A lógica das mulheres
que se confessam atravessa as relações do filme,
sobretudo a entre mãe e filha.
Mulheres Sexo Verdades Mentiras é todo
estruturado em torno de dois eixos. O primeiro deles
o de uma narrativa, portanto de um fluxo, de algo que
muda-ao-longo-do-tempo. É o drama de Laura (Julia Lemmertz),
uma mulher cujo casamento acabou e que tem uma relação
liberada com um homem misterioso, que a satisfaz sexualmente,
mas não está sempre presente. O segundo deles é o de
uma descrição, supostamente de um desfluxo,
uma totalização, uma integração, uma “teoria”, algo
que se-consolida-sem-mudar-ao-longo-do-tempo. É o documentário
de Laura, que tenta mapear a relação entre as mulheres
de seu tempo e de sua cidade com suas sexualidades.
A operação dramática do filme é baseada no diálogo entre essas duas linhas. Seria
um filme sobre como a documentarista está fazendo um filme sobre sexo porque
acabou de descobri-lo como fonte de prazer e um filme sobre como a relação dela
em relação ao sexo acaba por ser moldada pela maneira como as mulheres refletem
sobre o tema. Tudo isso, na verdade, entretanto, é construído como uma didática.
A história do filme é um recurso de facilitação da apresentação dos discursos
da mulher a respeito de sexo.
É onde se coloca a principal questão a respeito desta obra. Ora, cada um dos
depoimentos apresentados na tela, sejam os documentais, sejam os encenados (como
se documentais fossem), claramente segue um mesmo sistema: 1) cria-se o uma enciclopédia
de clichês sobre a sexualidade feminina; 2) escolhem-se os clichês que sejam
mais “polêmicos”, ou seja, mais em oposição a uma certa imagem da mulher-de-pudores;
3) cria-se um conjunto de diálogos que re-qualifiquem essa mulher-de-pudores
como uma mulher-não-liberada; 4) cria-se uma situação dramática em que se positive
a liberação sobre os pudores (que seriam o elemento tolhedor do prazer e da liberdade
feminina), a mulher-liberada sobre a “careta”.
Assim, por exemplo, em determinada cena escolhe-se o clichê “fantasias sexuais”,
que Laura lança sobre um grupo de entrevistadas – algumas amigas entre elas.
Uma confessará já ter tido uma fantasia com mulheres. “O que é isso, gente, será que
eu sou sapata?”, pergunta ela, como se estivesse em um filme institucional de
alguma entidade de luta pelos direitos dos homossexuais (a mostrar que, não,
você não tem que se rotular, você é uma mulher absolutamente normal, oprimida
pelo moralismo.) Este é o padrão: sempre ficará uma pergunta no ar – ou, neste
caso, explícita – sobre a validade moral do argumento da mulher entrevistada.
E, e esse é um dos principais problemas do filme, ficará sempre uma resposta
no ar. “Tal posição clichê de liberação feminina é aceitável ou é um escândalo
e este mundo está perdido?”, parece que se pode ouvir perguntar. “Claro que não!
Toda posição libertadora da mulher é louvável e este mundo estaria perdido se
se entregasse à caretice”, parece que se pode ouvir responder.
No outro eixo, essa mesma dicotomia já está colocada. Ela está inscrita na oposição
entre Laura e sua irmã (Malu Galli), a primeira mulher-liberada e a segunda a
mulher-de-pudores. As falas da irmã de Laura, aliás, são de um esquematismo atroz,
parecem extraídas do manual-da-mulher-“careta”. O automatismo da oposição entre
as duas é o primeiro elemento a transformar Mulheres Sexo Verdades Mentiras em
um espetáculo primário, amador no pior sentido do termo.
Daí a conclusão inevitável: não há um só momento em todo o filme em que o déjà vu seja
evitável. Autor de Malu Mulher, série produzida pela TV Globo em 1979,
Euclydes Marinho retoma em seu filme (quase) o mesmo grupo de questões que atormentava
sua personagem naquele momento de ocaso de ditaduras (políticas e morais). E
o faz sem acrescentar nenhum elemento ao debate.
Até porque, mesmo anacrônico, Mulheres Sexo Verdades Mentiras é um Malu
Mulher pós-Sex and the City, ou seja, é posterior a um movimento de
incorporação do discurso da liberação sexual por meio do conservadorismo estético.
Em grande medida, as entrevistadas de Laura não são tão diferentes das amigas
e das mulheres-objeto de Carrie Bradshaw, cada uma seguindo um estereótipo de
comportamento. E Laura também não é tão diferente assim da colunista de temas
sexuais do seriado americano. Porque, afinal, assim como a nova-iorquina, Laura é uma
mulher moderninha de araque. Assim como ela, a moça tem, no fundo no fundo, um
sonho tradicionalista de relacionamento e acredita no príncipe encantado. Que,
no mundo contemporâneo, tem ainda a qualidade de homem libertador do “vulcão
adormecido” (supremo clichê de mulher de novela) que existiria em cada mulher.
Não à toa, vemo-la entrevistar a empresária de cinema erótico de uma maneira
claramente moralista e escandalizada. Suas perguntas não são etnográficas, são
mais próximas de um moralismo típico da reportagem de jornal. Essa atitude, entretanto,
não é tratada pelo roteiro como uma “contradição da personagem”. Em vez disso,
o texto prefere posicioná-la como a mulher mais segura no momento das entrevistas
do que em sua vida particular. A fauna feminina é que se daria a ela é que traria
um conjunto de “lições” para sua vida particular. O eixo narrativo, então, segue
o caminho do conflito de Laura consigo mesma. Ela, afinal, está fazendo um filme
para entender “a mulher” porque, ora, é uma.
Já o eixo descritivo segue sua operação de “descoberta”, de consolidação de conceitos.
O processo seria etnográfico – até mesmo o do making of, uma vez que o
filme teria partido de entrevistas reais antes de ser dramatúrgicas: Laura vai
filmando depoimentos e, com eles, vamos entendendo melhor os “tipos” – outro
traço complicador do filme, o enciclopedismo: cada personagem será um exemplar
de um modelo (OK, isso poder ser apenas produto da montagem conceitual de Laura,
de uma escolha, mas o que vemos diante dos olhos é uma “pequena enciclopédia
dos tipos-clichês femininos”, assim como vemos nas narrações de Sex and the
City). O grande problema aí vem dessa “descoberta” e dessa “etnografia”:
não surge nada de novo diante da câmera. Uma vez que é preciso mapear os clichês,
veremos vários deles ali: a senhora-de-meia-idade-com-relação-saudável-com-o-sexo;
a mulher-casada-que-“ama-o-marido”-mas-que-confessa-infelicidade-sexual; a prostituta-que-mantém-distanciamento-da-atividade-e-fala-com-propriedade
(“o homem é um botãozinho e a mulher, um painel de controle.”); a jovem-de-classe-média-que-faz-programas
(“Eu já fiquei com tanto cara errado em festa, porque não vou comprar meu apartamento
com isso?”); a menina-de-classe-baixa-que-gosta-de-“sacanagem” (“não conheço
nenhum cara que não me ache a melhor boqueteira de sua vida”); as mulheres-que-usam-vibrador;
as mulheres-que-vendem-vibrador; gêmeas! (bonitas e sexy – claro ! –, duas gêmeas-posicionadas-dicotomicamente,
uma “não dá no primeiro encontro de jeito nenhum”, a outra “dá no primeiro encontro
sim, senhora”). E clichês conceituais também como a panacéia-do-orgasmo-feminino
ou a da descoberta-do-homem. A lista de clichês ocupa minuto a minuto o filme.
Até mesmo aos homens cabe um local clichê. No filme há dois tipos: de um lado,
o liberado Mário, capaz de transformar em uma certa poesia singularizante todo
discurso de ação sexual, mas que originalmente estaria interessado apenas em
uma relação fugidia. Diante dele, uma mulher se sente única, porque se sente
todas as mulheres do mundo; e, de outro, os homens que dão depoimentos, estritamente
para mostrar que o-homem-também-é-romântico. Na verdade, a pauta ideológica do
filme passa pela “revelação” de que os homens, “esses galinhas”, são, no fundo,
mais tradicionalistas e menos liberados que as mulheres. Tanto, aliás, que ao
final, fica sugerido que, afinal, Mário também é assim.
O que conduz ao grande mistério do filme. Ora, Mário é ocultado de nossos olhos.
Dele, temos acesso apenas à voz (interpretada com um tom clichê de tele-sexo,
talvez para justificar sua inevitabilidade na vida de Laura). Apresentado sem
apresentação, como um “homem sem rosto”, ele é construído como um homem-ícone,
mais como uma imagem do inalcançável. Mário seria um “sonho dourado”, uma entidade
quase abstrata. Assim como em Sex and the City não sabemos o nome do namorado
de Carrie (sempre, até o último episódio da série, chamado apenas de “Big”),
aqui não vemos o rosto de Mário. Mas igualmente, ao final, o filme, como o seriado,
revela seu “homem”. Assim como Big se torna John, passamos a ver o rosto do amante
de Laura. Ora, os resultados das duas operações produzem nós simbólicos. Ambos
ali simplesmente passam a ser pessoas de verdade, factíveis. Mas se o ocultamento
e a revelação de um nome produz apenas esse efeito, a revelação de uma imagem
acaba por colocar mais elementos. Ao final do filme descobrimos que o “homem
perfeito” é... Fernando Eiras. Sem que isso produza qualquer efeito de sentido. É como
se o filme quisesse dizer que esse homem perfeito é um homem fisicamente comum
(o efeito de descobrir que Mário é Eiras não seria o mesmo, claro, de descobrir
que ele é, digamos, Alexandre Borges). Por mais que Mário seja o quarentão de
blazer e bata, ele não será um galã indiscutível. Subsiste ali um conjunto de
afirmações fechadas, a impedir a complexidade que a trama poderia deixar ao final.
Mas talvez o mais determinante dos clichês do filme seja o da (mil perdões pela
expressão), mulher-“bem-comida” (e, ao lado dele, seu outro lado da moeda, a
mulher-“mal-comida”). É um argumento machista típico: se uma mulher é muito crítica,
reclama muito, enfim, é desagradável de alguma maneira, ela é “mal-comida”. Falta-lhe
homem. Por outro lado, se ela sorri, está com a pele bonita, não reclama da vida, é a
favor da liberdade das outras, é “bem-comida”. Toda dicotomia entre Laura e a
irmã, antes de ser moral, é dessa ordem da performance. No fundo, a irmã tem
inveja “do falo” (de que a outra dispõe). Moralismo (o mais plano do mundo) só pode
ser produto de incompetência para a imoralidade.
O que torna mais curiosa, entretanto, a maneira como filme opera esse argumento é uma
certa “estratégia de verossimilhança”. Ora, o que está diante dos olhos seria
uma coleta “documental”, um “espelho do mundo”. Mas o que na verdade ocorre é a
utilização de uma série de operações de coleta “opinião” em uma estética “realista”, “documentarista”,
que serve apenas para conferir, por contigüidade estética, impressão de verdade
aos clichês apresentados dramaturgicamente (com estética igualmente documental).
O que conduz para outra obra recente que fez a mesma operação, a novela Páginas
da Vida (2006), escrita por Manoel Carlos, e dirigida por Jayme Monjardim – ele
mesmo responsável por um dos momentos mais fortes de utilização de clichês sobre
a mulher na história do cinema brasileiro, em seu longa-metragem Olga (que
também analisei sob essa ótica aqui na Contracampo,
no qual a mulher politizada é “desumanizada pela política” e “re-humanizada pelo
desejo”. No folhetim televisivo, usou-se o recurso de coleta de depoimentos reais,
apresentados ao final de cada capítulo. Câmera no rosto de um transeunte, o programa
exibiu a cada noite (178 capítulos) uma diferente “experiência de vida”. E, sim,
as pessoas falavam lá sobre sexo, tudo bastante “comportado”, entretanto. Por
outro lado, em um determinado depoimento, uma senhora claramente de classe mais
baixa surge diante da câmera, no horário nobre, e começa a descrever a experiência
que teve na primeira vez em que, já idosa, masturbou-se. Provocou escândalo a
afirmação dela de que, após ouvir a música “O Côncavo e o Convexo”, de Roberto
Carlos, foi dormir e acordou “toda melada”. Aquele momento, singularmente tomado,
e colocado diante dos depoimentos padronizados de Mulheres Sexo Verdades Mentiras,
aponta claramente para o anacronismo do projeto de Marinho (e de Laura). Nada
em seus momentos de “revelação” é novo, nada tem força, nada acrescenta.
O que perpassa cada um desses momentos de, então, “revelação” de Mulheres
Sexo Verdades Mentiras é uma lógica de peça de igreja, de filme institucional,
filmado com um interesse de propaganda ideológica. De fato, ele se aproxima dos
mecanismos simbólicos simplistas de, por exemplo, um Sérgio Bianchi. O filme
de Marinho é tão iluminista quanto Cronicamente Inviável ou Quanto
Vale ou é por Quilo, do qual já falei, fazendo um mapeamento do estilo do
diretor, aqui mesmo em Contracampo.
Ou seja, toda a aposta da dramaturgia é em um certo “desvelamento da verdade”,
ocultada atrás de uma certa aura de “hipocrisia da sociedade” (supremo vilão
da moral essa tal “sociedade”). Mas, assim como em Bianchi, a aura de denúncia
de Marinho não se dá sem o banal e o simplista em termos estéticos e simbólicos:
representar uma moça negra no século 21 a andar na rua puxando uma carroça e
reapresentá-la com grilhões dos tempos da escravatura para mostrar que “o negro
ainda é escravo” (como faz Bianchi em Quanto Vale...), não chega a ser
muito diferente da simplificação produzida ao se colocar uma mãe liberada que
vive com a filha (Branca Messina, talvez a única tentativa de uma interpretação
não padronizada no filme, mas ainda assim escravizada pelo texto simplista),
também moderninha (e que andará de pernas de fora em muitas situações, como a
se constituir como o clichê da menina-moça, da menina-que-já-cresceu), e que
terá com ela uma relação de “boas amigas”, permitindo estabelecer-se uma lógica
de confissão.
Alexandre Werneck
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