Em sua crítica de Os Donos da Noite, Luiz
Carlos Oliveira Jr. atenta para o fato de James Gray
ser, hoje, um nome único no cinema americano (talvez
compartilhado pelo filme alienígena de David Fincher, Zodíaco). Nos dois, um senso de mise-en-scène pouco
usual na cinematografia americana atual; uma crença
na dramaturgia, ou no bem contar uma história, como
força-motriz do próprio filme (e não em sua impossibilidade,
ou sua insuficiência); uma assinatura tão maior quanto
for sua discrição, ou sua aparência de invisibilidade.
De todos esses argumentos, o que resume boa parte do
cinema de Gray, e sua voz
singular, é a opção por trabalhar em um registro menor,
de gestos pequenos, vozes sussurradas, enquadramentos
frontais, movimentos de câmera elegantes e trilha sonora
pouco destacada.
Nesse sentido, enquanto quase toda a cinematografia
americana passa por um período onde sua
existência e relevância, comercial ou artística, está
na admissão e glorificação do excesso (pensemos em toda
a construção computadorizada de 300 ou dos filmes
de Peter Jackson, no conjunto de referências e tramas
das Panteras ou nas aventuras do Homem-Aranha,
na hiper-duração de blockbusters
como Piratas do Caribe ou, em registro oposto
em termos de proposta comercial, do já citado Zodíaco)
como justificativa ao mundo do que só uma indústria
rica e consolidada consegue produzir, Gray,
ao contrário, é um cineasta da essência. Seu apreço
por detalhes é conhecido – não por acaso, o diretor
demorou seis anos para realizar este filme -, mas seu
cinema, em nenhum momento, parece colocá-los gratuitamente.
Talvez o que mais o aproxime do estilo clássico narrativo
(ao qual o diretor tanto é comparado, como se no cinema
americano só pudessem existir duas formas: a contemporânea
e a clássica) seja esta necessidade funcional: uma palavra,
um gesto, uma ação, um movimento só podem existir se
tiverem sua razão de ser. Seu apreço por detalhes, portanto,
é necessário para que nenhum elemento de fora entre
no caminho de algo importante. Nada é gratuito no cinema
de Gray, e é aí onde reside
sua enorme força, e é por isso que ele é feito de tragédias.
Cada imagem de Gray, cada
olhar, cada fala escondida parecem trazer com elas,
por sua importância e centralidade, o peso de um destino
trágico e incontornável, ainda que estejamos na mais
completa felicidade.
Em Caminho Sem Volta, acompanhamos a trajetória
de Leo Handler,
vivido por Mark Wahlberg, jovem que, após sair da prisão, quer se regenerar
e ter uma vida decente. A trama mostra que, não importa
quais sejam suas tentativas, isto será impossível. Em
Os Donos da Noite, o protagonista vivido por
Joaquin Phoenix
não tem história tão diferente: é gerente de uma boate
de sucesso, não participa nem da polícia nem do tráfico
que sabe existir por ali, e quer apenas construir um
império de casas noturnas. Mas ele também sucumbirá
ao destino inelutável. Estar ligado de alguma forma
ao crime – Gray parece dizer
–, seja como policial, bandido ou simples testemunha,
é estar sempre ligado ao crime, e as conseqüências pessoais
disso nunca serão positivas. Mas,
se há algo que se difere de forma crucial nos dois filmes,
e atesta a maior qualidade do último, é menos uma questão
de estilo (todas as marcas de Gray
já existiam na surpreendente e ótima obra anterior),
mas uma questão de postura, que pode ser exemplificada
com bastante precisão na troca de função entre os dois
atores (Phoenix era segundo protagonista de Caminho Sem Volta,
enquanto Wahlberg é o segundo
protagonista de Donos da Noite).
Pois Wahlberg é um ator que
– talvez por suas limitações dramáticas – parece conter
todos os sentimentos em um mesmo olhar, não importa
qual sentimento exista. Em Caminho Sem Volta esta
característica foi muito bem utilizada por Gray.
Como alguém que não entende por que o destino faz isso
com ele, o olhar de Wahlberg parece todo o tempo acuado, em fuga. E o filme, seguindo
seu protagonista, atravessa o mesmo percurso. Sempre
se estará fugindo, correndo, não porque o destino irá
chegar, mas por que simplesmente não há sentido em ele
existir. Partindo desse princípio, o filme percorre,
do início ao fim, uma mesma levada, certamente cada
vez mais dramática e tensa, mas necessariamente linear.
A questão não é de acomodação a seu estilo (até porque,
em seu segundo longa-metragem, não existia ainda estilo
a se acomodar), mas o cinema em tom menor de Gray
nunca, também, entra em incômodo, transforma-se em choque,
provoca explosões.
É este salto que irá ocorrer ao dar o papel de protagonista
de seu Os Donos da Noite a Joaquin
Phoenix, ator de recursos
dramáticos muito mais amplos, nesta que provavelmente
é a melhor atuação do cinema americano no ano passado.
O olhar de Phoenix (e, para Gray, tudo no cinema
é questão de olhar), ao contrário de Wahlberg,
parece um vulcão em erupção, disposto a brigar com o
destino antes que ele aconteça, ou, no máximo, tão logo
ele aconteça. Não mais a fuga diante da tragédia inevitável,
agora, juntamente à incompreensão, existe também a revolta.
Se Os Donos da Noite é construído sobre a mesma
levada calma e soturna, como se o ar pesasse dentro
da tela, de seu filme anterior, são esses curtos-circuitos
que dão um salto no cinema de Gray
e comprovam a excelência de seu novo filme. Não
por acaso, alguns dos grandes momentos de Os Donos
da Noite são aqueles em que o sentimento de revolta
está mais presente, seja por sua total impotência (a
morte do pai, em câmera lenta e sem som), seja porque
rodeia o ambiente e não nos é possível saber o que surgirá
dali (a perseguição final na mata), seja porque explode
quando não deveria (a briga de Phoenix
com Eva Mendez no quarto de
hotel). Em todos os outros, sua simples existência
escondida já é suficiente e poderosa.
Aqui já foi escrito que nada no cinema de Gray
é gratuito, e que sua obra existe sempre a partir de
uma essência (da imagem, do mundo, das pessoas). Se
assim, naturalmente, os curtos-circuitos de seu cinema
seguirão a mesma lógica, inelutável. Por isso, o domínio
da mise-en-scène de Gray e sua aparente invisibilidade têm de andar juntos. Um
corte é uma possível ruptura de mundo; uma aproximação
de câmera, uma nova faceta do personagem; um travelling
– ou uma panorâmica – entre dois corpos, uma nova aproximação
ou crise entre eles. Cada imagem, também já foi dito,
traz consigo o peso do destino, e cada um desses elementos,
a força e a presença da tragédia. Não por acaso, existe
em Caminho Sem Volta e Os Donos da Noite
uma violência – ainda que não necessariamente vista
– extrema, presente em cada fotograma. Por isso, será
Gray o cineasta do panorama
americano atual – junto com Shyamalan
e poucos outros – que tomará para si a posição política
não apenas de “contar uma história” (como já admitiu
em entrevista), mas de recuperar o papel e o valor essencial
do corte, do movimento de câmera, do zoom, enfim, dos
elementos básicos da linguagem cinematográfica. E, entre
esses poucos, Gray certamente é o mais cru e mais direto em suas intenções.
Assim, tentar filiá-lo ao cinema dos anos 70, do qual
ele confessamente é influenciado, de certa forma desmerece
sua importância no cenário atual, pois James Gray
é dos mais originais e menos ultrapassados cineastas
a surgirem no panorama americano em muito tempo. Afinal,
o que sobra dessa crença na essência é também a crença
no sentimento vivo, ainda não explorado e registrado
no cinema. E quantos, atualmente, conseguem tirar esse
sentimento em estado puro numa seqüência onde dois irmãos,
depois de brigarem um filme inteiro, revelam um ao outro
que se amam, sem soar datado, irônico, cafona ou clichê?
Ou transformar um choro convulsivo na chuva em uma imagem
nova e emocionante a nossos olhos gastos? Não muitos
além de Gray, com seus pequenos
gestos, palavras sussurradas, olhares fugidios
ou revoltados e imensas explosões.
Leonardo Levis
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