O
Brasil do século
XXI é um país novo-rico e conservador. Se o
cinema
serve de indicador de alguma coisa, podemos indagar de que forma ele
fornece imagens que, daqui a anos ou décadas,
servirão
de documento vivo desta fase de emergência
econômica e
involução moral. Provavelmente, essas imagens
estarão
localizadas num conjunto de filmes cujas pretensões
artísticas
são menos importantes que as de bilheteria. Quem quiser
saber
como estava funcionando a cabeça do consumidor
médio
brasileiro no final dos anos 2000 terá de recorrer a Se
Eu
Fosse Você, A Mulher Invisível,
Divã
e outros filmes que fizeram sucesso. Esses filmes dão um
testemunho fiel – justamente porque incapazes de ir
além
– da atmosfera geral do momento em que são feitos,
algo
que muitos filmes bons, ou acima da média, não
têm
conseguido. Talvez tenha sido assim desde sempre: o espírito
do tempo imprime melhor nos filmes comerciais de artesãos
(sejam eles competentes ou não) do que nos filmes que buscam
maior valor artístico individual.
Contribui
para a
equação acima a dinâmica atual do
cinema
brasileiro. Acontece o seguinte com muitos de nossos cineastas que
possuem maior ambição e potencial
artísticos:
assim que eles terminam um filme, começam a viajar para
acompanhá-lo nos festivais, e vale lembrar que hoje
há
praticamente um festival de cinema por cidade brasileira. Quando o
cineasta – em geral feliz, em geral recebendo elogios (o
cineasta brasileiro dos anos 2000 é um sujeito alegre,
cortejado, amigável, político) –
finalmente
resolve voltar ao set e rodar seu próximo filme, tudo que
ele
vivenciou nos últimos meses, quiçá
anos, foram
aqueles festivais, aquelas festas, aquelas sessões com
colegas, aqueles debates, aquelas mesmas conversas sobre aqueles
mesmos filmes que passaram naqueles mesmos festivais. É
desse
universo que ele tira inspiração, é
nessa estufa
que ele cultiva as idéias. O que ele tem para filmar? O
mundo
do cinema, ou ainda, o mundo do cinema brasileiro. O cinema
brasileiro dito de qualidade cada vez mais se alimenta de seu
próprio
imaginário, favorecendo uma mentalidade um tanto provinciana
e
uma reprodução interminável de mitos,
à
medida que se tornam mais raras as reflexões maduras sobre a
realidade.
Embora
o Brasil não
saia dos noticiários estrangeiros por conta de sua
ascensão
no cenário político-econômico mundial,
toda vez
que lemos algo que extrapole a esfera macro-econômica e entre
nas determinações sociais percebemos que eles
não
têm a mínima idéia do que se passa por
aqui.
Somos um mundo distante. Às vezes, dependendo do absurdo do
que noticiam, somos um mito. Mas é preciso reconhecer que os
primeiros a mitificar o Brasil são os próprios
brasileiros. E o cinema é possivelmente o recordista de
mitos
dentro de nossa cultura. A maioria dos filmes que se propõem
a
tratar da realidade do país adota um viés
mitologizante. O que o cinema brasileiro ainda entende por realidade,
que é a pobreza e/ou a marginalidade, já existe
no seu
reservatório de temas sob a forma de mito. Cidade
de Deus,
Carandiru, Quase Dois Irmãos,
Maré,
Meu Nome Não É Johnny, O
Contador de
Histórias... Uns bons, outros ruins, uns
denunciativos,
outros elegíacos, mas todos fincados sobre o solo comum da
mitologia.
Conforme
já devem ter dito por aí, muitos dos filmes
brasileiros
desta década que abordaram a marginalidade partilham um
certo
voyeurismo sociológico, satisfazem a curiosidade da classe
média sobre o que se passa do lado de lá da
sociedade.
Com o detalhe de que esse universo exótico e perigoso
não
está distante no tempo e no espaço –
pelo
contrário: deriva de matéria social atuante no
cotidiano dos centros urbanos, constitui uma
“ameaça”
presente. Os filmes de favela e tráfico, em tese,
não
poderiam fazer como O Cangaceiro
de Lima Barreto ou os nordesterns
de Carlos Coimbra e Wilson Silva faziam décadas
atrás.
Naqueles filmes, o cangaço era representado como uma forma
de
banditismo social que não existia mais, que pertencia a um
passado pré-civilizatório, portanto neutralizada
pelo
movimento histórico de progresso. Os cangaceiros
já não
eram mais uma força social atuante no sertão
nordestino, e sim conteúdo de lendas e contos populares. Nos
filmes de favela, diferentemente, a realidade retratada é
contígua à nossa, pertence ao mesmo mundo e
à
mesma época em que vivemos. E, no entanto, o modelo de
ficção
adotado pela maioria desses filmes é igualmente a mitologia
e
a fabulação romântica. Mesmo Tropa
de Elite,
com toda sua urgência, não se furtou a fazer um
recuo de
uma década e narrar a história de
Capitão
Nascimento e do BOPE como quem fala de uma liga da justiça
que
não existe mais naquele estado de pureza e
quintessência.
Um mito do Rio de Janeiro moderno.
O
par violência-mitologia sempre existiu no cinema. Sobretudo
no
cinema americano, que muito cedo soube encontrar – no
faroeste,
no filme de gangster, no filme de guerra etc – o ponto de
fusão
entre os mitos fundadores dos EUA e a violência de sua
História. Aqui no Brasil, tanto o cangaço recebeu
uma
representação fantasista regulada pelos
códigos
ficcionais importados do western como a violência urbana
também
teve sua realidade transformada em terreno mitológico em
filmes que ganharam força a partir dos anos 1960. Boca
de Ouro, Lúcio
Flávio,
Barra
Pesada e
outros mais enveredaram
pela realidade das ruas seguindo a bússola do folclore
marginal brasileiro. A Rainha Diaba (Antônio
Carlos da Fontoura, 1973-74), por exemplo, dramatiza a disputa de
poder e território no tráfico de drogas do Rio de
Janeiro dos anos 70 tendo como protagonista um marginal homossexual
claramente inspirado na mitologia associada a Madame Satã,
que
marcara época na Lapa dos anos 30. Mais que a realidade do
submundo, interessa sua mitologia.
Mas
a novidade trazida pela retomada e acentuada nos últimos
anos
é que existem outros modelos de
mitificação em
jogo. Certas operações que se tentam ou se pensam
passar pela lente objetiva de um realismo espontâneo
são
na verdade visões entortadas de algum mito criado pela
história do cinema brasileiro. Garapa,
mais
recente filme de José Padilha, é
sintomático.
Ele tem certeza de que quer filmar a realidade nua e crua, mas para
isso repete a luz estourada de Vidas Secas. A luz
atravessa
quatro décadas e chega ao filme já totalmente
impregnada dessa viagem pelo tempo. A estratégia de
aproximação-distanciamento é o estilo
tateante
da câmera, a abordagem de documentário moderno que
hoje
soa old school. O filtro mítico combina
com o tema
escolhido: a pobreza é mesmo essa notícia velha,
essa
coisa distante da realidade da maioria das pessoas que fazem cinema
no Brasil. O que espanta hoje como dado bruto não
é
mais a quantidade de gente pobre que existe no país nem as
condições em que elas vivem (infelizmente nos
acostumamos a isso). O dado espantoso é a quantidade de
gente
rica e o aumento do poder aquisitivo da classe média, e os
únicos filmes de 2009 que daqui a vinte anos
servirão
de documento confiável dessa realidade são Se
eu
fosse você 2, Divã, A
mulher invisível,
Os Normais 2 e afins. Filmes sem qualquer
visão
crítica, sem inteligência, mas que
darão algum
tipo de relato fiel de uma classe que é o emblema do Brasil
contemporâneo. O brasileiro novo-rico está ali
representado junto a seus gostos, fetiches, sonhos de consumo,
fantasmas... Aquela cenografia cafona em tons pastéis,
aquele
modelo de encenação aprendido na telenovela e na
publicidade, aquela luz de shopping center, aqueles atores famosos em
papéis que supostamente desafiam seu repertório
já
tornado padrão na TV, aquela
infantilização da
sexualidade, aquela falsa aparência de bom acabamento
técnico
(quando não raro esses filmes são tremendamente
mal
feitos e sem o menor domínio técnico ou
dramatúrgico,
a exemplo de Divã e Os Normais
2), enfim, é
isso que satisfaz as necessidades elementares de
identificação
e reabastece o imaginário das classes média e
rica
brasileiras. É esse o espelho do Brasil do BRIC e do Rio de
Janeiro das Olimpíadas de 2016.
***
“O
negócio é fazer filmes
péssimos”,
dizia Jairo Ferreira no final dos anos sessenta. Péssimos,
mas
necessários.
A
Mulher de Todos,
por exemplo, era um
filme péssimo. Provocador, mal comportado,
cheio de
piadas de mau gosto. Quarenta anos depois, tivemos Encarnação
do Demônio, também um filme
péssimo (apesar
da indumentária feita por estilista famoso e outros
requintes
mais). Péssimo e necessário, como sempre foram os
filmes de Mojica. Ao contrário do sucesso de
público de
A Mulher de Todos em 1969,
Encarnação do Demônio
foi um fiasco em
2008. O público do cinema brasileiro de hoje só
quer
saber de filme “bom”. Essa é a realidade.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
|