MATÉRIA-FORMA (II)

No texto anterior, falei de quatro grupos de cineastas caracterizados a partir da proposição de uma linha imaginária esticada entre duas extremidades, a matéria e a forma. Eram eles representados pelos cineastas da matéria, da forma, do percurso entre a matéria e a forma e da equidistância entre ambas. Agora falarei de duas outras operações dentro do mesmo esquema, abrangendo duas novas categorias. A primeira diz respeito a um realizador que transforma a linha em pontilhado: Andrei Tarkovski. A segunda se refere a cineastas que tentam dobrar a linha, torcê-la, curvá-la, no limite transformá-la em espiral: Fassbinder, Ruiz, Argento, Losey nos filmes barrocos.

A transformação da linha em pontilhado implica que cada ponto concentre em si o máximo da matéria e o máximo da forma, seja simultaneamente o princípio e o fim da linha. Cada ponto é como “uma gota d'água que reflete o universo na sua totalidade”. Ao contrário do que se pode pensar, o tempo em Tarkovski não se dilata, pois é antes um enriquecimento da matéria por compressão: o tempo se acha adensado, massa compacta, sem esponjosidade e sem dispersão. Ele é o somatório do que já passou, do que vai passar (talvez), mas nunca é o que está passando. A duração não é uma potência aferida da passagem da natureza, mas uma sedimentação da matéria-tempo, uma erosão desse corpo robusto gerado por um acúmulo de depósitos de matéria semelhante à formação geológica avançada de um solo. Não é o tempo que deve ser encontrado na natureza, mas a natureza que deve ser encontrada no tempo.

A erosão do tempo é sentida naqueles lentíssimos travellings que parecem querer mover do lugar uma matéria por demais pesada (afinal, é a condensação de toda a matéria do universo). A cenografia, por sua vez, é uma gruta secreta onde tempo e espaço se equivalem: o palco da memória. É fácil perceber que a memória ocupa tempo: podemos passar alguns segundos, alguns minutos ou até algumas horas lembrando de alguma coisa. Mas em Tarkovski a memória ocupa também espaço – a memória é espaço (o coração da “zona” em Stalker ou a casa russa dentro das ruínas da catedral italiana no último plano de Nostalgia). O universo é um infinito aglomerado de gotas, cada qual trazendo dentro de si uma gota menor, e assim sucessivamente. Cada pedaço do cenário, por menor que seja, contém um mundo. Basta a câmera se aproximar do chão, sair do plano geral e chegar ao plano-detalhe, e a lama se faz relevo montanhoso, a poça se faz lago e suas infiltrações se fazem rios, uma nova paisagem e um novo plano geral se formam (Nostalgia, O Sacrifício). O micro e o macro se confundem, ou melhor, o macro está contido no micro e vice-versa. A linha pontilhada, portanto, não é uma transmissão picotada entre matéria e forma: é antes a justaposição de pontos totalizantes, cada ponto representando um ciclo completo da reação (de dupla troca) matéria-forma, antecedente-consequente.

Borges nos ensinou que há dois tipos de labirinto. Um é formado por muros, portais, escadarias, obstáculos, estátuas de bronze, becos, quinas. O outro é um deserto. No cinema, o primeiro pode ser ilustrado pelo lar aprisionante de Martha (Fassbinder), pelos palácios de Don Giovanni (Losey), pelo edifício de Inferno (Argento), pela mansão de A Hipótese do Quadro Roubado (Ruiz), ou ainda pela Veneza de Senso (Visconti). O segundo pode ser o deserto de Antonioni, o espaço reticente, a prisão sem muros dos personagens de A Aventura, Deserto Vermelho, O Passageiro ou O Eclipse.

O labirinto que por ora nos interessa é aquele primeiro, repleto de arquitetura e de curvas. Da linha dissolvida em pontos totalizantes, passamos à linha que se dobra ao infinito. A dobra, aqui, não deve ser entendida como floreio ou inclinação alegórica, tampouco como ação externa à matéria. A matéria trabalhada nos filmes abarcados por esse grupo já traz, como que em seu código genético, a informação – a ser transmitida às mentes criativas responsáveis pela obra – indicando que se deve seguir as curvas e não as retas. Os elementos de inflexão são dados previamente, estão acoplados às mínimas unidades de registro. A dobra é a feição natural da mise en scène. É assim que em Martha, Despair, Berlin Alexanderplatz, em Don Giovanni, em Suspiria, em Genealogias de um Crime, o caminho sinuoso adotado pela luz se prova incontornável, o único trajeto coerente entre a matéria e a forma. Não parece haver limites para a mise en scène; nenhum movimento é impossível, nenhum excesso é insuportável. As figuras, os cenários, as cores, os detalhes se amontoam (às vezes no mesmo plano) gerando uma sobrecarga à beira do estiramento, exaustão maneirista cuja hipérbole é uma sensação do alógico que desencadeia o fogo e a aparição da Morte em pessoa (lembrar do clímax de Don Giovanni e, especialmente, de Inferno). Disso resulta uma dramatização torrencial, uma intensidade da forma concebida por quem testemunhou o inferno e retornou (cf. L'aldilà/The Beyond, de Lucio Fulci) para nos narrar a experiência.

Luiz Carlos Oliveira Jr.