Um
efeito narrativo bastante gritante (com duplo sentido,
por favor!) marca toda a exibição de Olga: o
filme é claramente dividido em dois tempos, que se intercalam
obsessivamente no interior das seqüências ao longo de
toda a projeção. O primeiro deles (embora esta não seja
sua ordem de entrada em cena) é o tempo das falas. O
outro é o tempo das ações, marcado pela música. Essa
composição (que não pode ser chamada de forma alguma
de uma oposição) é central para o filme. Pode parecer
um traço apenas dramático em um trabalho típico de Jayme
Monjardim, um diretor de TV que tem seguidas vezes optado
pela explosão emocional em detrimento de qualquer aventura
intelectiva. Mas desta vez o emocional dá forma à operação
semiológica delicada que marca todo o filme.
Primeiro, por motivos analíticos, o tempo das falas:
Encontramos Olga no filme ainda menina, em Munique,
em meio à neve, saltando uma fogueira, e ela dizendo,
em resposta aos avisos de seu pai, preocupado com que
ela possa se queimar: “Se eu cair, não vou chorar”.
Está sentenciado desde aí (e se confirmará) que dali
para frente o que se falar no filme será dito em tom
monumental, simbólico.
Pois é assim construída a dramaticidade do filme nos
diálogos. Os habitantes do mundo de Olga, inclusive
ela, falam todos uma língua estranha (universal, a julgar
pelo português que, assim como o inglês em vários filmes
americanos, é todos os idiomas), uma língua marcada
pela retumbância. A sintaxe exige que ao lado de uma
palavra importante, entre sempre uma outra tão importante
quanto. Todos falam frases grandiosas, significativas
e proverbiais. A impressão fica ainda mais forte se
as falas são ditas no tom em que são conduzidas pela
direção do elenco - e a escolha de Luis Mello para integrá-lo,
aliás, diz muito sobre essa opção. Todos se colocam
como se dissessem monólogos de Shakespeare, mesmo que
estejam dizendo um simples “Bom dia”.
De volta à frase-manifesto da menina, efeito dramático
típico, essa citação à infância de um personagem adulto,
claro, assume no filme um tom profético. A frase é uma
demarcação de posição: Olga não chora. E assim será.
É verdade, até o final do filme, ela chorará. Mas a
frase, dita no começo, é um estatuto: a regra básica
da personagem é seu ascetismo. Voltaremos a este tema.
Por enquanto, cabe apenas pensar em como ele apresenta,
ao mesmo tempo, o estatuto do roteiro. As falas, além
de retumbantes, têm que indicar caminhos no filme: sopra
sobre a menina, a moça, a mulher, um presságio. Um espectro
ronda o projeto de vida de Olga, e todos parecem já
saber disso. Os outros personagens, o tempo todo, ao
passarem por ela, dão-lhe avisos.
Agora, o tempo da música:
Este é o efeito mais (como disse antes, com duplo sentido)
gritante: nas cenas, quando não há falas, sobe a música.
E a gramática é a mesma: se as falas não permitem que
haja simplicidade, a trilha sonora, que se dedica às
ações, bane definitivamente do universo do filme a discrição.
Até os mais simples atos, como subir uma escada ou abrir
uma porta, ganham uma pontuação sonora (e, obviamente,
emocional) grandiloqüente, dramática, de extremos, marcada
pelas melodias new-age-sinfônico-pop de Marcus
Viana. Sentar-se é tão fantástico quanto executar uma
fuga espetacular, nadar é tão impactante quanto entrar
em um campo de prisioneiros.
O momento da exibição de A Internacional, claro,
ganha um tom especial na história. Apresentada ao final
de um discurso da ativista para uma platéia revolucionária
inflamada, o hino socialista se transforma na pontuação
do treinamento de Olga. Não poderia ser mais simbólico:
no treinamento, o socialismo se apodera da moça como
um espírito. Aliás, como em uma ironia weberiana em
um sistema que remete ao marxismo, ‘espírito’ (claro,
entre aspas) é do que se trata no filme.
Isso porque, como se vê (aqui e na tela) os dois tempos
(falas e música) são esteticamente distintos e demarcam
ritmos distintos ao filme, mas são, os dois, semiologicamente
similares. Sem serem opostos, ambos se prestam a construir
uma mesma oposição: entre causa e humanidade.
Olga não é uma biografia. É uma narração sobre um uma
construção espiritual. Mas em vez de ser, como Diários
de motocicleta, uma hagiografia, é ao filme de Walter
Salles um espelho, no sentido em que traz a mesma imagem,
mas invertida. É uma des-hagiografia, uma biografia
de santo ao contrário.
No filme de Salles, Ernesto se torna santo, deixa o
mundo, vira São Francisco de Assis no político Che.
No filme de Jayme Monjardim, Olga parte da santidade
é assexuada, fria, asceta, estóica, sem carne e se humaniza,
“vira mulher”. Essa oposição de imediato já coloca um
problema: o de construir o político fora do humano.
E com isso, o jogo de palavras vira um jogo de letras:
o inumano facilmente se converte em desumano. O que
a política faz a Olga é cruel, inadmissível. E é isso
que a política (como luta pela transformação do mundo)
faz ao homem: desumaniza-o, converte-o em uma entidade
desprovida de vida duplamente - no presente pelo ascetismo,
e, no futuro, pelo martírio.
A fala inicial da personagem adulta, que diante da janela
do campo de concentração proclama: “Amanhã” e reticências,
preenchidas pelo título do filme (que é também o nome
da personagem) não deixa dúvida: Olga não terá amanhã
agora que se humanizou totalmente. Mas com isso, também
não tem mais ontem. E o detalhe mais curioso é que ela
se humaniza nos trópicos, se humaniza no calor mítico
do Brasil. Mais um mito de uma teoria social clássica
que o filme reforça: o do Brasil como adoçador de caráter.
Pois a equação se torna bastante simples: “o Brasil
é o paraíso”, diz a moça. Mas é um paraíso no qual não
se pode mais ser santa. Ela tem que se aquecer, deixar-se
sucumbir à vida, a negação do político. Pois é, então,
também no Brasil que o político é impossível. Aqui,
o que se vive é o privado. Por isso, Olga precisa afirmar:
“Sou a esposa de Luis Carlos Prestes”. O amor tudo pode,
inclusive apagar seu passado, amputar-lhe a santidade.
Olga é construída por essa dicotomia, e por que não
dizer, por essa dialética. As inúmeras proclamações
dos personagens não deixam dúvida. A fala “Entre um
discurso e um salto de pára-quedas vai te sobrar pouco
tempo para ser mulher” é apenas a face mais canhestra
de uma repetida afirmação de um mesmo princípio: Olga
é seca demais, inumana demais. Claro, Olga faz
parte de uma mesma ordem de filmes brasileiros que despolitizam
personagens políticos, como mostra o texto de Eduardo
Valente nesta edição. Mas ele faz isso de uma maneira
muito particular: sua invenção do não-político é uma
construção profética. Nele, pulsa como em nenhum outro
filme recente a impossibilidade do político - e sobretudo
porque ele o constrói como mitologia, como fala fora
da história.
Do sistema estético montado pelo duo falas-música, só
se pode, então, concluir: não há lugar para o cotidiano
na vida. Afinal, trata-se da “Era das revoluções”. Pois
é assim, criando um tempo mítico, um passado épico em
que “o sonho era possível” (mas deixando claro que,
na verdade, possível ele nunca foi) é que fica decalcado
um espaço dramatúrgico cruel: Monjardim não dá nenhuma
chance a Olga. Ela parece estar sozinha no mundo desde
o primeiro segundo do filme. Nem Prestes é da mesma
raça que ela: ele é de carne e osso desde sempre; ele
se deixa trair pelos companheiros; ele ama de imediato.
Ele acredita na política como gestão do humano, não
na política como sina metafísica, como o olhar penetrante
de Olga mostra que ela crê (a interpretação de Camila
Morgado parece ter sido toda guiada para construir uma
mulher asceta e sublimada e seus olhos arregalados,
que quase nunca piscam, dão-lhe um tom exageradamente
extático).
O que conduz a um raciocínio sobre o uso que o filme
faz do sofrimento. A política moderna foi inaugurada
como uma economia de olhares. No momento em que se inaugurou
a noção de público, inaugurou-se também uma cisão entre
aqueles que sofrem e aqueles que vêem sofrer e que,
por culpa ou não, podem ou não reagir a este sofrimento.
O sociólogo francês Luc Boltanski lembra que um dos
elementos centrais dessa política é a maneira como se
exibem os sofrimentos: pode-se mostrar o sofrimento
apontando-se para suas causas e nesse sentido, a exibição
é uma denúncia; pode-se exibir esse sofrimento de maneira
sentimental, apontando mais para a tristeza de uma condição
humana do que para uma problemática política; mas também
se pode exibir o sofrimento como sublimação, como ato
de valoração do próprio humano e, nesse sentido, como
sina e como inevitável. E é esse o elemento central
em Olga: o
jogo de falas e músicas de Monjardim cria um tom de
sublimação para todo o sofrimento e toda luta. Este
é o grande papel da música onipresente.
Tudo isso transfere o projeto político para o plano
do fantasioso, do romântico. Ele é aquela entidade produzida
epicamente, na forma do romance, do romântico, do pior
sentido do termo utopia, aquilo que não se realiza senão
na fantasia. A realidade é diferente: é a traição dos
companheiros, é a deslealdade dos oponentes, é a desumanidade
dos inimigos. E é a inexorabilidade do capitalismo.
Claro, há o argumento de que aí o que conta é fato histórico:
o projeto comunista (o de Olga) não deu certo. Mas não
se trata de história, trata-se de semiologia. Olga constrói sua narrativa como se profecia
fosse, como se nos olhos (que não piscam) de Olga estivesse
impresso o final da história. Porque não há outro final
possível, porque não se trata daquela saga, mas de outra:
a do aproveitamento de uma personagem singular como
personagem genérica. A operação mais estranha do filme
de Monjardim (e que o aproxima mais da TV do que as
dimensões da filmagem) é a de tentar fazer Olga se encaixar
nesse clichê da mulher de pedra. Para fazê-lo, elemento
recorrente de teledramaturgia, ele converte a fórceps
os elementos que a cercam em conspiração contra a felicidade.
Olga só é feliz quando ama - como se o amor fosse incompatível
com a solidariedade. Mas Olga não é feliz apenas quando
se deixa ser mulher, mas quando passa a ser uma mulher
específica, a de um modelo celebrado como heroína habitual
da televisão. Assim, desaparecem nuances e desaparece
uma personagem e vem à tona apenas o que se quer fazer
com ela: oferecer doses cavalares (com trocadilho, de
novo) de emoção. Neste caso, às custas da própria personagem.
* * *
Corta para Moscou. Olga se dirige a um encontro com
um líder soviético, que lhe dará uma missão. Em breve,
veremos, ela será apresentada a Prestes. Antes disso,
entretanto, ela entra no prédio. É a União Soviética.
As filmagens, feitas no Rio, utilizaram as escadarias
do prédio do Ministério da Fazenda. Ao atravessá-las,
Olga passa por mal-disfarçado (pela cenografia) brasão
das armas nacionais (brasileiras).
Essa cena, que poderia servir como ponto de partida
para um debate sobre a imposição da idéia de um cinema
“de qualidade” no Brasil um debate a ser travado diante
de Olga, uma das mais mal-sucedidas tentativas
de afirmação desse “gênero” já feitas no país, não deixa
de ser simbólica: a União Soviética do filme é aqui.
O lugar em que o político está fadado a matar Olga é
aqui. O lugar em que o político está fadado a morrer,
parece, é aqui.
Alexandre Werneck
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