VÍCIO FRENÉTICO
Werner Herzog, Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans, EUA, 2009

Eu iria ao inferno para surrupiar uma imagem do Diabo!
Werner Herzog 1

E nenhum de nós duvida que ele iria mesmo. Na verdade, ele nem precisa ir: basta aproveitar os momentos em que o inferno se manifesta aqui na terra. Quando o céu se fecha em nuvens negras e anuncia um mundo em completa terribilità, Herzog sente que é hora de ligar a câmera. Cenários de pós-catástrofe lhe são automaticamente caros, pois fornecem essa situação de imediato, sem necessidade de recorrer a qualquer tipo de pretexto. Em Lições da Escuridão, o inferno era o Kwait pós-Guerra do Golfo, com aqueles campos petrolíferos incendiados, devastados por bombardeios, várias línguas de fogo se projetando para fora da terra, um verdadeiro caos. Em Vício Frenético, ele nos transporta para Nova Orleans no aftermath do furacão Katrina, terra de ninguém que, ao contrário do Velho Oeste, não se presta à encenação do mito americano da conquista. Tudo remete a perda e falência. Num plano geral da cidade lá pela metade do filme, o céu escuro e entrevado lembra o tom com que El Greco representava o Apocalipse. A Nova Orleans de Vício Frenético faz a Detroit de Gran Torino parecer um lugar até aprazível. Herzog filmou a cidade mais feia do cinema americano recente. Lá, a realidade é já o pesadelo.

O protagonista é o detetive Terence McDonagh (Nicolas Cage), que passa o filme praticamente todo sob efeito de drogas. A perspectiva amoralista de Herzog permite criar um estado sócio-psicológico em que a droga não tem função de bem nem de mal; ela leva a uma situação-limite, e de toda situação-limite nasce uma força que interessa sobremaneira ao diretor de Fitzcarraldo e O Sobrevivente. Essa força – que nada tem de extra-humana, ou melhor, que é o que há de mais humano para Herzog – é algo muito próximo do que poderíamos chamar de um “tema” favorito do diretor. Força que tem seu lado destrutivo, naturalmente, mas mesmo nesse caso o sentido da força importa menos que sua intensidade.
O destino não pune Terence por seus vícios. Pelo contrário: um arranjo inesperado reverte todas as coisas a seu favor na parte final do filme. Herzog desconhece aquela baboseira do “carinho pelo personagem”. O grau de proximidade que ele estabelece com Terence, no entanto, é incomparável. Na cena em que aparecem as iguanas, o ponto de vista do filme se confirma: os animais fazem parte da alucinação de Terence, só ele os enxerga, mas em nenhum momento Herzog filma a mesa sem eles. O filme está viajando com Terence nesse inter-mundo da droga. Sem ascese e sem queda.

Por vezes, Vício Frenético é um filme meio grosseiro. O enquadramento não parece muito bem calculado, a luz é assujeitada a uma disputa renhida com a matéria, Nicolas Cage está entregue a seus excessos, a música exagera na gravidade dramática. E Herzog tem toda razão em fazê-lo: nenhuma forma exata e precisa pode expressar com força tão convincente a visão do inferno. Impõe-se uma certa grosseria, que nada tem a ver com imperfeição da técnica (soaria absurdo contestar a qualidade de execução de um filme com tantos planos alongados em que os movimentos de câmera e de atores entram em perfeita sincronia); é questão de disposição e traço. Vale lembrar de um momento de O Homem Urso em que a voz off de Herzog invadia a cena no meio de um dos monólogos de Timothy e dizia algo como: “Aqui discordo dele. Não vejo a natureza como equilíbrio, mas desarmonia e ruptura...”. Em Vício Frenético, Herzog dá um passo além e consegue fazer esse caos intrínseco ao mundo da natureza e da matéria coincidir com o próprio ponto de vista do filme, pondo em obra a mais fiel forma de representar a vida desequilibrada de seu personagem.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

1. Cinématographe nº 78, maio de 1982