Imagine o leitor que a já célebre
cena de Tropa de Elite em que o aspirante/estudante
Matias questiona sua turma na faculdade tivesse um
final diferente. Imaginemos que, ao invés de um silêncio
sepulcral, a acusação de Matias – de que seus colegas
não conhecem a realidade do dia-a-dia da polícia e
que contribuem para o tráfico enquanto vivem tranqüilos
nos seus apartamentos na Zona Sul – tivesse sido sucedida
por uma grande balbúrdia, com o jovem cercado por gritos
dos seus colegas, fruto da discordância que aquela
afirmação polêmica geraria. Possivelmente assim a cena
seria mais verossímil, mais realista acerca das relações
e reações dos personagens envolvidos. Não me interessa
entrar aqui no mérito da consistência dos personagens – a
questão se remete às suas ações físicas, simplesmente.
O que quero notar é que o silêncio de uma turma de
estudantes, ao ser acusada por um colega de não compreender
o papel da polícia e ser cúmplice de criminosos, não é verossímil, é fabular.
A cena se desenrola no filme do modo que vemos por
um interesse central da sua narrativa: mobilizar o
espectador, incomodá-lo, levá-lo a tomar posições.
Esta é apenas uma cena entre várias, mas ela deixa
bastante claro o quão equivocado é considerar Tropa
de Elite um filme “realista” em sua representação
dos fatos ou “bem-feito” na perspectiva da tradição
do cinema narrativo. Não é nisso que o filme se apóia,
nem é essa sua principal ambição.
Quando Cidade de Deus foi lançado, a Contracampo publicou um artigo do
nosso editor Ruy Gardnier (posteriormente respondido por
Fernando Meirelles), gerando uma interessante
discussão) em que ele dizia que Cidade de Deus se caracterizava por diferir
inteiramente de uma certa tradição dos filmes brasileiros, apontada originalmente
por David Neves: a de uma certa preguiça na encenação. Cidade de Deus encarnou
então o modelo de filme brasileiro plenamente inserido nos moldes de “qualidade
cinematográfica” do seu tempo, com sua montagem ágil, seus ótimos atores, suas
idas-e-vindas narrativas, temporais e locais – e seus personagens extremamente
eficientes em termos dramáticos. Cidade de Deus não deixou margem a dúvidas:
o filme tinha uma ética muito clara. Se Mané Galinha transformou-se em um bandido
assassino ao matar um segurança de supermercado, o filho deste segurança o matará no
futuro. Aqui se faz, aqui se paga. O narrador não se envolve com as malfeitorias
e Dadinho, a figura central do enredo, é um bandido que, como o diálogo entre
Ruy e Meirelles revela, desde o início era pensado como alguém mau de nascença.
Nenhum espectador terá dúvidas sobre o caráter de Dadinho ao final do filme. É fácil
saber quem merece nosso afeto e quem merece nosso ódio em Cidade de Deus.
A despeito da citada originalidade de sua encenação pilhada, trata-se,
portanto, de um filme que segue as convenções de um certo tipo de melodrama,
com anti-heróis e vilões típicos. Faço esta menção a este outro filme de grande
sucesso considerado “realista” ao tratar do cotidiano de violência gerado pelo
tráfico de drogas para apontar que Tropa de Elite segue por um caminho
diverso, inteiramente oposto. Sua relação com as regras melodramáticas de construção
de personagens está mais interessada em confundir o espectador do que em oferecer
a ele uma clara distinção entre o que é certo e o que é errado – e, em conseqüência,
a narrativa se torna inteiramente ambígua sobre a sua moral. Não é à toa que Tropa
de Elite foi logo acusado de fascista – esta ambigüidade é claramente um
interesse da própria concepção do filme, ao dar voz ao personagem de um policial
que deriva em criminoso pelos métodos que usa e, ao final, não dar qualquer indício
de que ele estava errado para além dos seus próprios gestos. O espectador pode
enxergar no Capitão Nascimento um sujeito desequilibrado que se enche de remédios,
agride prisioneiros, tortura-os, agride a própria esposa e termina só; por outro
lado pode considerá-lo um herói na luta contra o crime, que trata criminosos
com rigor e paga com seu próprio bem-estar o preço de ajudar na segurança da
população. A escolha é moral, mas o filme, até o final, não faz a sua opção:
Nascimento não é punido e tampouco qualquer erro seu fica evidente. Justamente
ao final o enredo permitiria explicitar esta opção de forma muito clara – como
notou Carlos Reichenbach: o último torturado, aquele que confessa após ouvir
Nascimento dizer “tira a calça dele e pega a vassoura”, poderia ter morrido
sem nada confessar, deixando nas platéias a dúvida sobre sua inocência e evidenciando
a falha de caráter de Nascimento. Não é o que ocorre – o filme sabidamente se
permite ser lido como um estímulo a métodos de investigação que incluem a tortura;
mas, como também se permite ser lido de forma contrária, fica ao espectador a
escolha moral.
Nesse sentido, vale ressaltar a escolha do personagem narrador. É sabido publicamente
que no roteiro original o narrador seria o aspirante Matias. (Peço licença para
uma observação: é sempre bastante questionável discutir os filmes com base em
informações que não fazem parte dele. No entanto, o próprio Tropa de Elite se
mostra como um filme que foi mudado ao longo de sua preparação, uma vez que inclui
nos créditos finais os nomes dos atores que representavam Matias e Neto na infância
dos anos 70, quando isto simplesmente não aparece na tela, decerto porque foi
eliminado na montagem.) Mas, como eu dizia, a princípio Matias seria o narrador.
Teríamos então a história de um sujeito que entrou na polícia sem muita vocação,
indo na onda de um colega de infância, e que ao final do filme se tornou uma
máquina de matar – e Nascimento então exerceria um papel bastante semelhante
ao do sargento de Nascido Para Matar, de Kubrick, como alguns já compararam.
Deste modo seria mais simples dissociar o filme dos atos de Nascimento. Mas é então
que devemos nos lembrar da cartela inicial, que atribui a uma tese sociológica
norte-americana dos anos 70 a idéia que Rousseau já defendia séculos atrás e
que o compositor Wilson Batista sintetizou em verso no final do seu samba Chico
Brito: “Se o homem nasceu bom / e bom não se conservou / a culpa é da sociedade
que o transformou”. Não interessa se o espectador considera que a tese iluminista é correta
ou se acredita na lógica oposta, defendida pelo Dadinho de Cidade de Deus,
de que a vilania pode ser uma característica de nascença: o que diferencia os
dois filmes, mais do que a crença filosófica sobre as características do ser
humano, é o que pretendem com suas narrativas. Cidade de Deus se assume
como um espetáculo catártico, extremamente bem-construído dramaticamente, em
que ao final o vilão é punido, enquanto Tropa de Elite se organiza como
um filme-problema. O filme se coloca com uma questão imposta ao espectador, ao
invés de ser uma fábula apaziguante. É por isso, mais do que para organizar o
drama do seu personagem, que aparece a cartela explicativa neste início de filme:
para indicar à platéia que o filme pede para ser lido como uma análise social,
e não como um filme de ficção clássico e bem-acabado. Se acaso o caráter de Nascimento
fosse inato, nada haveria de incômodo em sua figura – seria um ser excepcional,
fosse ele considerado herói ou doente. No entanto, foi a sociedade que o moldou,
diz o letreiro. Logo, discuti-lo é discutir a sociedade. É este o objetivo central
de Tropa de Elite, ao invés de ser antes de tudo um filme de gênero como
foi Cidade de Deus.
Neste sentido, é bastante enriquecedora a leitura do texto de
Eduardo Valente
na Cinética, quando ele nos lembra da origem do filme como documentário. É curioso
que, tendo feito antes o filme Ônibus 174, um documentário com fortes
características de thriller melodramático, catártico ao extremo, José Padilha
faça agora um filme de ficção que se equilibra de modo ambíguo sobre o discurso
de seu personagem, como é comum aos documentários. Ambos os filmes se guiam
pela lógica de Rousseau para concluir que tanto o seqüestrador Sandro do Nascimento
quanto o policial Capitão Nascimento são frutos de uma sociedade que precisa
discutir as questões da exclusão social e do tráfico de drogas. Um espectador
pode permanecer convicto de que Sandro era mau de nascença como Dadinho – mas
o filme o conduz para uma discussão sobre a sociedade brasileira, uma vez que
procura compreender seus atos dentro de um contexto de exclusão social. Do
mesmo modo, qualquer espectador pode sair convicto de que Nascimento deveria
ser preso – no
entanto, o filme logo no início o avisa que o problema não reside em Nascimento,
mas no sistema que o criou e o mantém. É por isso que aos propósitos do filme é mais
interessante a narração de Nascimento do que a de Matias. Matias poderia ser
um personagem muito mais complexo do que de fato acaba sendo, como alguns indícios
da trama sugerem, seja pelo sentimento ambíguo sugerido pela firme amizade
com Neto (que, ao morrer, parece deixar o colega viúvo) e pelo completo desinteresse
pela jovem colega da PUC após uma noite de amor – isso insinua uma sexualidade
ambígua, algo que o filme sugere porém boicota, ao mostrar sua noite de amor
com a garota. No entanto, mais evidente fica na construção de Matias um outro
aspecto cujo desenvolvimento parece ter sido abortado: sua falta de vocação
para a vida de policial. Isto é somente insinuado pela sua tentativa de vida
estudantil e pelos comentários em off de Nascimento, quando diz que
Neto tinha coração
e Matias tinha cérebro – ou seja, o coração de Matias não pertencia originalmente à vida
como policial.
Seria um desenvolvimento dramático bastante mais aprofundado do que o filme acaba
por trazer: o narrador seria um rapaz que não queria ser policial, foi tragado
pela amizade e pelo destino, virou um policial criminoso e terminou o filme dando
um tiro na cara do espectador. No entanto, a narração de Nascimento põe o filme
na corda-bamba, sem definir o seu lado. Isto fica a cargo do espectador, que
deste modo se vê instado a discutir a origem do tráfico de drogas, o papel da
polícia e, enfim, as características da organização da sociedade brasileira.
Tropa de Elite, assim, torna-se um caso bastante interessante, estruturando-se
como cinema contemporâneo essencialmente político ao abrir mão de certos
bons-modos da gramática cinematográfica em nome de maior capacidade de
despertar reações no seu espectador, seja a favor ou contra o que assiste.
Não são
poucos os momentos cuja fragilidade dramática só se justifica pela intenção
narrativa do filme: são bastante precárias as encenações de todos os momentos
na ONG, assim como o desenvolvimento da trama que irá levar à morte de
Neto. Na ONG o teatralismo é explícito; já na decisão de Matias de entregar
em mãos os óculos do guri, seguida pela sua troca por
Neto, que mostra-se distraído ao chegar num lugar de evidente perigo, o
que se torna evidente é a
necessidade de fazer a história andar, fazer a trama chegar ao ponto intencionado,
sem qualquer apuro para justificar as movimentações necessárias para isso.
Do mesmo modo, tanto a cena já citada em que Matias, solitário, lança acusações à sua
turma, silenciando a todos, quanto a também já célebre cena da agressão à passeata
não se sustentam dentro de uma lógica dramática com base no realismo. Vistas
sob essa ótica, soariam constrangedoras, como às vezes soam constrangedoras
certas cenas excessivas de melodramas: por exemplo, basta pensar no caso
do filme Olga, em que do mesmo modo uma frase bastante dramática é dita
de modo “impactante” pela protagonista. Mas Matias, ao acusar sua turma
por serem “burguesinhos”, não se parece com Olga Benário gritando “Eu estou
grávida
de Luiz Carlos Prestes” – simplesmente porque o impacto é natural por conta
daquilo que ele afirma, uma acusação bastante polêmica, enquanto o drama
de Olga é narrativo, sem ressonância social para fora do filme.
Assim, a acusação de Matias sai do filme e será discutida pela platéia,
enquanto a de Olga permanece como uma tentativa de provocar chorumelas.
Como eu já disse no início deste texto, caso as acusações de Matias na
sala de aula e na passeata fossem seguidas por contestações a ele, a cena
seria mais verossímil, mas certamente teria um potencial de gerar polêmica
muito menor.
Assim, o que me parece notável é justamente este aspecto: entre o apuro dramático
que pode emocionar e a narrativa grosseira que irá incomodar, Tropa de Elite escolhe
em todos os momentos que sua narrativa siga o segundo caminho. É daí que tira
sua força. E não se pode dizer que o filme foi mal-sucedido em gerar uma discussão
intensa – ao contrário, obteve imenso sucesso na disposição de incomodar, gerar
discussões e se tornar um fenômeno (algo que, obviamente, poderá ajudá-lo em
uma carreira internacional, justificando suas evidentes precariedades narrativas
e sua relação fundamental com o contexto social brasileiro). Este acontecimento
não apenas torna evidente que um filme pode mexer profundamente com o imaginário
de uma população imensa, mas também que este imaginário tem disposições nem sempre
fiéis à cartilha da narrativa melodramática de tons realistas. Equilibrando-se
num discurso ambíguo para se tornar mais inquietante, Tropa de Elite nos
faz lembrar de um velho dito: se uma obra quebra as regras de uma boa narrativa
e, no entanto, é desta forma que consegue atingir seus objetivos, então a estratégia
foi correta e as pretensas regras precisam ser refeitas. Os bons modos do cinema
pretensamente “bem-feito” que se virem – em cima da corda bamba de sua ambigüidade
narrativa, Tropa de Elite, como diz a canção, é osso duro de roer.
Daniel
Caetano
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