Após o choque estético que
foi para nós a descoberta de A Ferida, em 2004,
ansiávamos pelo filme seguinte de Nicolas Klotz. A
Questão Humana, exibido na Mostra de São Paulo,
confirma a preocupação com um apuro formal, a impressiva
postura política e a sensibilidade incomum deste cineasta,
que está sem dúvida entre os grandes realizadores contemporâneos – em
todas as implicações que o adjetivo traz. Acompanhado
de sua roteirista e parceira Elizabeth Perceval, Klotz
esteve em São Paulo para promover o filme – que acabou
ganhando três sessões extras. Para Ruy, que já havia
tido a oportunidade de entrevistá-lo em 2004
(leia a entrevista aqui),
foi um agradável reencontro, para mim,
um surpreendente encontro. O que começou
como uma entrevista mais tradicional, calcada em aspectos
dos filmes, caminhou para uma discussão ampla sobre
o mundo que habitamos e terminou como uma autêntica
conversa. Ao final, a sensação era de ter experimentado
intensos momentos de cinema, ainda que apenas através
de palavras. (TM)
***
Tatiana Monassa: Para começar, eu gostaria de falar
um pouco da recepção das imagens em seus filmes. Pra
mim, A Ferida é um filme diante do qual as escolhas
de enquadramento nos obrigam a uma espécie de re-aprendizado
do olhar, para tentar apreender o que acontece com
os personagens. Por outro lado, em A Questão Humana,
não se trata deste tipo de olhar, mas de um olhar mais
abstrato, que diz respeito à compreensão dos elos secretos
entre as coisas além das aparências. Me chama particularmente
a atenção o trabalho de montagem no início do filme.
Poderíamos dizer que cada cena sugere um falso sentido
para a cena seguinte, até o momento no qual este sentido é desfeito
e um outro toma seu lugar.
Elizabeth Perceval: Não um sentido falso, mas complexo.
TM: Sim, mas, por exemplo: quando a secretária diz a Simon: “você conhece o café tal?”,
vemos Simon num café, mas não para este encontro, para outro encontro. Ou quando
Karl Rose fala a Simon sobre a investigação que ele deve levar a cabo e, ao falar
de Jüst, diz: “não ouso falar de doença”, e acabamos de ver uma festa na qual
homens se beijam. Pensei então na homossexualidade como uma “doença”, porque
ainda não vimos Jüst, então não sabemos como ele é. E logo em seguida, vemos
que, enfim, não é nada disso, é outra coisa.
Nicolas Klotz: Não se deve sempre buscar o sentido...
TM: Mas pra mim trata-se também de uma forma de re-aprendizado do olhar;
não
sabemos
exatamente
onde estamos, então deve-se pensar em tudo, mas talvez nada disso seja verdade.
EP: Vou falar sobre o que você disse antes sobre A Ferida, que, efetivamente, é um
aprendizado de nossa própria subjetividade face ao estrangeiro. Tentar captar,
perceber qual é a relação destas pessoas com o tempo, pessoas que solicitam sua
assimilação por uma outra sociedade e que devem esperar. E este tempo de espera é um
tempo fora-do-tempo e que as mergulha na depressão, numa forma de desumanização
deles mesmos, porque eles não fazem parte do ritmo dos outros. Eles estão de
fora. Fora do tempo e fora dos direitos dos outros. Então, somos confrontados
com um olhar sobre o outro. O africano, que, através da linguagem política atual
na França, está estigmatizado como uma pessoa perigosa, alguém que vai nos invadir.
E, mais além, não é nem mesmo uma pessoa, é um fenômeno. E nós tentamos construir
com este olhar um olhar de espectador sobre um outro homem. Isto para falar de A
Ferida. A construção em A Questão Humana é uma construção mais abstrata,
feita de mais elipses. Trabalhamos com a elipse, que é constantemente atravessada
por temporalidades diferentes. Quando você fala, por exemplo, de homossexuais
que se beijam na boate no início, pra nós não é tanto a homossexualidade que
estava no âmago disto, mas mais essa matilha de jovens executivos apaixonados
pelo liberalismo e que se amam e, ao mesmo tempo, se detestam... Que, ao mesmo
tempo, na dureza do trabalho, na eficácia do seu trabalho, podem... É sempre
o melhor que ganha a vaga. E eles festejam juntos a vitória. E ao mesmo tempo
em que eles estão competindo, eles estão em estado amoroso juntos. Talvez isso
possa sugerir uma referência à história, quando, efetivamente, nos programas
de extermínio nos anos que precederam o Holocausto, que precederam Auschwitz,
houve programas de extermínio de pessoas deficientes, de pessoas doentes mentais.
Está claro que eles já tinham estabelecido programas de seleção dos humanos.
E já havia também efetivamente a seleção de pessoas que não são como as outras,
os homossexuais. Mas, nesta cena, isto não estava na nossa cabeça. É muito mais
jovens amantes do liberalismo e, assim sendo, a percepção do seu estado apaixonado.
NK: A Ferida é construído por cenas filmadas em um plano fixo e há muito
pouco campo-contracampo. É sempre um, e muitos diálogos. Uma pessoa fala, alguém
a escuta. Monólogo e plano fixo. A Questão Humana é mais campo-contracampo;
uma pessoa fala, uma pessoa a escuta, mas trabalhamos com esta idéia do campo
e do contracampo. Então, às vezes também, uma seqüência é o campo e a seqüência
em seguida é o contracampo da que acabamos de ver. Por isso, ela diz efetivamente “no
café”, e o contracampo é Louisa. E é um outro café. Porque o Café Beaubourg em
Paris é um café muito caro, associado a pessoas ricas. Do lado do Museu Beaubourg,
um café muito chique..., enquanto o café no qual vemos Simon é um café num bairro
mais de imigrantes, mais pobre, que é o lugar no qual ele se encontra com Louisa,
sua namorada. Onde há também a música Flamenca mais tarde, é o mesmo lugar. O
contracampo entre o mundo rico e o mundo dos imigrantes. Campo-contracampo. Mas
eu não acho que seja questão de... Eu acho que o filme é uma experiência química, é como
se você pegasse o hoje, colocasse algo dentro e visse o que acontece.
Como se você filmasse tudo o que isso provoca como deformação da percepção. E é uma
experiência assim também para o espectador, um pouco alucinógena, na qual as
coisas parecem ser atuais, mas de repente pensamos “mas não é hoje, está assombrado
por fantasmas”. Há um universo um pouco fantástico o tempo todo no filme, que
faz com que a gente não esteja completamente no... É um pouco como em O Castelo de
Kafka, no qual há sempre uma taverna; tem muitos cafés. São meio que lugares
populares, nos quais as pessoas podem cantar...
EP: Há também a linguagem da empresa, que é uma linguagem racional, uma linguagem
abstrata, técnica, eficaz, e há a linguagem nos cafés. Então, há também o lugar,
a forma com a qual se deslocam os executivos, como num balé: eles vão ao banheiro,
eles comem. Todas as hierarquias são extremamente codificadas, conhecidas, organizadas,
do lado da empresa. E temos o corpo. Assim que vemos o corpo de Simon quando
ele espera lá no café, a gravata está desfeita, ele está atirado; de repente,
seu corpo respira e existe de outra maneira. Então aí já sentimos que a vida é diferente
nele. E é ele que está lá antes. A menina que ele ama chega depois. O encontro
que ele tem com a secretária, é o inverso. É ela que espera e é ele, portanto
aquele que vai chegar e fazer sua investigação, que chega depois. Ele chega de
terno, todo... Então, vemos que, se de cara, desde o início, ele está lá com
a cerveja e com a gravata desfeita, ele não pode estar esperando a secretária.
Sabemos que é outra coisa que vai acontecer, porque o corpo já conta outra coisa.
NK: Procuramos um nome pra trilogia Pária, A Ferida e A Questão
Humana e dizemos: “é a trilogia dos tempos modernos”. Poderia ser uma homenagem
a Chaplin. Porque no Tempos Modernos de Chaplin, já vemos a sociedade
industrial que está se construindo, através da mecanização, as relações de poder,
e pouco a pouco... No fim vemos Chaplin e Paulette Godard, que partem na estrada,
como se eles estivessem em Noite e Neblina, de Alain Resnais.
TM: Eu ia justamente falar de Noite e Neblina... A questão
da relação
entre o íntimo e o histórico no filme me fez pensar também emHiroshima,
Mon
Amour. Quando Lynn Sanderson fala a Simon sobre a memória de Jüst e mesmo
quando Simon profere seu monólogo ao final. Deve-se lutar contra o esquecimento
e aprender a ver bem as coisas, enfim, as provas.
NK: As pistas...
TM: As pistas, as provas. Porque temos também os documentos... Mas como estes
acontecimentos fazem parte do passado, então nós só podemos ter acesso a eles
através da palavra, sobretudo por uma fala que não seja técnica, porque a fala
técnica conduz ao horror.
EP: Você falava do esquecimento. Eu acho que é algo além disso. Eu acho que o
Holocausto, por exemplo, não deve ser reservado à lembrança, mesmo por meio da
comemoração. É uma forma de congelar um acontecimento histórico, de ter a consciência
tranqüila, através da comemoração e desta forma de desconectar o acontecimento.
O mais importante é que este é um dos rostos do Ocidente e deve-se olhar este
rosto na modernidade do Ocidente que o forjou. Quer dizer, não se deve desconectar
este acontecimento histórico da história que o provocou e esta história é a civilização
ocidental moderna. Portanto, há estes efeitos de radiação, e mesmo se nós comemoramos
colocando um sarcófago, como sobre Chernobil, eles vão continuar radiando, irradiando.
Devemos, ao contrário, buscar a forma como essas coisas remexem nossas subjetividades,
como interrogam nossas subjetividades, no presente daquilo que elas encontram
na vida. Por exemplo, critica-se atualmente na França alguns jornalistas, ou
algumas associações, ou algumas pessoas, por um acontecimento que está em A
Questão Humana, no qual realiza-se uma batida num bistrô. Num determinado
momento, um grupo de policiais entra num local público e recolhe, com base na
compleição, umas vinte pessoas e as coloca contra o muro da rua, as revista e
as algema. Essas pessoas não fizeram nada, essas pessoas não são criminosos,
não são procuradas e, no entanto, a ação policial sobre elas guarda o mesmo princípio
policial de quando se detinham pessoas judias. Chama-se batida e, no entanto,
sabemos muito bem que não são judeus, vemos que são africanos. Então, é preciso
que o presente, que a relação com a história acorde nossas subjetividades. Atualmente é algo
muito importante. Não é algo reservado à lembrança.
NK: Quando você diz que só podemos ter acesso ao horror pela palavra, você tem
razão. É o trabalho de Lanzmann, com o filme Shoah, mas é um trabalho
que se deu na década de 80. 70 e 80. E desde então, o mundo continua a filmar...
E o desejo também em A Questão Humana era propor uma forma de representação
do Holocausto hoje, através da ficção, sem passar pela reconstituição do passado,
mas [investigar] que efeitos subjetivos isso produz na percepção do mundo, nas
relações entre as pessoas e no poder, no exercício do poder. Isso contamina o
capitalismo, pra nós é evidente, então procuramos encontrar as formas que representem
essa contaminação do capitalismo por... Porque o Holocausto foi inventado pelo
mundo industrial, ele é um produto do mundo industrial e abriu a porta a diversas
coisas. Ele já havia se inspirado da colonização, do que os portugueses, os ingleses,
os franceses, os espanhóis fizeram em outros lugares. E os nazistas agruparam
e fizeram ainda mais. Então, isso abriu a porta a novas formas de dominação,
de extermínio e de racionalização. E como se consegue filmar isso hoje, os efeitos
disto hoje? Passa bastante pelo corpo...
TM: Sim, eu também ia falar de corpo... Eu sinto que há uma espécie de contaminação
entre os assuntos ao longo do filme. O interesse da trama muda diversas vezes.
A lógica torna-se sentimental e o íntimo torna-se histórico. E pra mim o corpo
de Simon exprime também esta trajetória, porque ele vai do controle físico extremo
no início do filme ao transbordamento de emoções quando ele está na rave.
Pra mim há essa trajetória do corpo de Mathieu Amalric. Eu gostaria também que
você falasse um pouco do trabalho de corpo dele.
NK: Eu penso no corpo como aquilo que é visível. Elizabeth talvez fale de forma
diferente, porque ela escreve. No início, ela escreve, mesmo se depois nós trabalhamos
bastante juntos em cima de tudo. Mas quando se trata de filmar uma cena, a primeira
coisa é o corpo. E, portanto, deve-se escolher as pessoas que vão estar ali,
como elas vão ser e tentar filmar... tentar tocar o invisível através, a partir
daquilo que se vê. No caso de Simon: cada plano que fazemos é sempre longo e
sempre tem um trajeto. Cada plano tem um tempo e um trajeto. Do momento em que
começamos até o momento em que paramos. Portanto, Simon, Mathieu Amalric, está o
tempo todo com esta idéia em mente. E como ele está em praticamente todas as
cenas... Seu corpo começa e depois evolui. Então, pode ser: “no início você está sentado
ali, depois o importante é que você coloca seu cigarro sobre a mesa e depois
você vai se sentar lá e isso vai durar... três minutos”. E talvez tenha uma fala
a ser dita pra alguém, ou ele escuta alguém. Mas todo o seu trabalho é conseguir
fazer isso. Então, necessariamente, seu corpo está tomado por um movimento com
um objetivo próprio e ele faz o trajeto a cada vez, em cada plano. Mesmo quando
ele está imóvel e escuta alguém, há sempre uma duração, um trajeto, no qual ele
pode agir desta forma. E como ele mesmo estava contaminado cada vez mais pelo
filme, naturalmente isso aconteceu. Porque não se falam essas coisas [normalmente],
não falávamos estas coisas todas quando filmávamos com Mathieu. Simplesmente
há algo que acontece durante as tomadas, graças a esta forma de filmar tempos
alongados, que pouco a pouco contamina... Então, eu não posso explicar... No
fim, dissemos: “você tem um sobretudo, você tem um saco plástico”. No início
ele porta terno, gravata. E, no fim, nada de gravata, um sobretudo. “Mas um sobretudo
no qual você mora. Talvez você durma dentro dele. Talvez seu casaco seja sua
nova casa. É o único lugar no qual você fica tranqüilo, você pode até dormir
na rua, você pode dormir a qualquer momento no seu casaco. E você tem um saco
plástico, no qual há escova de dentes, pasta de dente, meias, talvez uma cueca,
e, pronto, você termina com isso.”
EP: De fato, pra mim, a trajetória do personagem de Simon foi... Eu penso mais
em Foucault, quando ele diz: “a experiência política é uma experiência que não
atravessa apenas o meu pensamento, mas que atravessa igualmente minha sensibilidade,
minha intimidade, minha percepção do mundo”. Então, eu quis efetivamente que
o personagem de Simon atravessasse esta experiência através do seu corpo, através
de suas relações amorosas, através de sua sensibilidade, e que não fosse apenas
através de uma reflexão. É isto que está no livro de François Emmanuel, um personagem
que pensa apenas. Não há nada sobre suas amizades, não há nada sobre seus colegas,
não há nada sobre outros lugares na cidade. Eu queria então que fosse um personagem
ancorado na modernidade, alguém em quem outros executivos pudessem se reconhecer,
que eles se identificassem com ele e que tudo isso atravessasse igualmente seu
corpo, como quando ele deita na ruela, aterrado pelo que acabou de ler, e, ao
mesmo tempo, evoca a imagem das pessoas no caminhão, deitadas perto da porta.
Alguma coisa o atravessa e que seja perceptível que esta experiência atravessa
todos os seus sentidos: seu corpo, sua sensibilidade e sua intimidade. Não é algo
unicamente mental, isso não serviria de nada. É por isso que há também o campo
e o contracampo entre o mundo do dia, no qual ele é o soldado obediente, assim
como aquele que dá ordens, e o da noite, no qual ele transborda, ele explode,
porque há algo [da dimensão] do humano que pede pra se expressar. Portanto, é como
uma dança na qual ele exorciza toda esta parte dele e vemos esse corpo que se
descontrola. Se descontrolar é sair do controle, das amarras, e como ele não
sabe muito bem, como ele não é muito hábil nisso, torna-se um caos, até o esgotamento,
porque é o único meio que ele conhece para encontrar esta parte de humano e de
transpiração nele.
TM: Jüst fala da música como uma espécie de vírus. Pra mim, a música opera como
uma espécie de vírus no interior do filme. Não é apenas questão de uma paixão
dos personagens, mas de uma força sonora que se manifesta em diversas formas
e que nos arrasta pra fora do universo frio, sombrio e perfeitamente lógico da
empresa.
NK: Este é um dos aspectos políticos do filme. Há a língua neutra da empresa,
morta, técnica, que reduz as relações humanas a ela, e o contracampo disto, que
são todas as cenas de canto. Você falou da música, mas é também o canto, onde
a voz é cantada. Então, há de um lado a utilização da voz na empresa, que é uma
voz muito neutra e técnica, que reduz as relações entres os homens apenas às
necessidades da empresa e, fora dela, através do canto flamenco, do fado, ou
da rave, ou mesmo de Schubert. A voz humana ganha completamente outra
dimensão, ela se liberta de tudo, ela resiste, ela é inventiva, ela fala de utopia,
ela fala de desejo, ela fala dos corpos, ela fala da revolta também. Então, o
lugar de resistência do filme passa muito pelo que fazemos com a palavra, com
a voz humana. Porque o nazismo foi igualmente um assassinato da língua alemã.
O nazismo destruiu a língua alemã, transformou essa língua que é muito vasta
numa língua de morte, uma língua de ordem técnica, da qual o humano é exterminado,
evacuado logo em seguida.
EP: E sabemos que o nazismo, ao mesmo tempo em que destruiu a língua alemã, queimou
muitos livros de poesia, justamente onde a linguagem é uma linguagem dos sentimentos,
da inteligência, do imaginário e da revolta. Então ele queima os livros, ele
destrói a língua: são as primeiras ações do totalitarismo. Tentar criar uma língua
das ordens e não mais uma língua que utilize todos os espectros do humano. É reduzir,
reduzir até desumanizar e, no fim das contas, torna-se quase banal de falar com
uma língua desumanizada. E o canto, como disse Nicolas, vem como um lugar de
resistência, no qual a poesia e o amor dos homens é vivido e entendido em conjunto
também. É uma reunião, uma comunidade de pessoas que escuta um canto e o partilha.
O canto flamenco no filme é um canto muito antigo, um canto que se canta sem
acompanhamento musical, e é um canto dos operários, dos ferreiros, que eles acompanhavam
com os martelos nas usinas. E como é um canto de resistência, fala da dor, mas
também fala da esperança. E há o homem velho que canta o fado em seguida, que
fala de sentimentos amorosos, de utopia. Então, é importante que a música contamine
evidentemente os corpos e contamine o desejo da utopia de um viver em conjunto.
E a rave também é um canto, é um texto de Sêneca, de Hércules Furioso,
que eu dei ao compositor, para inspirá-lo, e inspirou bastante. Fala de lutas
de poder sanguinárias e bárbaras dos reis, de famílias entre elas, quatro séculos
antes de Cristo. Portanto, neste momento também há uma porosidade com a história
e o que é importante é que todos estes jovens executivos escutam [essa música],
que fala de poderes anteriores, de massacres pelo poder... Eles dançam sobre
as ruínas da classe trabalhadora, o que também é muito importante. Porque o lugar
onde eles dançam é uma antiga fábrica que agora foi desativada. Não há mais trabalhadores,
há desempregados. Eles dançam sobre essas ruínas. É isto tudo são, como se diz...?
NK: Camadas.
EP: Camadas, em cenas que provocam a percepção que você tem, que é como se as
coisas se contaminassem. E há uma outra coisa que pode contaminar, é essa história
do quarteto. A figura do quarteto, ou mesmo a da orquestra, nos campos de concentração,
onde os soldados da SS obrigavam aqueles que sabiam tocar música a tocar para
aqueles que partiam para as câmeras de gás ou para o trabalho. Então, há esta
orquestra terrível, na qual a música era... Aliás, alguém do público nos disse: “a
música foi uma das únicas formas de arte das quais o nazismo, o totalitarismo,
se apoderou para fazer uso”. Nós sabemos o quanto Hitler amava a música clássica,
etc... Então, há também esta história do quarteto que atravessou os campos.
RG: O que me impressiona bastante em A Ferida e em A Questão
Humana – acredito
que haja uma grande consonância entre os dois filmes – é que há espaços institucionais
e personagens colocados em seu interior e, à primeira vista, vemos clichês. Como
eles habitam lugares institucionais, eles são clichês, eles não têm subjetividade.
E o trabalho do filme é um trabalho de libertação, de tomada de consciência pelo
personagem neste lugar institucional, descobre-se que se pode pertencer a si
mesmo. Deixamos de ser estrangeiros, descobrimos como habitar o espaço. Em A
Ferida, os personagens não sabem, eles têm medo de olhar à frente, eles ficam
com o rosto virado pro chão e, em A Questão Humana, é do lado da racionalização,
do utilitarismo. Então, vemos no início Mathieu Amalric como um profissional,
como aquele que deve trabalhar em alguma medida. E descobrimos que não é tão
simples, que há sempre uma camada de complexidade na convivência com as pessoas,
na aprendizagem do passado, da história. Eu gostaria de falar um pouco disso,
da preferência por espaços institucionais, a polícia e o squat em A
Ferida e o espaço corporativo em A Questão Humana. Porque
não é apenas
filmar
certos
espaços
institucionais, você os filma como institucionais. Há uma correspondência
necessária do comportamento humano neste espaço. Mas eu acredito também que o
trabalho de mise-en-scène e de escrita de vocês dois é desfazer esta
ligação
obrigatória de um sujeito com um espaço.
NK: Em A Questão Humana, é verdade que a arquitetura é muito importante.
Nós fomos muito inspirados pelo filme de Fritz Lang, Dr. Mabuse, em como
ele trabalha o espaço [nesse filme], como essa arquitetura dos lugares gera efeitos
nas pessoas e em seguida em nós. Tentamos contaminar os lugares pelo próprio
filme, pra desconstruir isso. É verdade, bem apontado. Porque os lugares agem
sobre os corpos e sobre as relações humanas e é preciso que qualquer coisa do
corpo transgrida esses lugares.
EP: Tem uma coisa que você está esquecendo, de duas maneiras. Por exemplo, em A
Ferida, quando o agente do Ministério das Relações Exteriores passa na eclusa
onde está Blandine, que está machucada, ele passa perto dela para lhe falar e
ele sai de sua função. Ele faz um gesto que não faz parte de sua função, mas
o que você não diz é justamente que este gesto é impossível nessa instituição.
Ele vai ser despachado. E com Simon é a mesma coisa. A partir do momento em que
Simon está sentado no seu escritório e deixa o telefone tocar, fica refletindo
sobre o que está acontecendo... Ele sabe que nesta instituição há delação, por
exemplo. Há fichas, ele aprende que existe delação. Ele sabe que está conduzindo
uma investigação que não faz verdadeiramente parte de suas funções
e
que
deve
entregar
o resultado desta investigação a um patrão. Antes de mais nada, isto vai lhe
garantir uma promoção e vai eliminar o outro. Ele toma consciência de tudo isso
e a máquina trava, a máquina não funciona mais da forma que o lugar, a empresa,
gostaria que ela funcionasse. É a mesma coisa. Ele vai ser colocado na porta
da rua. Quer dizer, não há utopia possível no interior deste sistema. No interior
deste sistema, se você não cumpre o papel que lhe é atribuído, se você não responde à demanda
da autoridade e se você não está submetido a esta autoridade, você será ejetado.
Então, você não pode pertencer a si mesmo, como você diz. Quer dizer, você não
pode recuperar seu livre-arbítrio. Você não pode recuperar sua consciência, você fica
descerebrado, você tem uma função que deve executar. A partir do momento
em que sai desta função, você é ejetado do sistema. E nos dois casos, o que os
dois filmes dizem é isso também.
NK: Eu gosto bastante desta observação sobre os lugares, porque freqüentemente
nos filmes, os cenários são muito realistas. Eles são muito próximos do que vemos
na vida.
RG: Naturalistas...
NK: Sim. Quer dizer, nós não percebemos o que os atravessa. Enquanto que os lugares
dos quais falamos em A Questão Humana e em A Ferida são uma idéia
de lugar, a cada momento. É uma idéia de squat, é uma idéia de companhia, é uma
idéia de escritório, não é um escritório realista no sentido... Porque pra ser
completamente realista hoje, deveríamos contemplar a tecnologia e a tecnologia
nós vemos o tempo todo. Então banaliza, ou melhor, fascina. O que queremos é apenas
dar alguns elementos necessários para filmar esta contaminação, a um só tempo
dos corpos pelo espaço, dos espaços pela história e pela metamorfose dos personagens.
Mas isso é algo que vem, eu acho, do cinema mudo. O cinema mudo era muito forte
pra isso, porque ele dava uma idéia de cada vez. Ele não tentava ser realista,
dava apenas uma idéia. Uma idéia de um barco na água no Aurora de Murnau,
uma idéia de hospital psiquiátrico para O Testamento do Dr. Mabuse. Uma
idéia. Sempre. Permanecer única e exclusivamente na idéia.
RG: Há no título A Questão Humana uma grande palavra: humano.
Conhecemos
o humanismo, é uma das grandes palavras, uma palavra que atravessou o século
XX. E há no mundo do cinema um filme com um título muito próximo do seu, é O
Fator Humano, de Otto Preminger. Eu não sei se você viu. É também sobre um
homem que deve fazer um trabalho, mas ocorre um choque com questões de subjetividade.
Então, de certa forma, há consonâncias que podemos explorar também, se você o
tiver assistido.
NK: Não...
RG: Mas eu gostaria de falar da questão da palavra humano/humanismo. O que ela
significa pra vocês. Em que sentido esta palavra tem um fator político.
NK: Eu acho que hoje o humano tornou-se um arquivo. Os sentimentos também são
arquivos. Os sentimentos humanos, da forma como os conhecíamos não são nada além
de arquivos, assim como alguns gestos. Na França hoje, por exemplo, não se pode
mais fumar nos cafés. Não se tem mais o direito de fumar, deve-se ir para o lado
de fora. Então, algo como o gesto de fumar num café tornou-se um arquivo, uma
coisa que existia e que... Um documento. Mas os sentimentos também não são eternos.
Então, a questão do humano se coloca hoje de forma muito forte. Simon, quando
lê o parecer técnico, ele se dá conta que ele poderia ter escrito aquilo. Ele
foi formado para escrever daquela forma e, de repente, sentir daquele jeito.
Ele então se dá conta neste momento que a forma como ele fala, a forma como ele
trabalha, agiu de tal maneira sobre seus sentimentos que seus sentimentos tornaram-se
muito técnicos e ele não tem do que se queixar. Ele não tem do que se queixar,
do que quer que seja, porque os sentimentos que ele tem são puramente funcionais
para o bem da empresa. Ele tem coisas a fazer e os seus sentimentos não são nada
além disso. Em algum lugar hoje, o humano encontra-se verdadeiramente confrontado
com sua própria inumanidade. Conheço um filósofo chamado Bernard Stigler que
não quer mais falar de ser humano, mas de ser não-inumano. O ser humano pra ele é tão
raro que ele prefere dizer ser não-inumano, o que é também uma forma de mostrar
que para ser humano hoje é preciso resistir contra a inumanidade, impor... É aí que
eu acho que há alguma metamorfose muito importante hoje. Não é bem ou mal, não é dizer: “é ruim
ser inumano, é bom ser humano”, é dizer que o humano não é eterno e os sentimentos
humanos estão o tempo todo se transformando em outras coisas, estão sempre submetidos à transformação.
Num mundo cada vez mais técnico, estes sentimentos tornam-se mais e mais técnicos.
Então o aspecto documental... Eu gosto de pensar que filmar sentimentos hoje é em
alguma medida a mesma responsabilidade que fazer um documentário sobre os sentimentos.
São arquivos, são coisas que estão aí na sua frente e que você pode filmar, mas é preciso
saber como filmá-las, para que estes arquivos falem. É que está a dimensão política
de como filmar os sentimentos humanos, ou os gestos, que também não são eternos,
que desaparecem muito pela televisão. Os gestos do trabalho, por exemplo, são
gestos que vemos cada vez menos no cinema. Porque não se filma mais o trabalho,
se encena. Pasolini falava muito do desaparecimento dos gestos. Quando ele diz
em 70 que as pessoas que ele tinha filmado em Accatone não existiam mais
dez anos depois e que seus gestos tinham se tornado pequeno-burgueses em relação
aos gestos proletários, populares, que existiam dez anos antes. Tudo isso, eu
acho, procede do documentário. Então, como procede do documentário, mesmo que
se trate de ficção, deve-se sempre se perguntar como filmar, como fazer acontecer,
como se posicionar em relação a isso. E como não pedir aos atores pra interpretar
essas coisas, mas tentar trabalhar com eles para que nasça deles mesmos, que
se torne.... que sejam seus gestos. É Mathieu Amalric que é assim, é Lonsdale
que é assim, não é “eu interpreto outra pessoa”, é algo que deve simplesmente
nascer.
RG: A partir desta palavra, humano, eu queria voltar à questão do
nazismo, da vida corporativa e, portanto, do capitalismo. Lembrei-me rapidamente
de Hannah
Arendt, de Eichmann em Jerusalém. O que ela faz ali é como o final
de Noite
e
Neblina,
de Alain Resnais. Não se trata de preferir considerar aquilo, o extermínio nazista,
como algo que aconteceu num determinado momento de uma certa história, mas saber
que há sempre uma lógica. Ela pode não ser tão grave quanto ela chegou a ser
no passado, mas há mesmo assim uma lógica funcionando. E quando o filme fala
do sucesso de Simon em reduzir 2500 empregados a 1200, é como se fosse um mérito,
mas são números, para serem ostentados. Mas quando se ostenta isso, se esquece
que estes 1300 eram pessoas, tinham seu trabalho, sua família... Então, isto
responde sempre à mesma lógica de racionalização, de utilitarismo, este saber
técnico que obedece a uma função de dominação, de sujeição das pessoas.
TM: É por isso que é preciso dar nomes às pessoas ao final...
EP: É verdade que a racionalidade capitalista, a partir do momento em que ela
não está mais ao serviço de um progresso social... A máquina se acelera e, levada
ao extremo, essa racionalidade conduz a um sistema irracional, violento, muito
duro, que provoca catástrofes, desigualdades sociais monstruosas, que vemos hoje
em muitos países, assim como um empobrecimento crescente do planeta. E, no entanto,
há vitória de um outro lado dessa guerra econômica. Portanto, a guerra econômica,
que é conduzida pelos países capitalistas, funciona com a mesma racionalidade,
a mesma contagem, a mesma divisão de tarefas, a mesma irresponsabilidade dividida
em diversas operações. Porque uma pessoa que trabalha num escritório, da mesma
forma que no momento do nazismo, ela... O nazismo teve necessidade, para se instalar,
de um longo processo burocrático, quer dizer que havia milhares de executores
desta ideologia em diferentes postos e esta segmentação das tarefas é uma reprodução
do sistema capitalista e industrial. Quer dizer, são milhares de executores deste
sistema, que não são criminosos em si, em relação à tarefa que têm de executar,
mas, no fim das contas, seja para destruir uma floresta, seja para destruir uma
parte de uma cidade da qual todas as pessoas serão expulsas e levadas pra outro
lugar, ou mesmo para fazer parar de funcionar uma fábrica que não rende benefícios
suficientes... A partir do momento no qual a finalidade não é mais humana, não é mais
o humano, há o perigo de um totalitarismo bárbaro. E é onde estamos. Há hoje
para muitas pessoas a possibilidade de serem excluídas do mundo. O pobre, o clandestino,
tornaram-se indivíduos supérfluos. Logo, uma parte de nossa humanidade tornou-se
supérflua; o que fazemos com isso? O que estamos fazendo hoje com isso? Esta
massa de pessoas supérfluas, supérfluas ao sistema capitalista, supérfluas porque
elas não importam, elas não produzem, porque são inúteis à máquina, são até um
freio, são inclusive uma visibilidade que incomoda. Será que deve-se viver isso
como uma catástrofe natural, como a peste, por exemplo, ou os ratos, ou será que
deve-se viver como um crime contra a humanidade? A questão toda está aí. Pra
mim, a questão toda está aí. Nossa responsabilidade em relação a isso é: é um
crime contra a humanidade, ou “está tudo bem, é uma catástrofe que diz respeito
a ele; ele dorme na rua, ele não tem trabalho, ele não tem nada, mas isso não
me diz respeito, eu não tenho a mesma doença que ele, eu não fui atingido, não é culpa
minha”. É até onde nossos gestos, seja nossa forma de falar, nossos gestos no
nosso trabalho, até onde participamos desta exclusão do outro. Não sei se fui
clara...
NK: Eu acho que os acionistas, os ideólogos, as pessoas que dominam o mundo hoje
são muito inteligentes e têm muitos conselheiros, que conhecem a história. Não
apenas o dinheiro, mas também a história. Vemos como na França, Sarkozy tenta
sempre se fazer uso da História a favor de seus interesses políticos, que estão
a serviço dos interesses financeiros das famílias mais ricas do mundo. Eu acho
que são grandes profissionais e que quando eles analisam o nazismo, dizem: “também
são grandes profissionais; eles inventaram algo. Agora tudo bem, aconteceu. É preciso
tomar cuidado, porque não se pode deixar que dê na vista”, mas eles também produzem
assassinatos pouco a pouco. Um + um + um + um + um..., que vai dar bem mais que...
EP: Não esquece de dizer o que aconteceu no 60º Aniversário...
NK: Por exemplo, no 60º Aniversário da Liberação de Auschwitz, víamos Auschwitz, Dick Cheney,
Tony Blair, Berlusconi, Putin e como eles falavam de Auschwitz. Faziam discursos
sobre Auschwitz para comemorar que foi uma tragédia, que “nunca mais isso”, que
isso não pode recomeçar...
EP: É por isso que não se pode apenas lembrar.
NK: São essas pessoas que, ao mesmo tempo, tinham acabado de inventar Guantánamo.
Os mesmos que tinham construído Guantánamo e Abu-Ghraib falavam de Auschwitz
como sendo a pior coisa do mundo e “nunca mais isso”. Na rádio na França, escutávamos
muitos comentadores políticos dizerem: “Auschwitz não é Guantánamo”. Normal,
mas o fato de dizer isso cinco, dez vezes por dia, repetir isso o tempo todo, é bizarro. É uma
forma de dizer, no fundo, que Guantánamo não é tão grave. “Guantánamo não é grave,
protege contra Auschwitz, os futuros Auschwitz”, enquanto que eles estavam justamente
legitimando a nova ordem liberal mundial, ao dizer que era o negativo de Auschwitz.
Auschwitz não deve acontecer e Auschwitz foi um horror tal, que isto que eles
fazem só pode ser bom, mesmo que não seja completamente bom...
EP: Mesmo se eles fazem guerra na Chechênia, mesmo se há carniceiros na Chechênia,
mesmo se há detenções sanguinárias, se há crimes contra a humanidade, não é nada,
porque houve Auschwitz, que foi muito pior. "Então, eu legitimo meus crimes,
eu,
Sr. Putin, porque estou aqui, comovido, comemorando o 60º Aniversário da Liberação
dos Campos." Isso é uma grande catástrofe, ele falar em nome das vítimas
de Auschwitz
para legitimar suas próprias vítimas. “Não é tão terrível assim.” Há aí uma grande
manipulação da linguagem. A dominação da propaganda da linguagem é algo que se
insinua no pensamento, que se insinua no cotidiano, e é algo que existia na década
de 40, de 30, mas ela é bastante ativa hoje em dia também. Ela não está morta. É algo
que o humano conhece, há uma longa história da propaganda da linguagem, do poder
e de autoridade.
NK: Mas é preciso encontrar formas modernas para falar destas questões, sabe.
Você não pode usar as palavras da década de 60. O ponto forte da direita na França
foi renovar completamente seu discurso e sua imagem. Ela recuperou as palavras
de esquerda e recuperou a juventude e todas as formas de representação de esquerda,
para triunfar com as forças de direita. Ora, pra nós, é muito importante, ao
fazer filmes, trabalhar a forma, para tentar justamente trabalhar com formas
que sejam contemporâneas e que não estejam fechadas num discurso.
EP: Não devemos, sobretudo o Ocidente, reservar estas páginas da história à lembrança. É fundamental,
porque isso legitima hoje todos os totalitarismos e todas as ações de crimes
contra a humanidade. Legitima porque comemoramos a lembrança. Não é suficiente
comemorar a lembrança. É preciso compreender o que está organicamente ligado à história
industrial, de dois séculos atrás até hoje. E sobre a história industrial, alguém
como Max Weber colocou uma questão (e, no entanto, Max Weber é um filósofo de
direita): e se o nazismo estivesse inscrito no próprio princípio da civilização
industrial? Quer dizer, o nazismo não é algo que aconteceu no momento, é algo
que está inscrito no funcionamento autoritário, na segmentação do trabalho, na
instrumentalização do homem, na contagem, na eficiência, etc. Está inscrito no
funcionamento do capitalismo moderno.
RG: Porque fazer do extermínio nazista uma exceção é simples, é fácil.
EP: O mundo está de acordo...
RG: “Este momento de excesso não casa com nossas vidas cotidianas.” Eu acho que
a força de A Questão Humana é dizer o oposto. Bom, a lembrança está estandardizada,
então vamos tentar desestandardizar as coisas, procurar uma forma de viver. É preciso
descobrir o nazismo hoje nas nossas práticas cotidianas.
(...)
NK: E como estão indo as coisas, como está sendo a Mostra pra vocês, teve belos
filmes?
RG: Sim. Le Voyage du ballon rouge, de Hou Hsiao-hsien, I’m Not There,
de Todd Haynes...
NK: Esse nós vamos ver mais tarde.
RG: Eu gosto muito do que o Haynes faz com as posições do personagem, que corresponde
a questões políticas, sociais. Ele tem um filme proibido sobre a Karen Carpenter,
a vocalista dos Carpenters, Superstar, que é um filme sobre a anorexia
como problema social. Ele é todo encenado com bonecas Barbie.
EP: A anorexia está também ligada à cultura da moda, à cosmética, quer dizer
que o corpo...
RG: Há uma uniformização do corpo.
NK: Eu gosto bastante dessa idéia: as pessoas ricas querem viver num mundo muito
leve, no qual tudo é light, eles podem se permitir o que quiserem, enquanto,
ao mesmo tempo, outros vivem num mundo muito pesado, muito trágico. E eu adoraria
passar essa sensação em um filme. A leveza dos ricos e o pesadume dos pobres.
RG: Mas esta leveza é muito pesada também, psicologicamente, eu acho. Porque
antigamente era a religião, os valores de família, o casamento. Hoje é mais fácil,
a religião não é muito forte...
EP: O liberalismo é a religião hoje.
RG: Mas também esta leveza dos ricos vem sempre com problemas de peso, é sempre
preciso ser light e... É como se os humanos sempre procurassem problemas.
Não sei, a religião é algo do outro mundo...
NK: Se faz necessário o Nietzsche do liberalismo; seria necessário um outro Nietzsche
para escrever sobre o fim da religião [de hoje]. Estamos esperando o Nietzsche
que
vai
dizer: este é o limite. Ainda não tivemos isso, porque até agora todos os filósofos
bradam o contrário.
TM: O liberalismo contamina tudo. Não há contracampo.
EP: Por exemplo, em A Questão Humana, todos os jovens os executivos são
executivos de verdade.
TM: Pois é, eu me perguntei isso.
EP: Eles saíram todos das grandes escolas técnicas, Ciências Econômicas, Estudos
em Comércio, eles têm muita cultura e são todos muito bonitos, muito magros,
andam sempre na moda, têm todos postura de modelo. E eles têm que ser belos,
bons vendedores, esta é a imagem da vitória do liberalismo: “eu sou um jovem
executivo, eu me sacrifiquei nos meus estudos, mas eu também sou um homem em
paz comigo mesmo, que pode seduzir os homens, as mulheres...”
NK: Os animais, as crianças... (risos)
EP: “Conheço todos os acessórios da riqueza e visto esses acessórios com muita
elegância.” Este é o novo mundo vitorioso, que se efetua por meio destes jovens
soldados, que o propagam. Porque o planeta inteiro funciona hoje no modo capitalista.
Antes havia pelo menos um contra-poder, que podia abrir perspectivas diferentes,
do socialismo, por exemplo, do comunismo... Hoje, mesmo ainda existindo países
comunistas...
NK: Não são os melhores... (risos)
EP: Não são os melhores e ainda por cima foi um desmoronamento, porque é o capitalismo
que... Aliás, a Rússia se adaptou numa velocidade recorde ao capitalismo.
TM: E a China também.
NK: A China é uma coisa louca.
EP: Quer dizer, isso nunca foi visto antes na história, na história da humanidade
e das ideologias. Nunca se viu um sistema se instalar tão rapidamente. Quer dizer
que ele já estava lá, ele já estava funcionando, entre o poder “apparatchik”.
Na China ele está a todo vapor. Então, não há nenhuma outra representação sobre
o planeta a não ser o capitalismo, a não ser esta forma totalitária da empresa.
Tudo funciona sob o sistema da empresa, o planeta inteiro.
NK: Há os filmes de Jia Zhang-ke, que tem muitas relações com isso. Ele fala
da China e nós falamos da França.
EP: É isso, quando ele fala de Still Life.
NK: Neste filme há sempre esta idéia da chegada do liberalismo como uma coisa
catastrófica.
EP: Destruidora.
RG: As paisagens, as relações humanas...
NK: É interessante isso na França, porque na imprensa, tiveram alguns editores
que ficaram muito enraivecidos com A Questão Humana, porque eles acharam
que era...
EP: ...chocante.
NK: ...que não temos o direito de relacionar o nazismo e o capitalismo, que...
RG: Eles têm que ler Hannah Arendt (risos)
NK: Tem Hannah Arendt, tem bastante coisa que se pode ler. E, ao mesmo tempo,
os mesmos editores, quando vêem Jia Zhang-ke fazer isso na China, ficam
muito felizes.
TM: Mas você está falando da Europa...
NK: Não se pode falar. Quando chega perto de você...
TM: ...é proibido.
NK. Sim. Mas tem algo no filme [A Questão Humana] que atrai muito, porque
ele foi lançado na França há pouco e está indo bem nas bilheterias, para um filme
de autor. Muita gente foi vê-lo. Tempos Modernos.
Entrevista realizada por Ruy Gardnier e Tatiana Monassa
no dia 28 de outubro de 2007, em São Paulo, Hotel Crowne
Plaza. (Tradução do francês por Tatiana Monassa)
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