11ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES
Cobertura diária

CLEÓPATRA, de Julio Bressane

Na abertura da sessão de Cleópatra, ontem à noite, o produtor do filme, Tarcísio Vidigal, explicou que Bressane não poderia estar em Tiradentes por conta de compromissos na Europa, mas que tinha mandado um recado (bastante lacônico, aliás). "Este um pequeno filme sobre um grande tema". Não é surpresa para ninguém que, a esta altura do campeonato, o único grande tema que interesse a Bressane seja ele mesmo. Mas diferente do que fez Carlão Reichenbach em Falsa Loura, por exemplo, este não é um filme que reúne um repertório de imagens já associadas ao trabalho do cineasta e então aponta novos rumos a elas. Conversando com Reichenbach estes dias (numa entrevista que o leitor verá publicada na próxima edição da Contracampo), ele nos contava, a mim e ao Luiz Carlos Oliveira Jr., detalhes sobre seu próximo filme e, no fim, sobre como temia sempre que um projeto de tamanha proximidade com sua história pessoal pudesse se tornar, involuntariamente, seu último trabalho. E então citou Pasolini, justificando que depois de filmar literalmente o fim do mundo em Salò, o que mais poderia o gênio italiano fazer? É possível que Bressane tenha criado para si a mesma armadilha em Cleópatra. E não porque o filme trate do fim do mundo, mas sim porque é, do começo ao fim, a implosão extasiante de seu próprio mundo.

Basta dizer que Cleópatra é o elo perdido entre Filme de Amor e nada menos que A Família do Barulho. Uma seqüência: Marco Antônio começa a abusar da paixão de Cleópatra, e ela o encosta na parede: "tá pensando o quê, que a puta egípcia se arreganha e pronto?". Alessandra Negrini capricha no sotaque caipira (sua voz no filme é uma mistura de cinco sotaques regionais diferentes – uma "poliglota", como se repete ao longo do filme, mas especialista nas línguas brasileiras) e se contorce em seu trono de rainha como se sofresse de alguma cólica aguda. O sotaque é idêntico ao que Rita Lee fazia nas músicas dos Mutantes, escracho em seu mais alto grau. O corpo, dobrado e redobrado como se as articulações não existissem, lembra as mais radicais experiências das atrizes marginais, certamente a que Bressane mais filmou, Helena Ignez. À medida que Alessandra Negrini vá se apresentando cada vez mais liberta, cada vez mais despudorada, e que Bressane vá exigindo dela mais caretas, mais expressões no limite do patético, mas certamente sem nunca chegar lá completamente, vamos pensando que talvez Cleópatra seja aquilo que Memória de Um Estrangulador de Loiras foi para Guará Rodrigues: um documentário (encenado, uma vez que a presença física é outra) sobre a Helena da Belair, mediunicamente incorporada por Alessandra da Globo – Falsa Loura é melhor que Cleópatra, mas numa coisa o júri de Brasília acertou em cheio: não existe paralelo no cinema brasileiro recente de um trabalho de atriz da enormidade do que Alessandra Negrini faz aqui.

Depois de Filme de Amor, o "Filme de Humor" (é um trocadilho irresistível). É o canto de despedida da última grande rainha, a que tem todos os homens aos seus pés: mas seu rosto mesmo pertence a Bressane. Numa das inúmeras seqüências em que Cleópatra é enquadrada frontalmente, olhando para a câmera e exibindo-se para ela, Bressane forja um repertório de expressões que levam Alessandra Negrini do sorriso largo ao truque dos olhinhos virados, como se em transe. Em todos estes pequenos planos de careta, ficamos esperando que, em algum momento, ela cuspa aquela baba negra (agora vermelhíssima, como toda a fotografia do filme) que um dia vimos Helena cuspir. E mais: contra a odalisca de araque de Maria Gladys em Família do Barulho, Bressane arranja duas originais de fábrica, com a câmera fazendo o mesmo jogo de chicote entre uma e outra, como na famosa seqüência do filme de 1970.

Mas não é, como aquela placa no meio de Família do Barulho, um "retorno" de Bressane. Se Cleópatra é um filme sobre o momento em que volúpia, paixão e poder não se equilibram mais a não ser que num regime de pura convulsão (física, demonstrável, como nos diversos ataques epiléticos encenados aqui, e não através da sublimação do corpo, como nos vôos pelo quarto de Filme de Amor), esse descontrole não ignora a moldura intransponível em que Bressane encerrou seu cinema dos anos 90 para cá. As armações do poder romano, por exemplo, são encenadas da mesma maneira que os longos colóquios religiosos de São Jerônimo, mas aqui os discursos não dividem o espírito com a cena em que são proferidos, não se relacionam com a idéia que os personagens tenham de si, de seu trabalho ou daquilo que suas figuras históricas signifiquem: quatro atores em quadro, num plano aberto, parados, conversando entre si com impostação straubiana é "a maneira certa" de se filmar, e pronto. Mesma coisa com a recorrência de simbolismos: tomar o Farol de Alexandria como símbolo fálico onipresente, fazer Alessandra Negrini chupar o peito de Miguel Falabella, rito da absorção egípcia por Roma, dando de mamar a sua nova rainha como uma vez Rômulo e Remo fizeram com certa loba, tudo isto parece já fazer parte de uma bula bressaniana que o diretor faz questão de sempre nos prescrever.

Morta, Cleópatra torna-se ao mesmo tempo mito e sombra do que um dia foi a presença física mais aterradora a já habitar a Terra. Se Cleópatra, o filme, servirá para devolver ainda mais carne, pulso e sangue ao cinema de Bressane, ou se o colocará de vez como sombra de um abalo sísmico que aquietou-se na própria mitologia, isso só o tempo e o próximo filme dirão. Mas até lá, fiquemos remoendo (e revendo, sempre) este grande filme-esfinge.

Rodrigo de Oliveira