Primeiro
dia de Festival do Rio. Entre a costumeira não-chegada
das credenciais e as obrigações operacionais
da revista, o jeito é largar Mods, de
Serge Bozon, às 13h (que seria visto no dia seguinte),
e sair do escritório a tempo de assistir a A
Ferida (16h) e ganhar de cara o primeiro choque
estético da temporada. Em São Paulo, o
filme aparece e é o próprio Klotz que
vem representá-lo. Ele quer saber como funciona
o Festival do Rio, se havia muita gente nas sessões,
o que elas acharam do filme, lamenta o fato de Elizabeth
Perceval, roteirista do filme, não poder ter
vindo... E ainda se adianta para recomendar o belo Pele
Rasgada, filme de estréia de Julien Samani
(que, claro, depois seria visto por todos os contracampistas
cobrindo o festival...). (RG)
* * *
De início, acreditamos que a ferida de Blandine
é o centro do filme, mas quando nos instalamos
dentro do filme, percebemos que a ferida a qual o título
do filme alude não é a ferida física
de Blandine, mas a emocional.
Quando algo se corta, existe a pele, existe tudo
que há dentro, existem os ossos, e a ferida atravessa
camadas de Blandine. É ao mesmo tempo a perna
de Blandine, mas é também todo seu ser
que se fere profundamente. Com a humilhação
e o golpe que ela recebe, ela perde seu rosto, ela deixa
seu rosto no asfalto quando ela volta para o avião.
É preciso tempo para que ela reconstrua seu rosto.
Mas é também a ferida de todos os outros
personagens do filme. E a ferida de que se fala, na
estrada, no fim do filme, que é uma ferida que
não pára de sangrar, que é a ferida
na democracia. Uma hemorragia hoje na democracia, que
se constitui na rejeição do outro, que
é tão forte que sangra aos borbotões.
Essa ferida deveria ser uma chance, porque o sangue
se vê, ele não é invisível,
a ferida é visível, mas se faz de tudo
para não vê-la. Existe também um
jogo de palavras com "blessure" (ferida),
como no inglês "bless" (abençoar).
Em francês, "blesser" é ferir,
mas em inglês é abençoar, então
pessoas feridas (blessés) são pessoas
abençoadas, de certa forma, porque elas nos remetem
a realidade. Depois de se machucar, existe a ferida,
depois a cicatrização, como cicatriza,
como, aos pouquinhos... Uma ferida física, sabe-se
como fazer, há remédios, mas uma ferida
invisível é mais difícil de cicatrizar.
Como você chegou ao tema da imigração?
O filme anterior a A Ferida chama-se Pária.
Ele se passa em grande parte na noite de 31 de dezembro
de 1999, com as pessoas que vivem na rua. É um
filme de ficção que mostra como as pessoas
desaparecem de nosso olhar, como elas desaparecem em
zonas invisíveis da sociedade. Como, nas cidades,
ao nosso olhar, elas se destróem e desaparecem
da vida. A Ferida conta o contrário: como
as pessoas chegam, como elas ganham corpo, como elas
se encarnam diante de nós. Eu acredito que a
imigração não é um tema
para mim, é uma realidade fundamental. Existe
a imigração social que nós vemos,
mas existe a questão do território, de
como entrar num território, como sair dele...
Gilles Deleuze fala muito de desterritorializar, então
a questão é também de como não
se tornar prisioneiro de um território também.
Alguns africanos sentem-se desterritorializados em relação
à África, não são capazes
de suportar, de fazer parte do território africano,
eles têm sua vida em perigo, eles precisam sair
de lá. E eu acho que deve-se sempre ajudar as
pessoas que querem sair de territórios. É
isso a imigração, sair de um território
para entrar num outro. Vê-se como é difícil
entrar em um novo território, como a administração,
a polícia, o estado, a opinião pública
em geral não querem ver as pessoas entrarem e
não suportam que as pessoas entrem, principalmente
quando são pobres. Existe o imaginário
de que aquele que chega é um intruso, alguém
que vai trazer doença, o crime. Algo que está
nas cabeças das pessoas, e na propaganda. Eu
não sei como se pode viver num mundo, como se
pode suportar que o mundo funcione assim. Endurecer
progressivamente os mecanismos que impedem as pessoas
de entrar. E depois que elas entram no território,
é preciso que elas também entrem num território
outro que o "squat" (prédios desabitados
sem maiores condições de higiene, onde
sem-teto e imigrantes vivem). Quando ele está
no território do squat, Papi diz a Blandine que
a polícia vem demolir o prédio, e então
é preciso sair novamente. Mas para que ela saia
de lá é preciso que ela se cicatrize,
que ela possa reencontrar um pouco de vida. A imigração
é essa forma de constantemente entrar em algum
lugar, sair de algum lugar, entrar num outro lugar.
Blandine, em seu monólogo, fala da polícia,
da França, que ela é tratada lá
da mesma forma que na África. Para fugir da forma
como ela é tratada na África, ela viaja
até a França, e lá recebe o mesmo
tipo de tratamento.
Elizabeth Perceval, que escreveu o roteiro, preparou
durante um ano o arcabouço do filme. Juntos,
nós nos reuníamos com muitas pessoas que
acabavam de chegar na França, diversos africanos,
que viveram problemas na zona de espera. Ela registrou
diversos testemunhos, pessoas que contaram seus percursos,
e muitos falam disso. Muitos dizem que se viram numa
situação semelhante, sobretudo na volta
ao avião: as pessoas que queriam matá-las
na África e a polícia eram a mesma coisa.
É muito afetivo, não é uma análise
política, é um testemunho direto dizer:
"Eles me tratam da mesma maneira". Mas acontecia
sempre: eles falavam das bota negras, que as botas negras
que prendiam suas cabeças ao chão eram
as mesmas.
Quanto ao aspecto formal do filme, a primeira parte
no aeroporto funciona de uma forma semelhante a um documentário
analítico, linhas de forças mas não
linhas de fuga – porque não há nenhuma
–, um pouco como Wiseman utiliza a câmera para
descrever um certo procedimento institucional e como
esse procedimento se torna inumano quando estamos diante
de problemas humanos, com seus sofrimentos. Falando
nisso, você tem diversos documentários...
É verdade. Bom, não é igual
filmar um documentário e filmar uma ficção,
mas é parecido. Eu aprendi com esses filmes que
logo que se faz o enquadramento da câmera, com
seres humanos dentro desse enquadramento, isso gera
imediatamente a ficção no imaginário
do espectador. Foi uma grande descoberta pessoal, porque
sempre na ficção, e no documentário
também, é preciso que as pessoas façam
coisas, que elas se ponham em movimento, porque se elas
não se mexem, todos dizem que nada acontece,
fala-se até de vazio. Uma mulher ferida, deitada
no chão, e pronto. Não tem necessidade
de ouvir alguém tossir. E então alguém
vai e tosse, fora de quadro. E filma-se assim. Ou outra
coisa: um homem tenta arrancar a calça de um
outro homem que estava ferido para ajudá-lo a
colocar outra calça, porque a primeira estava
rasgada. Ações muito simples. É
ficção, não é nada além
de ficção, só que é algo
que está inscrito num lugar onde uma administração
está se preparando para organizar a rejeição
dessas pessoas. Nós quisemos mostrar o mecanismo
da rejeição, mostrar como tecnicamente
os corpos são tratados e como tecnicamente se
fala deles, como eles são atingidos, e como se
organiza sua volta pelo avião, e como não
se deseja aceitar os pedidos de asilo. Nesse momento,
a história é muito simples. Mas essa parte
é filmada da mesma forma que o resto do filme.
Não é uma filmagem-documentário
no aeroporto e uma filmagem-ficção depois
do squat. É a mesma forma de filmar e tudo foi
escrito junto, do começo ao fim do roteiro. Mas
como trata-se de um lugar administrativo, efetivamente
a realidade desse lugar é de ordem de autoridade.
Já no squat, há sempre muita gente, e
é a realidade humana que é mais forte.
Não existe administração no squat.
No aeroporto, nós sentimos que aqueles seres
humanos são levadas ao zero, e é nisso
que eu acho que parece com Wiseman. Quando deixam o
aeroporto, eles devem começar do zero e tentar
reencontrar sua humanidade. Enquanto Blandine está
deitada no colchão, no squat, tentando restabelecer
sua dignidade, o filme ganha uma força afetiva,
aí sim, não-analítica.
Sim, sim. É o som. Nesse momento o filme
deixa Blandine e segue os outros personagens. Cada personagem
que vemos em torno de Blandine traz vida até
ela, traz vida até que ela se levante. É
tudo que se passa em torno dela que lhe permite reencontrar
a vida dentro dela. As jovens de Serra Leoa, Moktar,
o cantor que canta no pátio. Lá dentro,
nada pode agredi-los. Eles se sentem mal quando saem
do squat. Moktar tem medo de sair, ele quer sempre que
alguém vá por ele. O squat é
um lugar muito protetor, um lugar onde a vida pode começar
a circular novamente, poder encontrar a força
de sair de lá. Lembra-se de Steve, o personagem
que quebra a janela para que a luz possa entrar. O squat
é isso. Eles sentem-se completamente amurados
quando saem da zona de espera, Blandine coloca o lenço
ao redor da cabeça, ela não quer ser vista,
ela não quer ver, ela se fecha; no squat, ele
quebra a janela para que o ar possa circular. E quando
o ar circular melhor, tudo circula com mais facilidade.
E a cidade, enfim, é a terceira parte do filme.
Eles partem no caminhão, Papi viaja no caminhão
com outros, e faz sol. O fim do filme para mim é
uma espécie de alegria, a alegria de querer,
de ter vontade, de já ter ultrapassado, de estar
sobre o território francês e sob o sol.
Em A Ferida, há muitas passagens, várias
viagens no metrô, uma no caminhão. Me lembra
inclusive Defesa Secreta de Rivette, que filma
uma viagem inteira de metrô (risos). Quando Blandine
pega o metrô pela primeira vez, ela não
quer ver. Na última, ela é toda olhares,
ela quer olhar tudo, sentir-se parte daquela comunidade.
Há três territórios, a zona de espera,
o squat, e a cidade. O filme começa no
squat, Blandine liga para Papi, e ele vai até
o aeroporto para se encontrar com ela. Primeira viagem
de metrô, é Papi que viaja. Ele fica sentado
e olha. A passagem da fronteira do squat até
a zona de espera é subterrânea, é
voluntariamente subterrânea, é na clandestinidade,
de uma certa maneira. Um espaço em movimento,
é como um túnel que parece fixo, porque
o plano é fixo, mas ao mesmo tempo tudo se movimenta.
E há brancos no metrô. O primeiro branco
que vemos está de costas, falando em seu telefone
celular. É assim que ele vê os brancos
nesse momento. Ele vê três mulheres com
peles muito brancas, loiras, e uma delas olha para ele,
que está fora de quadro. Tem um homem branco
de perfil, pensativo, e depois vemos novamente Papi.
Seu olhar circula pelos rostos, mas ao invés
de filmar isso do ponto de vista de Papi, de colocar
a câmera no lugar de Papi, eu quis ser mais subjetivo,
porque o olhar é capaz de fazer muitas coisas,
e muitas vezes quando as pessoas fazem o "point
of view" [plano ponto-de-vista], colocam a câmera
no lugar em que está o ator, é preciso
entender como estão as pessoas no espaço,
há regras que fazem que o espectador perceba
o ponto-de-vista, "Ah! Aqui é Papi que está
olhando". Eu suprimi essa regra, não é
porque colocamos o plano naquele ponto que sentimos
que é Papi que olha, não corresponde a
nenhuma realidade no espaço. O fato que existe
um plano, depois outro plano e outro plano revela no
espaço do espectador como funciona o olhar de
Papi. Isso é importante, porque essa maneira
de filmar se desenvolve em seguida no filme. Quando
Blandine vem, é um plano muito longo em que ela
se esconde, e vemos que ela entra na noite, ela se fecha,
e é a passagem da zona de espera ao squat. E
depois, na passagem do squat para a cidade ela olha
para todos os lados, ela ensaia seus primeiros sorrisos.
Há um jogo de olhares entre Papi e Blandine
que é muito emocionante. Quando viajam pela primeira
vez, ele tenta olhar para ela, ela não devolve
o olhar...
Sim (risos). No caminhão, é ainda
a passagem de uma fronteira, porque o personagem conta
seu trajeto até a França. Nesse percurso,
ele conta de trás pra frente seu percurso. Ele
começa contando como ele chegou em Marselha,
depois ele conta como pegou o barco na África,
depois ele conta como saiu de Serra Leoa, ele volta
sempre no tempo. E o som que colocamos nesse momento
é o som da África. Então, é
uma estrada na França mas é também
uma estrada da África, era possível que
fosse na África. É antes do filme, até.
Depois do fim, poderia começar tudo de novo,
três homens dormindo num squat, Blandine telefone,
e tudo começa novamente.
Existe uma escolha curiosa de música, duas
gravações ao vivo do grupo inglês
Joy Division, que tem muito pouco a ver com a cultura
dos personagens representados no filme, mas que, acredito,
fala da mesma angústia dos personagens, a voz
de Ian Curtis.
Sim, ele sentia-se estrangeiro à cultura,
à Inglaterra daquela época. É um
sentimento interior, é uma resistência.
A música do Joy Division é uma música
de resistência. Ao mesmo tempo uma resistência
ao desespero e uma resistência política,
há muitas letras políticas, uma resistência
contra o poder da sociedade inglesa, como uma geração
se sente completamente destruída pelos valores
vigentes, e são obrigados a resistir e defender
seus próprios valores no seu modo de vida, em
sua música. Então, o Joy Division é
um grupo de grandes resistentes. Entre a juventude sem
futuro nas cidades industriais da Inglaterra e os africanos
que são deixados no squat na França, impedidos
de ter residência, impedidos de ter trabalho,
impedidos de abrigar-se, há semelhanças,
porque é preciso desenvolver uma força
de resistência muito grande em relação
ao desespero. As duas canções que eu escolhi
para o filme são canções um pouco
heróicas. Um canto muito lírico, elegíaco,
com algo que faz irromper um sentimento, e é
a alegria que só as pessoas desesperadas conhecem.
Não uma alegria superficial, mas uma alegria
profunda que venceu a morte. Ian Curtis se suicidou,
Blandine também poderia ter feito, ela até
começou a fazê-lo.
Por que a escolha das músicas em versão
ao vivo?
(longo silêncio) Eu poderia responder com
muita facilidade que em geral eu prefiro o "ao
vivo" para tudo em relação ao estúdio,
como eu prefiro as locações reais, o som
direto, os atores não-profissionais. Corresponde
melhor com a minha sensibilidade. Mas acontece que o
filme é quase inteiro em planos fixos. E como
o squat em que estavam nossos amigos foi destruído,
tivemos que construir numa fábrica a reprodução
do squat para fazer certas cenas, logo era estúdio.
Na filmagem, eu tinha medo, que com planos fixos, luz
e estúdio que o filme ficasse clean demais.
O parti pris do plano fixo e da limpidez eu queria,
mas eu tinha medo que as cenas do squat fossem falsas
demais. Eu passei diversas noites num outro squat que
era do lado do squat que foi destruído, e eu
gravei muitas coisas nos corredores, nos quartos. Todo
o som que se ouve no filme é o som de um squat.
Com a música, é a mesma coisa, é
preciso que seja live porque se eu pego o disco
é próprio demais. Eu adoro a lacuna entre
estúdio e ao vivo. E realmente o editor de som
conseguiu um trabalho formidável: quando eles
estão no corredor, um fumando um cigarro, os
homens chegam para trazer roupas para as meninas, ele
conseguiu mixar esse som e realmente você tem
a impressão que o grupo está tocando lá
embaixo, que é um concerto live. Tem respiração,
é vivo. Sabe, o Joy Division não era composto
por músicos, isso também me agrada muito.
O que é muito forte no rock é que muitas
vezes não são bons músicos, eles
simplesmente têm um desejo enorme de transmitir
sua expressão que isso passa muito mais forte
do que vários grupos com músicas mais
treinados, melhor compostas, melhor gravadas. Além
disso, é um pouco documentário o "ao
vivo", é como um arquivo, aconteceu tal
dia, num tal lugar, com tantos espectadores, o som estava
assim, eles cantaram assado essa noite.
Eu queria que você falasse dos cinco monólogos
que há no filme, e nos quais o filme se estrutura.
Foi a partir do momento em que Elizabeth decidiu
que ela estruturaria o roteiro com cinco monólogos
que ela pode escrever o roteiro. Foi a idéia
de base do filme, de que cinco pessoas falariam longamente.
O roteiro tinha sessenta páginas, muito curto.
E o interessante era saber como passar de um monólogo
a outro, e cada monólogo descreve uma etapa diferente
da viagem: Bibiche conta como ela saiu da África,
seu último dia na África; Moktar conta
sua primeira noite em Paris; Steve conta sua vida em
Paris; Blandine conta o que acaba de acontecer; Amadou
no final conta seu trajeto. A cada vez é um momento
diferente. E, de fato, falando com os africanos, nós
rapidamente nos demos conta de que a palavra dos africanos
é confiscada, que eles não têm o
direito à palavra. Ninguém quer escutá-los,
e eles são muito desconfiados. Eles não
gostam de falar assim. Não é porque você
faz uma pergunta a eles que eles vão te responder.
Eles podem falar alguma coisa, mas para que eles possam
responder verdadeiramente, é preciso tempo. Quando
ela estava sentada diante de um africano ou uma africana
a quem já conhecia há alguns meses, e
a pessoa começava a falar, Elizabeth tinha a
impressão de receber desse africano uma palavra
muito secreta, que ele confiava a ela. Ela estava sentada,
em frente. Ela escreveu a partir daí, desse lugar
em que ela estava sentada quando conversava com ele.
A câmera faz o mesmo, tentar fazer com que o espectador
esteja nesse lugar, sentado e ouvindo. É por
isso que não é cortado, que os monólogos
são longos: é para que a palavra possa
ser confiada, como um segredo. Eu acho também
que a duração do filme é também
a duração para que a personagem possa
confiar em nós, espectadores. Mas o filme é
como é porque Elizabeth o escreveu dessa forma.
A maneira com a qual ela encontrou essas pessoas, o
que saiu disso, fez com que ela escrevesse o filme assim.
E me fez ter filmado o filme assim, porque se eu não
fosse fazer o filme, nada disso teria sido feito. As
coisas caminham juntas.
Entrevista realizada por Ruy Gardnier no dia 1º
de novembro de 2004, em São Paulo, Hotel Crowne
Plaza
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