CLEÓPATRA,
de Julio Bressane
Na abertura da sessão de Cleópatra, ontem à
noite, o produtor do filme, Tarcísio Vidigal, explicou
que Bressane não poderia
estar em Tiradentes por conta de compromissos na Europa, mas que tinha mandado
um recado (bastante lacônico, aliás). "Este um pequeno filme
sobre
um
grande
tema". Não é surpresa para ninguém que, a esta altura do campeonato, o único
grande tema que interesse a Bressane seja ele mesmo. Mas diferente do
que
fez
Carlão Reichenbach em Falsa Loura, por exemplo, este não é um filme que
reúne um repertório de imagens já associadas ao trabalho do cineasta e
então aponta novos rumos a elas. Conversando com Reichenbach estes dias (numa
entrevista que o leitor verá publicada na próxima edição da Contracampo), ele
nos contava, a mim e ao Luiz Carlos Oliveira Jr., detalhes sobre seu próximo
filme e, no fim, sobre como temia sempre que um projeto de tamanha proximidade
com sua história pessoal pudesse se tornar, involuntariamente, seu último trabalho.
E então citou Pasolini, justificando que depois de filmar literalmente o fim
do
mundo em Salò, o que mais poderia o gênio italiano fazer? É possível que
Bressane tenha criado para si a mesma armadilha em Cleópatra. E não porque
o filme trate do fim do mundo, mas sim porque é, do começo ao fim, a
implosão extasiante de seu próprio mundo.
Basta dizer que Cleópatra é o
elo perdido entre Filme de Amor e nada menos que A Família do Barulho.
Uma seqüência: Marco Antônio começa a abusar da paixão de Cleópatra, e ela o
encosta na parede: "tá pensando o quê, que a puta egípcia se arreganha e
pronto?". Alessandra Negrini capricha no sotaque caipira (sua voz no filme é uma
mistura de cinco sotaques regionais diferentes – uma "poliglota", como se
repete
ao longo do filme, mas especialista nas línguas brasileiras) e se contorce em
seu trono de rainha como se sofresse de alguma cólica aguda. O
sotaque é idêntico ao que Rita Lee fazia nas músicas dos Mutantes, escracho em
seu mais alto grau. O corpo, dobrado e redobrado como se as articulações não
existissem, lembra as mais radicais experiências das atrizes marginais, certamente
a que Bressane mais filmou, Helena Ignez. À medida que Alessandra
Negrini vá se apresentando cada vez mais liberta, cada vez mais despudorada,
e
que Bressane vá exigindo dela mais caretas, mais expressões no limite do
patético, mas certamente sem nunca chegar lá completamente, vamos pensando que
talvez Cleópatra seja aquilo que Memória de Um Estrangulador de
Loiras foi para Guará Rodrigues: um documentário (encenado, uma vez que a
presença física é outra) sobre a Helena da Belair, mediunicamente incorporada
por Alessandra da Globo – Falsa Loura é melhor que Cleópatra, mas
numa coisa o júri de Brasília acertou em cheio: não existe paralelo no cinema
brasileiro recente de um trabalho de atriz da enormidade do que Alessandra Negrini
faz aqui.
Depois de Filme de Amor, o "Filme de Humor" (é um
trocadilho irresistível). É o canto de despedida da última grande rainha, a que
tem todos os homens aos seus pés: mas seu rosto mesmo pertence a Bressane. Numa
das inúmeras seqüências em que Cleópatra é enquadrada frontalmente, olhando para
a câmera e exibindo-se para ela, Bressane forja um repertório de
expressões que levam Alessandra Negrini do sorriso largo ao truque dos olhinhos
virados, como se em transe. Em todos estes pequenos planos de careta, ficamos
esperando que, em algum momento, ela cuspa aquela baba negra (agora
vermelhíssima, como toda a fotografia do filme) que um dia vimos Helena cuspir.
E mais: contra a odalisca de araque de Maria Gladys em Família do Barulho,
Bressane arranja duas originais de fábrica, com a câmera fazendo o mesmo jogo
de chicote entre uma e outra, como na famosa seqüência do filme de 1970.
Mas não é, como aquela placa no meio de Família do
Barulho, um "retorno" de Bressane. Se Cleópatra é um filme
sobre
o
momento em que volúpia, paixão e poder não se equilibram mais a não ser que num
regime de pura convulsão (física, demonstrável, como nos diversos ataques
epiléticos encenados aqui, e não através da sublimação do corpo, como nos vôos
pelo quarto de Filme de Amor), esse descontrole não ignora a moldura intransponível
em que Bressane encerrou seu cinema dos anos 90 para cá. As armações do poder
romano, por exemplo, são encenadas da mesma maneira que os longos colóquios religiosos
de São Jerônimo, mas aqui os discursos não dividem o espírito com a cena
em que são proferidos, não se relacionam com a idéia que os personagens tenham
de si, de seu trabalho ou daquilo que suas figuras
históricas signifiquem: quatro atores em quadro, num plano aberto, parados, conversando
entre si com impostação straubiana é "a maneira certa" de se filmar, e pronto.
Mesma coisa com a recorrência de simbolismos: tomar o Farol de Alexandria como
símbolo fálico onipresente, fazer Alessandra Negrini chupar o peito de Miguel
Falabella, rito da absorção egípcia por Roma, dando de mamar a sua nova rainha
como uma vez Rômulo e Remo fizeram com certa loba, tudo isto
parece já fazer parte de uma bula bressaniana que o diretor faz questão de sempre
nos prescrever.
Morta, Cleópatra torna-se ao mesmo tempo mito e sombra do
que um dia foi a presença física mais aterradora a já habitar a Terra. Se Cleópatra,
o filme, servirá para devolver ainda mais carne, pulso e sangue ao cinema de
Bressane, ou se o colocará de vez como sombra de um abalo sísmico que aquietou-se
na própria mitologia, isso só o tempo e o próximo filme dirão. Mas
até lá, fiquemos remoendo (e revendo, sempre) este grande filme-esfinge.
Rodrigo
de Oliveira
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