TIRADENTES
ATÉ OS OLHOS Como
não chorar em Tiradentes?
Algo de muito especial acontece nesta cidade durante os dias em que o cinema
arma seu circo por aqui. É sempre em janeiro, sempre chove e pensamos que a tenda
montada para a exibição dos filmes está a ponto de voar no meio do temporal,
sempre uma pequena caravana de cinéfilos (ou só curiosos, ou
só famílias em férias, ou só jovens a fim de um filme antes do segundo porre
do
dia, e mais um sem-número de tipos que aparece por aqui sob as mais diversas
configurações),
sempre o mesmo espírito mineiro (as cédulas de votação do prêmio de público têm
apenas três opções, regular, bom ou excelente, porque receber um visitante chamando
seu filme de ruim é algo impensável). Daí aparecem essas pessoas esquisitas que
vêm do resto do país só para estes dez dias do evento, uns trabalhando,
outros apresentando trabalhos, uns terceiros escrevendo sobre eles. E quando
menos se
espera, duas sessões simultâneas, uma na tal tenda e
outra ao ar livre, na praça, juntam duas, três mil pessoas.
O Carlão Reichenbach, por exemplo, é um tipo esquisitão. Vai apresentar seu novo
filme, Falsa Loura, na sessão de abertura da mostra,
numa cerimônia que coincide com a homenagem que a organização sempre presta a
profissionais da área. Vai entregar o Troféu Barroco à Rosanne Mulholland, homenageada
junto com João Miguel como os representantes de uma nova geração de atores do
cinema brasileiro, atores anos 2000, cada um com três filmes sendo exibidos na
programação (cujo tema, muito propriamente, é "Juventude em
Trânsito"). Brasília está na cabeça ainda, um prêmio negado a Rosanne que
gerou
toda a convulsão que gerou, Carlão declarando que nunca mais participaria de
um
festival em que a premiação envolva grana. O festival seguinte é justamente Tiradentes:
não há grana, só um troféu bonito de reconhecimento por um trabalho, Rosanne
no palco, Carlão, no microfone, anuncia o prêmio para sua
atriz, e chora.
Ano passado reclamamos que a cerimônia de abertura e o primeiro dia do festival
tinham deixado o cinema escapar. Esse ano – que bela
recuperação – o cinema começou antes mesmo do primeiro filme rolar
na tela. Carlão apontando para Rosanne, a voz falhando, aquele sujeito alto,
desengonçado, vestido com a camisa do Star Wars – Episódio 1, emocionado
ao dizer que mudou seu filme inteiro porque aquela atriz tinha dado à sua personagem
uma dignidade que não existia no papel e que, na montagem, ele simplesmente
não podia ignorar. Se estivesse filmando a si mesmo, Carlão teria rodado uma
de suas mais tocantes seqüências. Não estava. Os outros 800 pares de olhos presentes
ali acabaram fatalmente registrando tudo aquilo. 800 seqüências de um mesmo ato.
Como
não
dividir essa emoção?
No dia seguinte, tão cedo que mal estávamos recuperados da ressaca anterior,
debate sobre Falsa Loura. Já não era novidade, eu já sabia que ia acontecer,
mas chego atrasado e passo desembestado pelo anfiteatro do Centro Cultural Yves
Alves e me sento lá na frente. Tiro os fones do ouvido,
respiro, olho para trás buscando os amigos e vejo o que já sabia que veria: um
auditório lotado numa manhã de sábado para ouvir Carlão e sua equipe (além de
Rosanne, a produtora Sara Silveira e Cauã Reymond, também por lá). Lágrimas
imediatas: essa é uma comunhão que não acontece em festival nenhum do país.
Para surgir, ela precisa de todos aqueles elementos que falei
lá no começo. Precisa do crítico chorão, do pai que foi ver o filme
com a filha e pergunta porque o filme é tão pesado, do cineasta louco, apaixonado
e feliz por ter causado esse incômodo tão positivo num espectador que talvez
em outro contexto nunca pudesse ter sentido tal peso. Do estudante de cinema
que vai ao debate carregando o Práxis do Cinema na mão, do velho
cinéfilo que dialoga com o filme em público, sem medo de se expor – pelo
contrário, sentindo que Tiradentes é o lugar para isso. E é.
***
A cobertura da Contracampo este ano vai tentar equilibrar a
resposta crítica imediata aos filmes com um relato mais detalhado desse
mundo de outras coisas que acontecem aqui por causa dos filmes (debates,
seminários, o clima das sessões, conexões entre filmes, impressões gerais). Eventualmente,
o texto será substituído pela "prova material" da coisa: agora, por
exemplo,
o leitor poderá baixar dois arquivos de áudio (aqui e
aqui)
para ouvir a primeira
intervenção de Carlão Reichenbach no debate de Falsa Loura.
Ele começa falando de sua descoberta de Marvin Gaye a partir do contato com as
operárias paulistas que renderam Garotas do ABC e tiveram seu desdobramento
neste filme novo, para finalmente emendar no que ficara subentendido na homenagem
do dia anterior – sua revolta não só pela
não-premiação de Rosanne, mas, sobretudo, por Brasília também ter ignorado aquela
que ele chama de "a mais inventiva trilha sonora do cinema brasileiro
recente", de seu parceiro Nelson Ayres (no que, aliás, tem toda razão).
O melhor
momento, no entanto, fica para o comentário de Carlão sobre
sua seqüência mais querida em Falsa Loura – e que virou uma das três preferidas
de
toda sua carreira – um momento tirado de A Moça com a Valise, como ele
mesmo
anuncia. Mas para incentivá-los a baixar o arquivinho de áudio,
não revelo mais destes grandes momentos do debate.
Nos encontramos pelos próximos dias, sempre aqui no Plano Geral, com textos,
sons,
e o que mais pudermos absorver deste festival
incrível. Até lá.
Rodrigo de Oliveira
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