ENTREVISTA COM NICOLAS KLOTZ

Primeiro dia de Festival do Rio. Entre a costumeira não-chegada das credenciais e as obrigações operacionais da revista, o jeito é largar Mods, de Serge Bozon, às 13h (que seria visto no dia seguinte), e sair do escritório a tempo de assistir a A Ferida (16h) e ganhar de cara o primeiro choque estético da temporada. Em São Paulo, o filme aparece e é o próprio Klotz que vem representá-lo. Ele quer saber como funciona o Festival do Rio, se havia muita gente nas sessões, o que elas acharam do filme, lamenta o fato de Elizabeth Perceval, roteirista do filme, não poder ter vindo... E ainda se adianta para recomendar o belo Pele Rasgada, filme de estréia de Julien Samani (que, claro, depois seria visto por todos os contracampistas cobrindo o festival...). (RG)

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De início, acreditamos que a ferida de Blandine é o centro do filme, mas quando nos instalamos dentro do filme, percebemos que a ferida a qual o título do filme alude não é a ferida física de Blandine, mas a emocional.

Quando algo se corta, existe a pele, existe tudo que há dentro, existem os ossos, e a ferida atravessa camadas de Blandine. É ao mesmo tempo a perna de Blandine, mas é também todo seu ser que se fere profundamente. Com a humilhação e o golpe que ela recebe, ela perde seu rosto, ela deixa seu rosto no asfalto quando ela volta para o avião. É preciso tempo para que ela reconstrua seu rosto. Mas é também a ferida de todos os outros personagens do filme. E a ferida de que se fala, na estrada, no fim do filme, que é uma ferida que não pára de sangrar, que é a ferida na democracia. Uma hemorragia hoje na democracia, que se constitui na rejeição do outro, que é tão forte que sangra aos borbotões. Essa ferida deveria ser uma chance, porque o sangue se vê, ele não é invisível, a ferida é visível, mas se faz de tudo para não vê-la. Existe também um jogo de palavras com "blessure" (ferida), como no inglês "bless" (abençoar). Em francês, "blesser" é ferir, mas em inglês é abençoar, então pessoas feridas (blessés) são pessoas abençoadas, de certa forma, porque elas nos remetem a realidade. Depois de se machucar, existe a ferida, depois a cicatrização, como cicatriza, como, aos pouquinhos... Uma ferida física, sabe-se como fazer, há remédios, mas uma ferida invisível é mais difícil de cicatrizar.

Como você chegou ao tema da imigração?

O filme anterior a A Ferida chama-se Pária. Ele se passa em grande parte na noite de 31 de dezembro de 1999, com as pessoas que vivem na rua. É um filme de ficção que mostra como as pessoas desaparecem de nosso olhar, como elas desaparecem em zonas invisíveis da sociedade. Como, nas cidades, ao nosso olhar, elas se destróem e desaparecem da vida. A Ferida conta o contrário: como as pessoas chegam, como elas ganham corpo, como elas se encarnam diante de nós. Eu acredito que a imigração não é um tema para mim, é uma realidade fundamental. Existe a imigração social que nós vemos, mas existe a questão do território, de como entrar num território, como sair dele... Gilles Deleuze fala muito de desterritorializar, então a questão é também de como não se tornar prisioneiro de um território também. Alguns africanos sentem-se desterritorializados em relação à África, não são capazes de suportar, de fazer parte do território africano, eles têm sua vida em perigo, eles precisam sair de lá. E eu acho que deve-se sempre ajudar as pessoas que querem sair de territórios. É isso a imigração, sair de um território para entrar num outro. Vê-se como é difícil entrar em um novo território, como a administração, a polícia, o estado, a opinião pública em geral não querem ver as pessoas entrarem e não suportam que as pessoas entrem, principalmente quando são pobres. Existe o imaginário de que aquele que chega é um intruso, alguém que vai trazer doença, o crime. Algo que está nas cabeças das pessoas, e na propaganda. Eu não sei como se pode viver num mundo, como se pode suportar que o mundo funcione assim. Endurecer progressivamente os mecanismos que impedem as pessoas de entrar. E depois que elas entram no território, é preciso que elas também entrem num território outro que o "squat" (prédios desabitados sem maiores condições de higiene, onde sem-teto e imigrantes vivem). Quando ele está no território do squat, Papi diz a Blandine que a polícia vem demolir o prédio, e então é preciso sair novamente. Mas para que ela saia de lá é preciso que ela se cicatrize, que ela possa reencontrar um pouco de vida. A imigração é essa forma de constantemente entrar em algum lugar, sair de algum lugar, entrar num outro lugar.

Blandine, em seu monólogo, fala da polícia, da França, que ela é tratada lá da mesma forma que na África. Para fugir da forma como ela é tratada na África, ela viaja até a França, e lá recebe o mesmo tipo de tratamento.

Elizabeth Perceval, que escreveu o roteiro, preparou durante um ano o arcabouço do filme. Juntos, nós nos reuníamos com muitas pessoas que acabavam de chegar na França, diversos africanos, que viveram problemas na zona de espera. Ela registrou diversos testemunhos, pessoas que contaram seus percursos, e muitos falam disso. Muitos dizem que se viram numa situação semelhante, sobretudo na volta ao avião: as pessoas que queriam matá-las na África e a polícia eram a mesma coisa. É muito afetivo, não é uma análise política, é um testemunho direto dizer: "Eles me tratam da mesma maneira". Mas acontecia sempre: eles falavam das bota negras, que as botas negras que prendiam suas cabeças ao chão eram as mesmas.

Quanto ao aspecto formal do filme, a primeira parte no aeroporto funciona de uma forma semelhante a um documentário analítico, linhas de forças mas não linhas de fuga – porque não há nenhuma –, um pouco como Wiseman utiliza a câmera para descrever um certo procedimento institucional e como esse procedimento se torna inumano quando estamos diante de problemas humanos, com seus sofrimentos. Falando nisso, você tem diversos documentários...

É verdade. Bom, não é igual filmar um documentário e filmar uma ficção, mas é parecido. Eu aprendi com esses filmes que logo que se faz o enquadramento da câmera, com seres humanos dentro desse enquadramento, isso gera imediatamente a ficção no imaginário do espectador. Foi uma grande descoberta pessoal, porque sempre na ficção, e no documentário também, é preciso que as pessoas façam coisas, que elas se ponham em movimento, porque se elas não se mexem, todos dizem que nada acontece, fala-se até de vazio. Uma mulher ferida, deitada no chão, e pronto. Não tem necessidade de ouvir alguém tossir. E então alguém vai e tosse, fora de quadro. E filma-se assim. Ou outra coisa: um homem tenta arrancar a calça de um outro homem que estava ferido para ajudá-lo a colocar outra calça, porque a primeira estava rasgada. Ações muito simples. É ficção, não é nada além de ficção, só que é algo que está inscrito num lugar onde uma administração está se preparando para organizar a rejeição dessas pessoas. Nós quisemos mostrar o mecanismo da rejeição, mostrar como tecnicamente os corpos são tratados e como tecnicamente se fala deles, como eles são atingidos, e como se organiza sua volta pelo avião, e como não se deseja aceitar os pedidos de asilo. Nesse momento, a história é muito simples. Mas essa parte é filmada da mesma forma que o resto do filme. Não é uma filmagem-documentário no aeroporto e uma filmagem-ficção depois do squat. É a mesma forma de filmar e tudo foi escrito junto, do começo ao fim do roteiro. Mas como trata-se de um lugar administrativo, efetivamente a realidade desse lugar é de ordem de autoridade. Já no squat, há sempre muita gente, e é a realidade humana que é mais forte. Não existe administração no squat.

No aeroporto, nós sentimos que aqueles seres humanos são levadas ao zero, e é nisso que eu acho que parece com Wiseman. Quando deixam o aeroporto, eles devem começar do zero e tentar reencontrar sua humanidade. Enquanto Blandine está deitada no colchão, no squat, tentando restabelecer sua dignidade, o filme ganha uma força afetiva, aí sim, não-analítica.

Sim, sim. É o som. Nesse momento o filme deixa Blandine e segue os outros personagens. Cada personagem que vemos em torno de Blandine traz vida até ela, traz vida até que ela se levante. É tudo que se passa em torno dela que lhe permite reencontrar a vida dentro dela. As jovens de Serra Leoa, Moktar, o cantor que canta no pátio. Lá dentro, nada pode agredi-los. Eles se sentem mal quando saem do squat. Moktar tem medo de sair, ele quer sempre que alguém vá por ele. O squat é um lugar muito protetor, um lugar onde a vida pode começar a circular novamente, poder encontrar a força de sair de lá. Lembra-se de Steve, o personagem que quebra a janela para que a luz possa entrar. O squat é isso. Eles sentem-se completamente amurados quando saem da zona de espera, Blandine coloca o lenço ao redor da cabeça, ela não quer ser vista, ela não quer ver, ela se fecha; no squat, ele quebra a janela para que o ar possa circular. E quando o ar circular melhor, tudo circula com mais facilidade. E a cidade, enfim, é a terceira parte do filme. Eles partem no caminhão, Papi viaja no caminhão com outros, e faz sol. O fim do filme para mim é uma espécie de alegria, a alegria de querer, de ter vontade, de já ter ultrapassado, de estar sobre o território francês e sob o sol.

Em A Ferida, há muitas passagens, várias viagens no metrô, uma no caminhão. Me lembra inclusive Defesa Secreta de Rivette, que filma uma viagem inteira de metrô (risos). Quando Blandine pega o metrô pela primeira vez, ela não quer ver. Na última, ela é toda olhares, ela quer olhar tudo, sentir-se parte daquela comunidade.

Há três territórios, a zona de espera, o squat, e a cidade. O filme começa no squat, Blandine liga para Papi, e ele vai até o aeroporto para se encontrar com ela. Primeira viagem de metrô, é Papi que viaja. Ele fica sentado e olha. A passagem da fronteira do squat até a zona de espera é subterrânea, é voluntariamente subterrânea, é na clandestinidade, de uma certa maneira. Um espaço em movimento, é como um túnel que parece fixo, porque o plano é fixo, mas ao mesmo tempo tudo se movimenta. E há brancos no metrô. O primeiro branco que vemos está de costas, falando em seu telefone celular. É assim que ele vê os brancos nesse momento. Ele vê três mulheres com peles muito brancas, loiras, e uma delas olha para ele, que está fora de quadro. Tem um homem branco de perfil, pensativo, e depois vemos novamente Papi. Seu olhar circula pelos rostos, mas ao invés de filmar isso do ponto de vista de Papi, de colocar a câmera no lugar de Papi, eu quis ser mais subjetivo, porque o olhar é capaz de fazer muitas coisas, e muitas vezes quando as pessoas fazem o "point of view" [plano ponto-de-vista], colocam a câmera no lugar em que está o ator, é preciso entender como estão as pessoas no espaço, há regras que fazem que o espectador perceba o ponto-de-vista, "Ah! Aqui é Papi que está olhando". Eu suprimi essa regra, não é porque colocamos o plano naquele ponto que sentimos que é Papi que olha, não corresponde a nenhuma realidade no espaço. O fato que existe um plano, depois outro plano e outro plano revela no espaço do espectador como funciona o olhar de Papi. Isso é importante, porque essa maneira de filmar se desenvolve em seguida no filme. Quando Blandine vem, é um plano muito longo em que ela se esconde, e vemos que ela entra na noite, ela se fecha, e é a passagem da zona de espera ao squat. E depois, na passagem do squat para a cidade ela olha para todos os lados, ela ensaia seus primeiros sorrisos.

Há um jogo de olhares entre Papi e Blandine que é muito emocionante. Quando viajam pela primeira vez, ele tenta olhar para ela, ela não devolve o olhar...

Sim (risos). No caminhão, é ainda a passagem de uma fronteira, porque o personagem conta seu trajeto até a França. Nesse percurso, ele conta de trás pra frente seu percurso. Ele começa contando como ele chegou em Marselha, depois ele conta como pegou o barco na África, depois ele conta como saiu de Serra Leoa, ele volta sempre no tempo. E o som que colocamos nesse momento é o som da África. Então, é uma estrada na França mas é também uma estrada da África, era possível que fosse na África. É antes do filme, até. Depois do fim, poderia começar tudo de novo, três homens dormindo num squat, Blandine telefone, e tudo começa novamente.

Existe uma escolha curiosa de música, duas gravações ao vivo do grupo inglês Joy Division, que tem muito pouco a ver com a cultura dos personagens representados no filme, mas que, acredito, fala da mesma angústia dos personagens, a voz de Ian Curtis.

Sim, ele sentia-se estrangeiro à cultura, à Inglaterra daquela época. É um sentimento interior, é uma resistência. A música do Joy Division é uma música de resistência. Ao mesmo tempo uma resistência ao desespero e uma resistência política, há muitas letras políticas, uma resistência contra o poder da sociedade inglesa, como uma geração se sente completamente destruída pelos valores vigentes, e são obrigados a resistir e defender seus próprios valores no seu modo de vida, em sua música. Então, o Joy Division é um grupo de grandes resistentes. Entre a juventude sem futuro nas cidades industriais da Inglaterra e os africanos que são deixados no squat na França, impedidos de ter residência, impedidos de ter trabalho, impedidos de abrigar-se, há semelhanças, porque é preciso desenvolver uma força de resistência muito grande em relação ao desespero. As duas canções que eu escolhi para o filme são canções um pouco heróicas. Um canto muito lírico, elegíaco, com algo que faz irromper um sentimento, e é a alegria que só as pessoas desesperadas conhecem. Não uma alegria superficial, mas uma alegria profunda que venceu a morte. Ian Curtis se suicidou, Blandine também poderia ter feito, ela até começou a fazê-lo.

Por que a escolha das músicas em versão ao vivo?

(longo silêncio) Eu poderia responder com muita facilidade que em geral eu prefiro o "ao vivo" para tudo em relação ao estúdio, como eu prefiro as locações reais, o som direto, os atores não-profissionais. Corresponde melhor com a minha sensibilidade. Mas acontece que o filme é quase inteiro em planos fixos. E como o squat em que estavam nossos amigos foi destruído, tivemos que construir numa fábrica a reprodução do squat para fazer certas cenas, logo era estúdio. Na filmagem, eu tinha medo, que com planos fixos, luz e estúdio que o filme ficasse clean demais. O parti pris do plano fixo e da limpidez eu queria, mas eu tinha medo que as cenas do squat fossem falsas demais. Eu passei diversas noites num outro squat que era do lado do squat que foi destruído, e eu gravei muitas coisas nos corredores, nos quartos. Todo o som que se ouve no filme é o som de um squat. Com a música, é a mesma coisa, é preciso que seja live porque se eu pego o disco é próprio demais. Eu adoro a lacuna entre estúdio e ao vivo. E realmente o editor de som conseguiu um trabalho formidável: quando eles estão no corredor, um fumando um cigarro, os homens chegam para trazer roupas para as meninas, ele conseguiu mixar esse som e realmente você tem a impressão que o grupo está tocando lá embaixo, que é um concerto live. Tem respiração, é vivo. Sabe, o Joy Division não era composto por músicos, isso também me agrada muito. O que é muito forte no rock é que muitas vezes não são bons músicos, eles simplesmente têm um desejo enorme de transmitir sua expressão que isso passa muito mais forte do que vários grupos com músicas mais treinados, melhor compostas, melhor gravadas. Além disso, é um pouco documentário o "ao vivo", é como um arquivo, aconteceu tal dia, num tal lugar, com tantos espectadores, o som estava assim, eles cantaram assado essa noite.

Eu queria que você falasse dos cinco monólogos que há no filme, e nos quais o filme se estrutura.

Foi a partir do momento em que Elizabeth decidiu que ela estruturaria o roteiro com cinco monólogos que ela pode escrever o roteiro. Foi a idéia de base do filme, de que cinco pessoas falariam longamente. O roteiro tinha sessenta páginas, muito curto. E o interessante era saber como passar de um monólogo a outro, e cada monólogo descreve uma etapa diferente da viagem: Bibiche conta como ela saiu da África, seu último dia na África; Moktar conta sua primeira noite em Paris; Steve conta sua vida em Paris; Blandine conta o que acaba de acontecer; Amadou no final conta seu trajeto. A cada vez é um momento diferente. E, de fato, falando com os africanos, nós rapidamente nos demos conta de que a palavra dos africanos é confiscada, que eles não têm o direito à palavra. Ninguém quer escutá-los, e eles são muito desconfiados. Eles não gostam de falar assim. Não é porque você faz uma pergunta a eles que eles vão te responder. Eles podem falar alguma coisa, mas para que eles possam responder verdadeiramente, é preciso tempo. Quando ela estava sentada diante de um africano ou uma africana a quem já conhecia há alguns meses, e a pessoa começava a falar, Elizabeth tinha a impressão de receber desse africano uma palavra muito secreta, que ele confiava a ela. Ela estava sentada, em frente. Ela escreveu a partir daí, desse lugar em que ela estava sentada quando conversava com ele. A câmera faz o mesmo, tentar fazer com que o espectador esteja nesse lugar, sentado e ouvindo. É por isso que não é cortado, que os monólogos são longos: é para que a palavra possa ser confiada, como um segredo. Eu acho também que a duração do filme é também a duração para que a personagem possa confiar em nós, espectadores. Mas o filme é como é porque Elizabeth o escreveu dessa forma. A maneira com a qual ela encontrou essas pessoas, o que saiu disso, fez com que ela escrevesse o filme assim. E me fez ter filmado o filme assim, porque se eu não fosse fazer o filme, nada disso teria sido feito. As coisas caminham juntas.

Entrevista realizada por Ruy Gardnier no dia 1º de novembro de 2004, em São Paulo, Hotel Crowne Plaza