SUPERBAD - É HOJE
Greg Mottola, Superbad, EUA, 2007

A moral do escravo, o falo, a fala

A idéia de autor passa, em Michel Foucault, por uma reestruturação definitiva. Em “O que é um autor”, texto de 1969, e depois em “A ordem do discurso”, sua aula inaugural no Collège de France (1971), o filósofo propõe a desconstrução de uma concepção, digamos, “personalista” de autor e o define mais como um agenciamento, como uma lógica de regularidade. Um autor poderá ser, segundo ele, um conjunto de pessoas, que componham uma mesma “textualidade”. Essa idéia bastante livre de autoria, desligada de uma identidade jurídica, e mais próxima de uma competência lógica para a definição de uma coerência das singularidades, permite pensar a autoria como uma forma de agregação de ações estéticas, como uma espécie mesmo de “postura”. Obviamente, se pode ser um conjunto de pessoas, o autor pode também ser uma só. Mas mesmo assim o jogo entre atitudes estéticas ultrapassa qualquer definição moderna (no sentido forte do termo) de personalidade.

Digo isso para compor uma observação: Judd Apatow é um autor, no sentido foucaultiano do termo. O produtor é, de certa forma, um dos exemplos mais fortes do que poderia ser uma “política dos produtores” na atualidade. Mais do que Jerry Bruckheimer nos filmes de ação ou da imagem mítica de um Harvey Weinstein, Apatow começa a se configurar como um lugar de agregação de discursos mais do que como um personagem, um mito (no sentido barthiano), em si. Os filmes de sua produtora, por mais que tenham diretores e roteiristas diferentes, assumem uma autoria de agenciamento lógico. São textos todos a flertarem com um mesmo universo temático e com uma mesma abordagem estética. Judd Apatow é uma espécie de Walt Disney da comédia de (maus) costumes.

Superbad – É hoje, lançado agora em DVD pela Columbia, é, de certa forma, o paroxismo e o supra-sumo desse agenciamento. O filme, dirigido por Greg Mottola e escrito por Seth Rogen (também ator no longa e em vários outros do produtor, como Ligeiramente Grávidos, no qual é protagonista) e por Evan Goldberg, é um “filme de Judd Apatow” típico. Já falarei no que. Antes, uma consideração a partir da edição digital: não é de se estranhar que os extras mais interessantes do DVD sejam justamente momentos em que Apatow se dá como ator/comediante. O produtor tem se apresentado como tal em vários momentos. Por exemplo, em Superbad há uma cena em que os amigos Seth (Jonah Hill), Evan (Michael Cera) e Fogell (Christopher Mintz-Plasse) assistem a um vídeo em um site chamado The Vagtastic Voyage, sobre o qual os dois primeiros dialogam na primeira seqüência. Seria um site de vídeos gravados no interior de um furgão, para o qual seriam levadas garotas que fariam sexo com um homem. Na tela, este homem é... Apatow, que no longa vemos apenas de relance, sem desconfiar de sua identidade (revelada na seqüência, apresentada no disco como curta de humor). Ele também possui seu próprio canal no site de humor Funny or Die (no qual, por exemplo, discute com o ator Will Ferrell e o roteirista e diretor Adam McKay, criadores do site, qual dos três é mais importante enquanto diz que quer colocar conteúdo pornográfico na página). Também já promoveu várias intervenções no Youtube (como ao permitir o vazamento do trailer de Pineapple Express antes de sua classificação etária, o que deixou a Columbia em maus lençóis, dado o conteúdo de “apologia ao uso da maconha” do filme). Apatow é um gaiato.

Mas não se trata (pelo menos para o âmbito desta análise) apenas de um “aparecismo” de Apatow. Trata-se mais de uma consolidação. Até porque um dos traços típicos do produtor é a formação de grupo. Reconhecemos nos filmes da produtora uma mesma fauna de atores habituais, assim como uma recorrência de autores. A persona de Apatow é um ícone do estilo que cerca todos os filmes de sua produtora, baseado em alguns princípios gerais.

Um “Appatow movie” é baseado antes de tudo em uma adesão aos gêneros populares de comédia americanos, mas sempre por meio de uma desconstrução baseada na impostura. Impostura a começar com o próprio gênero, aliás. Se O Virgem de 40 anos (Apatow, 2005), Ligeiramente Grávidos (Apatow, 2007); e o vindouro Forgetting Sarah Marshall (Nicholas Stoller, 2008) são comédias românticas, O Âncora (McKay, 2004); Ricky Bobby: A Toda Velocidade (McKay, 2006); e o vindouro Walk Hard (Jake Kasdan, 2008) são típicas sátiras de tipo. Mas todos eles são, ao mesmo tempo, antigenéricos, violentam os clichês de gênero sem nem bem aderir (tanto em alguns casos) a eles nem bem fazerem deles elemento de sátira. Mas o que marca mais fortemente todos esses filmes, entretanto, é o uso da impostura no interior mesmo dos filmes. O processo de desconstrução promovido por esses filmes é sempre um processo de “deselegantização”, de injeção de elementos não (ou nem sempre) habituais e sempre, sempre via uma temática chula, um situacionismo chulo e, sobretudo, uma linguagem chula. O elemento central de um “Apatow movie” é a linguagem falada (o que faz sua mise en scène ser centrada mais no roteiro e nas interpretação do que propriamente numa rica economia da decupagem). Mas essa linguagem não poderá ser falada de qualquer jeito, veremos.

Superbad nesta edição digital vem como uma “versão estendida sem cortes” que de fato traz alguns minutos a mais, minutos que realmente contribuem para o filme, sobretudo no que diz respeito à compreensão do personagem de Jules (Emma Stone) e na compreensão de sua relação com Seth. Com alguns poucos diálogos vemos que ela também é engraçadinha, ela, no fundo, se parece com Seth, não é tão distante dele quanto ele quer fazer parecer em sua proclamação de cruzada.

Mas, bem, o longa-metragem é uma história operada a partir do gênero “filme de high school”, como era a série de TV Freaks and Geeks (1999), de certa forma o manifesto estético do “autor”. Não será mais escandaloso e menos impertinente, por exemplo, que um Porky’s (Bob Clark, 1982) ou que um Picardias Estudantis (Amy Heckerling, 1982). O gênero se acostumou a falar de sexo. E o grau de impostura não será muito diferente, por exemplo, do dos irmãos Bobby e Peter Farrelly, operadores de uma lógica dos fluidos corpóreos como “goma arábica” das relações. Mas Superbad será o ícone maior, na obra de Apatow, do elemento central desse “autor” que o grupo de colaboradores se tornou: a deslocalização dos papéis típicos no social e a operação disso por meio do discurso falado. Cada filme mereceria seu comentário, daquele sobre o homem adulto que ainda não fez sexo ao sobre o jovem inconseqüente que tenta se encaretar para ser pai. Mas em Superbad esse será propriamente o tema do filme, em sua reestruturação do gênero que representa.

Pois bem, Superbad parte de uma trama relativamente simples de filme de high school: três amigos losers tentam adentrar no mundo dos populares para, com isso, conseguirem fazer sexo pela primeira vez. Para conseguirem alcançar tal intento, eles precisam conquistar aquilo que lhes servirá de chave, de ingresso, para o mundo das gatinhas e dos atletas: álcool. E por conta disso e de uma situação de comédia de erros, mergulham ­– em separado em dois grupos – em uma odisséia noturna rumo a seu objetivo central.

Essa promoção à “popularidade” (elemento sempre central dos filmes do gênero) é aqui relida por dois filtros. O primeiro deles é o de uma economia do poder:  a pergunta que atravessa todas as situações é: quem é capaz de ser promovido à categoria de “bad-ass”, de “fodão”? Para ter o direito à intimidade com aquelas que almejam namorar, os meninos só vêem como alternativa fazerem coisas “fucking pimp”, coisas que os elevem à outra ponta da hierarquia social de popularidade. A abertura retrô, em estilo cinema B, com granulações e riscos na imagem e uma animação (rotoscópica de silhuetas, nada mais simples) a mostrar os rapazes dançando funk (composto para o filme por Lyle Workman), típica música de “bad-ass motherfucker”, é um bom protocolo de intenções desse modelo.

O outro filtro colocado sobre essa promoção é o de uma problemática moral, uma disputa entre um “bem de si” e um “bem do outro”. O filme parte claramente de alguns conflitos de egoísmo: a amizade infantil entre Seth e Evan deve ser sacrificada para que este segundo “siga seu rumo” e tenha sucesso na vida (Quando o filme começa ficamos sabendo que eles não irão para a mesma faculdade, já que Seth não conseguiu uma vaga na boa escola para a qual vai o amigo)? Fogell pode ser sacrificado em nome do plano de Seth para levar álcool para a festa de tentar conseguir uma namorada? As meninas devem ser tratadas apenas como portais para o treinamento sexual que precede os dias de orgia universitários?

O primeiro filtro: temos aqui três personagens típicos: o gordinho loser (Seth), o bonzinho loser (Evan) e, claro, o nerd loser (Fogell). Os três são definidos já por suas compleições físicas: Seth é, ora, gordo, e tagarela (e usa uma camiseta de Richard Pryor, ator que fez graça a vida toda com personagens coitadinhos); Evan tem carinha de bom moço e é o adolescente que se veste ainda como garoto; e Fogell, bem, ele é o protótipo do nerd: franzino, de óculos, voz nasal que se afina nos momentos de tensão. Mas essa definição é ainda mais interessante pelas atitudes dos personagens, atitudes de tomada de rédeas de seus papéis. A começar por Fogell: ele compra uma identidade falsa para aumentar sua idade e não tem nenhum escrúpulo de mudar seu nome. Mas para um novo que lhe mude a personalidade. Assim, ele deixa de ser Fogell e se transforma em... McLovin. Um nome apenas, um epíteto. Um nome... “fucking pimp”, um nome de “bad-ass motherfucker”.

Claro, há um deslocamento aí central para o filme: a maturidade. A disputa que era entre populares e impopulares se torna uma divisão entre adultos e jovens. Fogell tenta comprar sua maturidade e acha que a conquistou quando acha que conseguiu enganar os policiais. Quando é abordado por Becca (Martha MacIsaac) na saída da aula, Evan se apresenta a ela não como quem é, mas como alguém que tem acesso ao mundo dos adultos. Igualmente, Seth se mostra a Jules como o portador da identidade falsa, como aquele que poderá comprar bebidas alcoólicas para a festa e resolver seus problemas.

Quando o filme começa, Seth e Evan estão discutindo que site de pornografia eles devem assinar. O debate é estético e pouquíssimo libidinoso de fato: Evan quer qualidade nos filmes, Seth tem uma preocupação quase clínica, quase analítica, moral mesmo, com a dimensão pornográfica, com a imagem da penetração (“Ver uma vagina sozinha, apenas... Não é para mim”, diz Seth): ele fala de sexo como que fala de automóvel ou de dever de casa, o sexo é uma obrigação protocolar de uma biografia correta.

O que impressiona em Seth é o grau de consciência que ele tem de todos os papéis típicos do universo cinematográfico de high school (ou, na lógica interna, das biografias). E isso faz dele de certa forma um roteirista de Superbad. Seth é como um humorista de stand-up: ele olha para o mundo e fala criticamente dele. Fala de si e do mundo, aliás. Assim como um comediante desse gênero, ele não terá escrúpulo em dizer abertamente de si: “Eu sou ruim sexualmente”; ou do mundo: “As garotas da faculdade não querem um cara amador”. É uma visão construída pela fala. Por isso, ele tem o controle. Ele tem um plano. Um plano para conseguir fazer sexo. Racional e meticuloso.

Mas, visto de perto, seu plano não é assim tão ególatra. Quando Evan lhe pergunta se ele trouxe uma camisinha, ele desmonta, de maneira absolutamente impostural e chula, todo o planejamento do amigo. Ora, despida da forma histriônica do garoto e da capa de grosseria, Seth faz um discurso... romântico. À antiga. Um romantismo de fórmula, mas um romantismo ainda assim. Ele não quer “fazer sexo” (algo que envolva penetração) no primeiro encontro, ele quer começar a relação dando prazer a sua parceira (via sexo oral, um mito em especial sobre o homem não machista) e, visto de perto, ele quer aquela menina, não outra. A casca de truculência das ações de Seth na verdade é o filtro por sobre seu interesse no “bem do outro”. Ele não é senão o bom menino que gosta da menina e quer ficar com ela.

Algo semelhante ocorre com Evan, embora no caso dele seja mais explícita sua preocupação com o bem do outro (afinal ele é o bom moço). Mas seu movimento é o de se deixar levar pelo plano de Seth, porque ele também acredita que sua posição inferior na escala social do (filme de/biografia de) high school, o impede de ter acesso às meninas, à afetividade. No final das contas, nem é tanto de sexo que se trata. O sexo se torna um elemento central porque, afinal, há uma série de economias da maturidade em jogo: sexo será um índice de maturidade, de, digamos, “superbadicidade”. Sexo é o que há a ser dito.

Na aula de matemática em que conhecemos Becca, vemos Evan observá-la libidinosamente. Olha para seus seios e para seu rosto entediado com a lição. Ao mesmo tempo, entretanto, ouvimos o professor dar aula sobre números complexos. Ouvimo-lo falar: “Se mantivermos ‘I’ como uma constante(...) Então, ‘I’ é um número imaginário, ele não existe realmente”. Boa piada sobre a identidade: “I” (“Eu”, em inglês) não existe se se mantém constante. Dito no momento em que Evan se divide entre o bem de si e o bem do outro, entre o desejo desumanizador e o desejo singularizante, é um jogo de sentido bastante digno de nota.

Por sua vez, Fogell, entretanto, não trará nenhum conflito prévio de moralidade. Sua movimentação é puramente interesseira e calculista. Não temos acesso a nenhuma relação afetiva sua com Nicola, a menina que objetiva. Como elemento mais baixo da pirâmide do poder no ambiente escolar, ele operará a partir de uma “moral do escravo”. Seu McLovin será um personagem para tomar as rédeas de seu destino e as dos destinos dos outros. O nome de bad-ass lhe fará trilhar o caminho do topo da pirâmide. Não há alternativa ao cordeiro senão a de ser ave de rapina. Nesse sentido, a odisséia ao lado dos policiais Slater (Bill Hader) e Michaels (Rogen) será, inclusive a encenação de um vôo. Ao lado deles, ele experimentará a ilusão do poder. Nesse sentido, a grande imagem de Fogell será a do zoom para mostrá-lo disparando contra o carro de polícia no estacionamento. É seu grande momento “superbad”, o grande momento “pau na mão”. Antes, ele e os policiais – cujo jogo moral como dupla mereceria um texto à parte – já havia encenado também a imagem de McLovin, ao levá-lo da festa como preso e concluírem: “Cara, você vai pegar muita mulher depois disso”, logo depois de um dos rapazes na festa constatar diante de sua “prisão”: “Cara, Fogell é fodão”.

O arco diegético do filme se movimenta até o reencontro dos três amigos. Fogell/McLovin havia seguido com os policiais para viver uma mecânica de “irmãos mais velhos” com eles. Seth e Evan seguiram para a festa guiados por um personagem que é ele mesmo um ícone da problemática do filme: enquanto eles são jovens tentando ser adultos, o homem que atropela Seth por acidente é um adulto que se porta como adolescente. Centro de um mistério – ele provavelmente é um pós-nerd, um tarado de internet, mas nada disso fica claro, senão por insinuações –, o homem os conduz para o setting em que se dará o conflito entre o plano tagarelado de Seth e o plano pouco falado de Evan (“Vou apenas contar a Becca como me sinto...”). E é mesmo uma questão do dito e do não dito o que está em jogo: Evan não contou a Seth que vai morar com Fogell na univercidade. Não quer provocar ciúmes no amigo. Evan também evita falar com as pessoas sobre a sensação de perda que tem por não estar com o amigo (na cena com Becca, suas repetições de “Não se preocupe” são uma mensagem clara).

Por isso mesmo, claro, as cenas capitais de Superbad são as duas seqüências finais, a do porão e a do shopping center. O final do filme é profundamente ambíguo. O roteiro escarnece da relação entre Seth e Evan o tempo todo. Sugere um subtexto gay em várias situações (sobretudo ao criar na infância de Seth sua obsessão por desenhar pênis). Mas o mais determinante mesmo é o jogo do que se converte em fato pela fala e o que se converte em fato pelo falo. Após constatarem que são mesmo grandes amigos, irmãos, que são capazes de abrirem mão de si um pelo outro, os dois rapazes dormem juntos abraçados e trocando juras de “Eu te amo”. Ao amanhecer: incômodo, mal-estar. Mas não sabemos qual foi o desenrolar da cena. Nunca saberemos. Há apenas o não dito, a “não fala”. Será um preâmbulo de uma problemática de atribuição de papéis resolvida logo depois. Eles saem para ser o que fingem que são, dois losers que infantilmente passeiam no shopping, e para se depararem com o que são de fato: jovens à beira do mundo adulto.

O encontro com as meninas e a redistribuição de papéis (curiosamente “dirigida” por Jules) estabelece a proclamação final: irmãos no mundo adolescente, Seth e Evan não têm muito lugar para sua relação no mundo adulto. Muito mais poderosa que a ambigüidade sexual plantada como anedota é a ditadura dos papéis sociais: dali, Seth e Evan deixarão de ser amigos totais. Eles terão que assumir os papéis de namorados das meninas pelas quais lutaram. Não haverá lugar para a doçura da juventude no mundo adulto – demarcado pela separação de ambos no shopping com um protocolar (Seth sempre sabe a frase do protocolo): “Eu tenho suas informações”. Sugestiva, então, é a separação em uma escada rolante, em que o gordinho que vai para uma faculdade medíocre desce e o lourinho que vai para a grande instituição de ensino fica no piso mais alto. No final das contas, então, Superbad é um filme sobre a afirmação chave de outro pós-estruturalista (e nós começamos com Foucault!), Jacobson: a linguagem é fascista, não pelo que ela impeça de dizer, mas pelo que ela obriga a dizer com suas regras de fala. Os policiais são elementos de contraponto: eles são os adultos que regredirão à adolescência. Mas Seth e Evan não terão esse direito no horizonte. Eles seguem o protocolo, seguem aquilo que está determinado pela tradição, pelo que “está escrito”. E, afinal, aquilo pelo que lutaram. Aquilo que Seth proclamou, falando, que era seu objetivo.

Alexandre Werneck

(DVD: Sony Pictures)


 








McLovin se dando bem em Superbad