Eu
iria ao inferno
para surrupiar uma imagem do Diabo!
Werner
Herzog 1
E
nenhum de nós duvida que ele iria mesmo. Na verdade, ele nem
precisa ir: basta aproveitar os momentos em que o inferno se
manifesta aqui na terra. Quando o céu se fecha em nuvens
negras e anuncia um mundo em completa terribilità,
Herzog sente que é hora de ligar a câmera.
Cenários
de pós-catástrofe lhe são
automaticamente caros,
pois fornecem essa situação de imediato, sem
necessidade de recorrer a qualquer tipo de pretexto. Em Lições
da Escuridão,
o inferno
era o Kwait pós-Guerra do Golfo, com aqueles campos
petrolíferos incendiados, devastados por bombardeios,
várias
línguas de fogo se projetando para fora da terra, um
verdadeiro caos. Em Vício
Frenético,
ele nos transporta para Nova Orleans no aftermath
do furacão Katrina, terra de ninguém que, ao
contrário
do Velho Oeste, não se presta à
encenação
do mito americano da conquista. Tudo remete a perda e
falência.
Num plano geral da cidade lá pela metade do filme, o
céu
escuro e entrevado lembra o tom com que El Greco representava o
Apocalipse. A Nova Orleans de Vício
Frenético faz a Detroit de Gran Torino parecer um lugar até aprazível. Herzog filmou a
cidade
mais feia do cinema americano recente. Lá, a realidade
é
já o pesadelo.
O protagonista é o detetive Terence McDonagh (Nicolas Cage), que
passa o filme praticamente todo sob efeito de drogas. A perspectiva
amoralista de
Herzog
permite criar um estado sócio-psicológico em
que a
droga não tem função de bem nem de mal; ela leva a
uma situação-limite, e de toda
situação-limite
nasce uma força que interessa sobremaneira ao diretor de
Fitzcarraldo e O
Sobrevivente.
Essa força
– que nada tem de extra-humana, ou melhor, que é o
que
há de mais humano para Herzog – é algo
muito
próximo do que poderíamos chamar de um
“tema”
favorito do diretor. Força que tem seu lado destrutivo, naturalmente, mas mesmo nesse caso
o sentido da força importa menos que sua intensidade.
O
destino não pune Terence por seus vícios. Pelo
contrário: um arranjo inesperado reverte todas as coisas a
seu
favor na parte final do filme. Herzog desconhece aquela baboseira do
“carinho pelo personagem”. O
grau
de proximidade que ele estabelece com Terence, no entanto, é
incomparável.
Na
cena em que aparecem as iguanas, o ponto de vista do
filme se confirma: os animais fazem parte da
alucinação
de Terence, só ele os enxerga, mas em nenhum momento Herzog
filma a mesa sem eles. O filme está viajando com Terence
nesse
inter-mundo da droga. Sem ascese e sem queda.
Por
vezes, Vício Frenético é um filme meio grosseiro. O enquadramento não
parece
muito bem calculado, a luz é assujeitada a uma disputa renhida
com a matéria, Nicolas Cage está entregue a seus
excessos, a música exagera na gravidade
dramática. E
Herzog tem toda razão em fazê-lo:
nenhuma
forma exata e precisa pode expressar com força
tão
convincente a visão do inferno. Impõe-se uma
certa
grosseria, que nada tem a ver com imperfeição da
técnica (soaria absurdo contestar a qualidade de
execução
de um filme com tantos planos alongados em que os movimentos de
câmera e de atores entram em perfeita sincronia);
é
questão de disposição e
traço. Vale
lembrar de um momento de O Homem Urso
em que a voz off de
Herzog invadia a cena no meio de um dos monólogos de Timothy
e
dizia algo como: “Aqui discordo dele. Não vejo a
natureza como equilíbrio, mas desarmonia e
ruptura...”. Em Vício Frenético,
Herzog dá um passo além e consegue fazer esse caos
intrínseco ao mundo da natureza e da matéria coincidir
com o próprio ponto de vista do filme, pondo em obra a mais fiel
forma de representar a vida desequilibrada de seu personagem.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
1. Cinématographe nº 78,
maio de 1982
|