Proponho
uma linha
imaginária. Numa extremidade, situemos a matéria
(não
necessariamente o ponto de partida). Na outra, situemos a forma
(não
necessariamente o ponto de chegada). Coloquemos agora, ao longo dessa
linha, um certo número de cineastas. Notaremos que alguns
deles, por uma espécie de imantação,
serão
atraídos para o lado da matéria (Rossellini,
Hawks,
Pialat, Denis). Outros migrarão decididamente para a forma
(Hitchcock, Eisenstein, Bergman). Um terceiro grupo estará
deslizando sobre a tal linha imaginária, indo de um extremo
a
outro para nos mostrar a dificuldade do percurso (Straub/Huillet,
Resnais, Godard). E haverá aqueles que buscarão
se
situar num ponto equidistante em relação
às duas
extremidades (Rivette, Rohmer). Tentarei, a partir de
exemplos específicos, entrar nas características
de
cada um dos grupos designados.
Começando
pelos
cineastas da matéria: eles são
como
escultores que fazem a escultura tender a uma forma em
concordância
com a predisposição original da pedra, e portanto
já
sugerida nela. São artistas mergulhados na sopa de
matéria
que antecede a forma mas que a contém em sua
consistência
mesma. Conhecem, mais que quaisquer outros cineastas, os limites do
meio em que trabalham. Assistem de perto ao
“espetáculo
absurdo e caótico das aparências”, e se
sensibilizam por ele. Sua mise en scène,
por
conseguinte, não pode obedecer a regras
pré-estabelecidas
– se há uma lei que a conduz, é a lei
intrínseca
às propriedades da matéria, que só
pode ser
aplicada no momento do encontro, no ato do registro. O plano surge
como uma protuberância da matéria. A câmera
é guiada pelas forças (por vezes ocultas) e
potencialidades das coisas e dos seres aos quais se dirige. Se
quisermos compreender o estilo desses cineastas, deveremos antes
perscrutar a fundo o material de que partem, porquanto é ao
respeitar esse material que eles encontram sua mise en
scène.
A estética de Stromboli
está no vulcão, na lava, no mar, na pedra, no
corpo da
atriz. O que levou Rohmer a dizer que “a arte de Rossellini
é
uma das mais impróprias à expressão da
vida
interior” foi a constatação de que a
grandeza do
mundo é, nesse filme, apresentada sem retórica, “somente pela evidência do que nos
é dado
a ver”; “cada coisa está
presente,
aparente, forma palpável, e o único
para-além
que admite é a mão divina que presidiu sua
gênese”,
ou seja, não é através de uma
dialética
ou de uma rivalização com a natureza que o
intelecto
humano conseguirá encontrar a graça e a beleza do
mundo: o respeito à matéria implica o respeito
à
sua instância criadora. A mise en scène
é
um gesto de humildade diante do mistério da
criação.
“What mystery! What beauty!” (Ingrid Bergman
estupefata
na cena final).
Em
Claire Denis,
como em Rossellini, a matéria se acha em
combustão
interna, mas o vulcão agora é
invisível, sua
lava escorre subterraneamente, sensualmente, queima sob os
pés
dos personagens sem que eles o saibam. Ninguém exclama mais
seu mistério e sua beleza. A matéria reflui sobre
si
mesma em silêncio. O drama se contrai numa tênue
superfície que recobre a terra e que, privada de sua
espessura, agita-se a fim de expandir-se, movimentar-se: o resultado
é uma vibração na epiderme do mundo.
Passemos
agora aos
cineastas da forma (não é o mesmo que dizer
“formalistas”). Eles conhecem de cor o mundo real,
em
seus mínimos detalhes, e o empregam como meio para exprimir
um
outro mundo, imaginário. São perfeitos
ilusionistas,
utilizam os materiais do real com tal mestria que não raro
cremos estar diante de um universo cotidiano, quando na verdade
estamos expostos diretamente às artimanhas do intelecto.
Esses
cineastas memorizaram uma imagem-total do mundo, que eles agora nos
entregam com o cuidado de indicar quais partes consideram mais
importantes. Há uma ânsia em ressaltar a
precisão
do desenho, salvar a imagem da indistinção
primitiva
entre figura e fundo, corpo e sombra. A mise en
scène,
aqui, define-se pela realização de um projeto
mental,
pela relação entre um cálculo
– necessário
para extrair dos meios disponíveis o máximo de efeitos
– e
os recursos cênicos.
Os planos são gerados por um olhar
esbugalhado, inchado pela atividade cerebral, um olhar que marca o
domínio e mesmo a posse do autor sobre o universo
diegético.
Cada gesto, cada olhar, cada pormenor do filme deriva de uma mesma
concepção inicial; todas as unidades de
encenação
devem respeitar o sentido da unidade superior a que pertencem.
Respeito não mais à matéria, e sim
à
ideia que a enforma.
Técnicas analíticas, atenção
ao detalhe relevante, precisão dos contornos:
é
assim que eles operam. Sua transparência consiste em nos
permitir chegar, com o mínimo de empecilhos, ao desenho
interior do qual o filme seria a manifestação
externa e
visível.
Como
exemplo de
cineastas que deslizam sobre a linha, fiquemos com Straub e Huillet,
pois o cinema deles encontra sua forma em função
tanto
das condições climáticas da filmagem
quanto do
rigor do método adotado. Se os cineastas da forma recorrem
à
construção prévia de uma rede
imaginária
que organiza todos os deslocamentos, todos os eventos da narrativa e,
melhor dizendo, todo o espaço-tempo, cineastas como Straub e
Huillet nos convidam a não considerar o real como um dado,
mas
desvendá-lo, apreender o espaço pela topometria
da
decupagem, o tempo pela duração, o
cenário pela
sua existência concreta, o drama pela geografia dos
afrontamentos. Em Von heute auf morgen,
cada mínimo risquinho na parede, cada veia da madeira dos
móveis e cada fio de cabelo dos atores absorve e reflete a
luz e, assim sendo,
participa da mise en
scène.
Se por um lado pesa a racionalização da forma,
por
outro pesa a preeminência da matéria. Apesar da
aparente
mineralidade das imagens, o olhar de Straub as vivifica. Por
trás
do visível está a existência dos
átomos,
mas não só: há o sorriso que jaz
fugidio,
fagulha de energia que culmina fisicamente na vida. “Quando
a cor surge em toda sua riqueza, a forma está em sua
plenitude” (Cézanne). É do
próprio “caos
de matérias” de onde provém a cor que
deve nascer
a forma. Para a cor surgir em toda sua riqueza, é
necessário
o esforço do artista confrontado à
resistência da
matéria – esforço visível
na
forma. Os
cineastas que deslizam
sobre a linha são os que melhor falam sobre a
própria
obra, pois são conscientes de todas as dificuldades que os
levam a ela.
Por
fim, chegamos aos
cineastas da equidistância. Eles são conhecedores
das
regras clássicas do cinema. Em vez de rejeitá-las, assimilam algumas e, mais ainda, criam suas
próprias
regras, novas, sempre desafiadoras. É somente dentro de um
conjunto de restrições que conseguem encontrar a
maior
liberdade possível. Embora se assenhorem da
matéria,
não se permitem modificar-lhe a natureza. Ao captar as
coisas,
isolam sua essência, não ao abstraí-la
do resto,
mas justamente ao mostrá-la no todo.
Querem tornar
sensível a interferência entre o mundo material e
o que
está além da fenomenalidade, “sem o
menor recurso
aparente ao símbolo, à elipse, à
alusão”
(Rohmer). Sua força de invenção e de
imaginação
é tão mais presente quanto mais se unir a
“uma
matéria miraculosamente
viva,
capturada intacta em sua origem” (Rivette),
matéria
cuja atividade inerente, presença “prodigiosamente
simples”, sem significação a
priori,
encontra um ponto de interseção e
equilíbrio com
a atividade enformadora do espírito. A mestria sobre o
universo diegético se acha contrabalançada pela
assunção do lado indomável do mundo. Dos cineastas aqui abordados, esses são os
que
melhor falam sobre a obra dos outros. Nos anos 1950, Rivette e Rohmer
escreviam textos apaixonados sobre Rossellini e Hitchcock: buscar a
equidistância entre os dois, então, seria o
caminho
natural a seguir.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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