E se Cidade de Deus traísse a mais forte e longeva tradição do cinema brasileiro?




E se Cidade de Deus traísse a mais forte e longeva tradição do cinema brasileiro? David Neves não parava de se assustar que ninguém falasse da tradição de simplicidade, de "preguiça", do denominador menos trabalhoso possível na realização de um filme nacional. Essa "preguiça", contudo, não é uma vontade de fazer-porco, mas antes uma certa concepção de mundo, uma certa vontade de banhar a película de realidade, de interferir o mínimo possível para que o mundo faça por si só o seu trabalho e a câmera consiga registrá-lo tal e qual. As citações se acavalam: "é a improvisação e as soluções a curto prazo a característica mais encontrada" (Sobre técnica no cinema brasileiro, Contracampo 39/40); "Em Nelson Pereira dos Santos fica mais ou menos estabelecido o que é linguagem padrão do cinema brasileiro", O cineasta brasileiro típico pouco medita, tem um processo mecânico de criação e sobretudo parece não ter eu interior. (Conclusão Estética, Contracampo 39/40); "De certa forma uma preguiça inicial o aproxima do problema", "O cinema direto no Brasil luta contra as maiores dificuldades a ponto de, tão entretido com elas não chegar sequer a teorizar sobre sua própria essência. O tema da preguiça que levantei com certa constância mais acima é importante para caracterizar um estado de espírito, uma inquietude e uma postura interrogativa a respeito de um novo e comunicativo veículo de informação." (A Descoberta da espontaneidade, Contracampo 39/40). A obsessão de David Neves com o problema pode espantar hoje, depois que passamos uma década inteira com um cinema brasileiro empolado, de produções caras (por vezes inexplicavelmente caras em relação ao público que conseguiram) e logística razoavelmente difícil. Todavia, o questionamento de David Neves, realizador e crítico, ainda é possível hoje, e com resultados a retirar ainda bastante curiosos.

A primeira conclusão é a de que, confrontando essas passagens de David Neves com a produção contemporânea brasileira, a simplicidade e a "preguiça" ainda parecem importar muito na decisão do filme para permanecerem mortas como conceito. Ao menos um cineasta brasileiro decisivo, Eduardo Coutinho, estabeleceu um método definitivo baseado na simplicidade, nessa preguiça positiva que é ter delineadas de forma absolutamente simples a produção e a filmagem de seus projetos. Mas com os outros também não é muito diferente: de Carlos Diegues, conhecido por sua pouca preocupação com os aspectos expressivos e com o estilo, até Carlos Reichenbach, que seria seu exato oposto no sentido da filmagem, passando pelos realizadores de filmes de grande orçamento (Sérgio Rezende, Paulo Thiago) e pelos realizadores de um cinema de natureza intimista (Tata Amaral, Walter Lima Jr.), nunca houve interesse em rebuscar a linguagem, em recorrer a figuras de linguagem parnasianas no processo de conceituação ou de realização dos filmes. O que existe é a forte concepção de clareza e praticidade: algo que pode ser filmado em um único plano não precisa ser filmado em dois, abandono de qualquer elemento expressivo que possa ser considerado rococó (quando esses elementos são colocados nos filmes, como a visita da mãe ao covil dos seqüestradores em Através da Janela ou nas paisagens brasileiras retrabalhadas via computador em Deus É Brasileiro, o grau de grotesco é constrangedor).

De certa forma, mesmo que lateralmente, com genialidades e competência, com talento e aplicabilidade diferenciadas, o cinema brasileiro, mesmo o atual, parece mesmo ser muito mais devedor do cinema de Nelson Pereira dos Santos do que, digamos, do cinema da Vera Cruz. Mesmo que impere hoje uma vontade de ser a segunda, o que se vê na tela não passa além de um primeiro malfeito (Como Nascem os Anjos, Central do Brasil), ou mesmo pessimamente feito (Mário, Lara)

Mas eis que em 2002 surge um filme bizarro: Cidade de Deus. Ele vem para chocar meio mundo com uma história quase épica, contada em ritmo dinâmico, esquizofrênico, do conjunto habitacional transformado numa das favelas mais perigosas do Rio de Janeiro. Como todos sabem, houve uma série de controvérsias e debates acerca de inúmeros aspectos do filme: estetização da miséria, cosmética da fome, interpretação dos atores, falta de ética em relação ao retrato das comunidades ou dos personagens citados, violência mostrada com gratuidade, tarantinização, etc. Mas e se o grande choque que a comunidade de críticos, cineastas e pesquisadores teve não foi majoritariamente com nenhum desses problemas? E se houve um outro fator contingencial, que diz mais respeito ao lugar que Cidade de Deus ocupa dentro do cinema brasileiro, às suas referências estéticas, à sua filiação artística?

Talvez o maior choque em Cidade de Deus é que é um filme que definitivamente não aproveita nenhuma influência do cinema brasileiro. É talvez o primeiro filme brasileiro de envergadura que não quer se arrogar nenhum lugar na tradição (a primeira coisa que fizeram tanto Walter Salles quanto a Conspiração, logo que foram notados como momentos importantes para o cinema brasileiro, foi começar a citar nomes de realizadores nacionais). Fernando Meirelles, por mais contraditórias que tenham sido suas colocações nas inúmeras publicações que o entrevistaram, jamais se considerou um filho do cinema brasileiro, jamais acreditou que seu filme dialogava esteticamente com qualquer filme já produzido no Brasil. Buscar a fonte do diálogo (cinema americano cínico, blablablá) é muito pouco interessante diante daquilo que vemos diante de nós. Num cinema completamente repleto de nepotismo e de aves raras que levam os filhos debaixo de sua asa – e aqueles que estão próximos e não têm pais tratam logo de ir para a asinha de alguém – Fernando Meirelles é o primeiro cineasta brasileiro em anos a dar de vista a se considerar um realizador órfão. Mais órfão esteticamente – no sentido que seu filme não trava nenhuma linha de filiação dentro do cinema brasileiro – do que na política de produção, já que na produção de Cidade de Deus houve acordos com as "famílias" (Videofilmes, Globo).

E essa orfandade não deixou de ser notada. Tanto que a maior discussão que envolveu o filme – cosmética da fome contra estética da fome – foi aplicada tendo em mente como oposição o monumento-mór do cinema brasileiro ao qual, segundo uma certa concepção, todos devem pagar tributo: Glauber Rocha. Curiosamente, Cidade de Deus se presta a essa discussão muito menos do que filmes que efetivamente dão uma imagem muito mais redentora da pobreza, como Central do Brasil, Abril Despedaçado, os filmes de Murilo Salles, Eu Tu Eles (em menor grau)... Se todos esses podiam se ancorar de alguma forma na história do cinema brasileiro para se defenderem (Walter Salles nunca deixou de mencionar que era tributário de Nelson Pereira), Fernando Meirelles não pôde. E nem quis, ao que parece. Sem teto, ficou fácil o ataque aéreo.

Cidade de Deus ainda não foi avaliado, muito menos analisado, como aquilo que é no atual momento do cinema brasileiro: um filme-OVNI, imprevisível e inesperado tanto em sua estética rococó, em sua montagem fragmentada, quanto em sua recepção, grande sucesso de bilheteria dos últimos 20 anos. Meirelles inverte a equação: para que filmar em apenas um plano o que quinze podem fazer melhor, dando mais sensação de vertigem e cativando mais meu espectador? Naturalmente, isso não desobriga o filme de todas as duras críticas que levou (e muitas das quais o redator destas linhas corrobora, como a tipificação, por exemplo), mas é impossível de se perguntar: fosse o filme tão pouco herdeiro do cinema brasileiro e tão bem sucedido esteticamente, haveria tamanho bafafá para encontrar as mínimas inconsistências éticas e estéticas no filme?

É muito mais fácil, contudo, atacar um órfão. E, sem a mínima intenção de vitimizar o cineasta – publicitário de carreira mais do que bem-sucedida, ele sinceramente é a última pessoa da face da terra que caberia bem no quesito da vitimização (outra característica rara no cineasta brasileiro) –, cabe entretando ressaltar aqui a proveniência estética de Fernando Meirelles. E prospectar seu futuro dentro do cinema brasileiro. Será ele uma espécie de Luc Besson do cinema brasileiro? Se sim, mesmo que realize filmes que vão do "bom, mas problemático" aos irregulares ou aos francamente sem talento, a simples figura do realizador periférico que dentro de seu próprio país tenta realizar um sistema que emula Hollywood (com dinheiro e iniciativa próprios, sem incentivos do estado, diga-se), mas dentro de si carrega um sonho de cinema nacional, mesmo diferente do cinema nacional que aí está (e que é também louvável, importante, bonito, etc.), Fernando Meirelles já é, em termos de produção, a figura mais interessante do cinema brasileiro surgida em anos (talvez desde Luiz Carlos Barreto). A única, ao menos, que tenta fundar seu próprio cinema fora dos mecanismos e da política costumeiros (Lei do Audiovisual, reuniões com poderosos) e, talvez o mais decisivo, que tenta estabelecer outras bases para o audiovisual brasileiro, fora da televisão ou da regra da simplicidade (que por vezes pode ser um estorvo). Por hoje, Fernando Meirelles é um enigma. Cabe ao futuro, pois, desvendá-lo.

Ruy Gardnier