11ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES
Cobertura crítica
TIRADENTES ATÉ OS OLHOS

Como não chorar em Tiradentes?

Algo de muito especial acontece nesta cidade durante os dias em que o cinema arma seu circo por aqui. É sempre em janeiro, sempre chove e pensamos que a tenda montada para a exibição dos filmes está a ponto de voar no meio do temporal, sempre uma pequena caravana de cinéfilos (ou só curiosos, ou só famílias em férias, ou só jovens a fim de um filme antes do segundo porre do dia, e mais um sem-número de tipos que aparece por aqui sob as mais diversas configurações), sempre o mesmo espírito mineiro (as cédulas de votação do prêmio de público têm apenas três opções, regular, bom ou excelente, porque receber um visitante chamando seu filme de ruim é algo impensável). Daí aparecem essas pessoas esquisitas que vêm do resto do país só para estes dez dias do evento, uns trabalhando, outros apresentando trabalhos, uns terceiros escrevendo sobre eles. E quando menos se espera, duas sessões simultâneas, uma na tal tenda e outra ao ar livre, na praça, juntam duas, três mil pessoas.

O Carlão Reichenbach, por exemplo, é um tipo esquisitão. Vai apresentar seu novo filme, Falsa Loura, na sessão de abertura da mostra, numa cerimônia que coincide com a homenagem que a organização sempre presta a profissionais da área. Vai entregar o Troféu Barroco à Rosanne Mulholland, homenageada junto com João Miguel como os representantes de uma nova geração de atores do cinema brasileiro, atores anos 2000, cada um com três filmes sendo exibidos na programação (cujo tema, muito propriamente, é "Juventude em Trânsito"). Brasília está na cabeça ainda, um prêmio negado a Rosanne que gerou toda a convulsão que gerou, Carlão declarando que nunca mais participaria de um festival em que a premiação envolva grana. O festival seguinte é justamente Tiradentes: não há grana, só um troféu bonito de reconhecimento por um trabalho, Rosanne no palco, Carlão, no microfone, anuncia o prêmio para sua atriz, e chora.

Ano passado reclamamos que a cerimônia de abertura e o primeiro dia do festival tinham deixado o cinema escapar. Esse ano – que bela recuperação – o cinema começou antes mesmo do primeiro filme rolar na tela. Carlão apontando para Rosanne, a voz falhando, aquele sujeito alto, desengonçado, vestido com a camisa do Star Wars – Episódio 1, emocionado ao dizer que mudou seu filme inteiro porque aquela atriz tinha dado à sua personagem uma dignidade que não existia no papel e que, na montagem, ele simplesmente não podia ignorar. Se estivesse filmando a si mesmo, Carlão teria rodado uma de suas mais tocantes seqüências. Não estava. Os outros 800 pares de olhos presentes ali acabaram fatalmente registrando tudo aquilo. 800 seqüências de um mesmo ato. Como não dividir essa emoção?

No dia seguinte, tão cedo que mal estávamos recuperados da ressaca anterior, debate sobre Falsa Loura. Já não era novidade, eu já sabia que ia acontecer, mas chego atrasado e passo desembestado pelo anfiteatro do Centro Cultural Yves Alves e me sento lá na frente. Tiro os fones do ouvido, respiro, olho para trás buscando os amigos e vejo o que já sabia que veria: um auditório lotado numa manhã de sábado para ouvir Carlão e sua equipe (além de Rosanne, a produtora Sara Silveira e Cauã Reymond, também por lá). Lágrimas imediatas: essa é uma comunhão que não acontece em festival nenhum do país.

Para surgir, ela precisa de todos aqueles elementos que falei lá no começo. Precisa do crítico chorão, do pai que foi ver o filme com a filha e pergunta porque o filme é tão pesado, do cineasta louco, apaixonado e feliz por ter causado esse incômodo tão positivo num espectador que talvez em outro contexto nunca pudesse ter sentido tal peso. Do estudante de cinema que vai ao debate carregando o Práxis do Cinema na mão, do velho cinéfilo que dialoga com o filme em público, sem medo de se expor – pelo contrário, sentindo que Tiradentes é o lugar para isso. E é.

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A cobertura da Contracampo este ano vai tentar equilibrar a resposta crítica imediata aos filmes com um relato mais detalhado desse mundo de outras coisas que acontecem aqui por causa dos filmes (debates, seminários, o clima das sessões, conexões entre filmes, impressões gerais). Eventualmente, o texto será substituído pela "prova material" da coisa: agora, por exemplo, o leitor poderá baixar dois arquivos de áudio (aqui e aqui) para ouvir a primeira intervenção de Carlão Reichenbach no debate de Falsa Loura. Ele começa falando de sua descoberta de Marvin Gaye a partir do contato com as operárias paulistas que renderam Garotas do ABC e tiveram seu desdobramento neste filme novo, para finalmente emendar no que ficara subentendido na homenagem do dia anterior – sua revolta não só pela não-premiação de Rosanne, mas, sobretudo, por Brasília também ter ignorado aquela que ele chama de "a mais inventiva trilha sonora do cinema brasileiro recente", de seu parceiro Nelson Ayres (no que, aliás, tem toda razão). O melhor momento, no entanto, fica para o comentário de Carlão sobre sua seqüência mais querida em Falsa Loura – e que virou uma das três preferidas de toda sua carreira – um momento tirado de A Moça com a Valise, como ele mesmo anuncia. Mas para incentivá-los a baixar o arquivinho de áudio, não revelo mais destes grandes momentos do debate.

Nos encontramos pelos próximos dias, sempre aqui no Plano Geral, com textos, sons, e o que mais pudermos absorver deste festival incrível. Até lá.

Rodrigo de Oliveira