste aspecto podemos dizer que esta produção em sua maioria se afasta das duas correntes dominantes do nosso cinema recente: os dramas relacionados ao que Cleber Eduardo chamou, no já citado texto de abertura do catálogo da mostra, de “déficit social urbano” e as comédias de costumes que, a exemplo das telenovelas, são ambientadas numa classe média alta que configura muito propriamente nossa elite econômica. Nas franjas do sistema produtivo e exibidor e no centro da consciência da realização do “bom cinema”, esta elite cinematográfica está situada num certo limbo, numa permissividade compartilhada que a isenta de grandes responsabilidades, uma vez que a suavidade da forma ameniza também o confronto direto com o mundo.

Por estes motivos, talvez o filme mais instigante a ser exibido aqui seja Um Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro. Expondo uma elite de alto poder aquisitivo por meio de seus discursos sobre si – e, fatalmente, sobre a fratura social urbana – e alternando imagens de depoimentos e de observação dos espaços, o filme entabula um discurso direcionado, a partir do limbo mencionado acima, como se desejasse criar uma ponte concreta entre as tais duas tendências dominantes. Sem narrador e com as perguntas de Mascaro raramente presentes, Um Lugar ao Sol se descortina como uma série de depoimentos confessionais, do ponto de vista de um observador atento e eventualmente sarcástico. Ouvir o lado oposto ao dos desprivilegiados, que por decreto sempre recebem o mais generoso dos olhares, é tarefa difícil. Uma vez que a delicadeza e a sensibilidade tornaram-se moeda corrente – e a montagem de atrações destituída de prestígio – o julgamento de valor do discurso de um personagem de documentário passou a ser operação proibida. Pois cada personagem deve ser obrigatoriamente tratado em sua expressão de singularidade – mesmo que esta seja irrelevante no contexto – e nunca como face visível de uma realidade maior, como metonímia palpável de um tecido social muito mais amplo.

O deleite da revelação, da descoberta das nuances de um pensamento disseminado, embora desconhecido e misterioso para quem não o compartilha, nunca é, no entanto, desacompanhado de um desconforto. Pois a reafirmação de uma opinião prévia ronda o resultado final como um mau agouro. O inimigo foi eleito, mas o posicionamento não é aquele facilmente condenável de um Michael Moore, tampouco o de Cidadão Boilesen, cuja “elegância” em se ater aos fatos, expostos em sua maioria por imagens de arquivo, gera a aura santa da “não-inferência” do diretor. Apesar de revelador de uma discursividade, de enunciações de classe que ele faz ouvir, Um Lugar ao Sol não possui um olhar generoso nem ousa assumir seu lugar de enunciação, recaindo na lógica do paradoxo. A constatação é de que a existência dos desprivilegiados que dominam o cinema documental brasileiro recente corresponde efetivamente à opulência do lado oposto é pouco. Seria talvez preciso encarar expressamente o fato de que o conflito de classes tem estado mascarado pela amplamente aceita lisura do “bom olhar”. Sair do limbo e correr o risco de atentar também contra a elite do “bom cinema”.

Tatiana Monassa