PARALELAS E TRANSVERSAIS
Acrosse the Universe, de Julie Taymor
A Vida dos Outros, de Florian Henckel von Donnersmarck

Across the Universe, EUA, 2007
Das Leben der Anderen, Alemanha, 2006


A Vida dos Outros
e Across the Universe são muito diferentes um do outro. O primeiro é um filme, digamos, político, e é rodado de maneira consideravelmente clássica. O segundo é um musical, dotado de todos os estilismos que lhe são próprios. Essa diferença já os coloca em campos consideravelmente distantes. No mínimo pela relação de cada um deles com o realismo. O filme de Florian Henckel von Donnersmarck instaura uma relação bastante direta, mimética quase, com uma série de acontecimentos que descreve; o de Julie Taymor obviamente traz uma mecânica do fantasioso e do espetacular, em uma cisão com a mimesis. Sob esse prisma, são dois filmes até antagônicos em grande medida.

Apesar disso, cada um à sua maneira, A Vida dos Outros e Across the Universe são filmes sobre o mesmo tema, o passado recente. Um passado relativamente recente de conturbação política, sobretudo. O primeiro retoma o período pré-queda do muro na Alemanha Oriental; o segundo revê os Estados Unidos do começo da Guerra do Vietnã e da explosão da revolução sexual. Não apenas por conta das peculiaridades históricas de cada um desses contextos, mas também e, sobretudo, devido à abordagem estética de seus diretores, permanecem filmes aparentemente muito distintos.

Ao mesmo tempo, entretanto, justamente ao se debruçarem sobre esses passados, acabam por fazê-lo por vias muito aproximadas. Particularmente por seguir um percurso bastante curioso, que proponho aqui chamar de utopização estética da anti-utopia. Antes de se debruçar sobre a definição dessa mecânica, é preciso ter em mente um detalhe característico: ambos os trabalhos são filmes de gênero, de gêneros dotados de regras bastante restritivas. Ora, Across the Universe, como já disse, é um musical, o que dispensa maiores explicações. Já A Vida dos Outros é, visto de perto, um thriller, um filme de suspense, com suas tensões levadas ao limite. Ambos, entretanto, passam por uma operação bastante peculiar de exacerbação das possibilidades dos mecanismos desses gêneros. Ambos se permitem mergulhos utilitaristas nos clichês típicos de cada um de seus universos. E a justificativa para isso vem justamente da utilização do passado idealizado como tabula rasa estética.

Vejamos: uma vez que se trata do passado, por mais recente que seja, ele se torna um campo isento e, ao mesmo tempo, isenta a atualidade, sendo dela distante e não permitindo conexões muito elaboradas. Ao mesmo tempo, uma vez que trata-se de um passado conflituoso, permite a utilização de elementos dramatúrgicos e imagéticos mais claramente definidos e menos sutis. Se é passado, pode-se criar uma tragédia mais radical, um conjunto de antagonismos mais poderoso e mais significativo, já que é uma anti-utopia.

Ao mesmo tempo, essa anti-utopia é ela mesma uma utopia. Duplamente. Estética, porque justamente permite que se criem dramas mais “universais” – e esta é a operação-chave aqui – e histórica, uma vez que os conflitos produzidos ali são conflitos heróicos, dotados de grandes dimensões míticas. Filmado de determinada maneira, qualquer carrasco nazista assume facilmente a dimensão de Hidra. Igualmente a Guerra do Vietnã vira Guerra de Tróia e a Queda do Muro de Berlim, o episódio das Trombetas de Jericó.

Assim, A Vida dos Outros é calcado na construção do personagem idealizado do outro. O espião Wiesler idealiza o dramaturgo que investiga, assim como sua namorada. Na verdade, o filme parte de um mecanismo padronizado – que não é nem mesmo um clichê de gênero, é mais um clichê mesmo e ponto: o do algoz que se afeiçoa pela vítima. O cinema é povoado dele por todos os lados. É cheio de assassinos que passam a amar a mulher que deveriam executar, de carcereiros que se afeiçoam por presos, de síndromes de Estocolmo entre seqüestrador e seqüestrado. Temos, aqui, entretanto, Wiesler, o burocrata espião, mais que isso, o burocrata da espionagem, um funcionário correto, quase um Eichmann, um puro operador da observância estrita. Ele segue regras, ele não sente, ele não ama. Ele simplesmente serve ao Estado. Não será muito diferente, por exemplo, da protagonista de Olga (2004, Jaime Monjardim), de alguns personagens de Ken Loach ou ainda do Ernesto Guevara de Diários de Motocicleta (2004, Walter Salles). Ele terá o mesmo conflito entre vida e ação pública, entre humanidade e política. No filme de Von Donnersmarck, isso produzirá simplificações como o contraponto – feito não pela montagem, mas por nós mesmos, provocados por esta – entre a primeira aparição do especialista, na sala de aula, e suas ações diante do poeta e de sua namorada, sobretudo ao vermos a cena em que ele se emociona ao ouvir música. É um homem frio, congelado para a vida pela dedicação ao Estado, mas que tem um no-fundo-no-fundo (como todos terão, sobretudo os hipócritas). É o que se manifesta justamente em outra cena bastante simplista, a da prostituta.

A anti-utopia de A Vida dos Outros é o reino de falta de privacidade e de invasão das vidas domésticas na Cortina de Ferro. A Alemanha Oriental surge aqui como um lugar em que se constitui uma oposição: entre os homens que acreditam na liberdade possível e os que lutam contra a liberdade dos outros. Mas, nota: lutam porque ou já possuem liberdade (e fazem parte de uma plutocracia burocrática) ou porque não têm acesso a ela (como Wiesler) por alguma patologia e, no fundo, a invejam.

A Vida dos Outros, aliás, é um filme de cartilha. É em grande medida o filme-que-ganha-o-Oscar-de-filme-estrangeiro nos últimos anos1: fala sobre peculiaridades locais de um país que seja o outro dos Estados Unidos; segue uma dramaturgia simples e direta, geralmente um modelo de roteiro centrado em um plotismo (uma trama que chame a atenção para sua peculiaridade mais do que para suas possibilidades dramatúrgicas); obedece a regras de estrutura e mise-en-scène tradicionalistas; traz uma mensagem edificante e, se possível, uma defesa de princípios caros aos americanos, o que possa comprovar a universalidade desses mesmos princípios, caracterizando o filme como um “libelo universal” – não se poderá deixar de desconfiar, por exemplo, de estratégias de produção como a escolha de uma estrela alemã de projeção internacional como Martina Gedeck para o papel de mulher observada. Em geral, um filme que ganha o Oscar de “filme em língua não-inglesa” é um filme que pode ganhar um remake nos EUA, como, aliás, corre boato, ocorrerá justamente com A Vida dos Outros.

Por sua vez, em Across the Universe vemos o jovem Jude ir para a América em busca de uma utopia ao mesmo tempo de origem e de futuro. Ele quer conhecer o pai – do qual é filho bastardo – e quer começar uma vida nova. O uso da música dos Beatles e a construção do filme a partir dela mereceria um outro artigo. Por aqui, direi apenas que o esforço do roteiro é para transformar seus personagens em comentadores. Em geral o que se passa nas canções não são diálogos – salvo em algumas espertas utilizações, como em All My Loving. As músicas, nesse sentido, são mais sínteses, formas de criar planos simbólicos em torno das ações, ou para que os homens se manifestem. Nesse sentido, o filme também segue um padrão e traz personagens padrão: Lucy e Jude são o jovem casal cujo amor inocente corre risco diante da realidade de um mundo em ruptura. Os dois não são tão diferentes de, vamos lá, Jennifer e Oliver, de Love Story – Uma História de Amor (1970, Arthur Hiller) e nem de Maria Lúcia e João Alfredo de Anos Rebeldes (1992, Gilberto Braga/Denis Carvalho).

A anti-utopia do filme, claro, é a própria geração que queria mudar o mundo nos anos 60. E é a própria ambiência de transformação e conflito daquele momento. E esse mundo também divide os homens em dois grupos: os que lutam e os que se acomodam, os que experimentam e os que ficam no mesmo lugar. Temos, então, um musical, construído a partir de uma obra sonora pré-concebida, a saber, o cancioneiro dos Beatles. E nesse caso, o passado idealizado é não apenas um tempo, mas também um lugar. O filme opõe claramente um Reino Unido chuvoso, sombrio, e povoado por uma vida de trabalho industrial e mal-pago, a uma América ensolarada e aberta a novos horizontes. O que não deixa de ser um pouco um jogo com a própria carreira dos Beatles – que viajaram aos Estados Unidos para sua definitiva consagração. Mais que isso, a própria América antiga, de vida caipira de high school e de bailinhos de iê-iê-iê vira um outro do tempo do filme, já que é a Nova York inventiva e psicodélica o espaço de celebração estética.

Em ambos os casos, esse passado é o espaço ideal para a invenção de heróis, ou seja, personagens sem ambigüidades. Wiesler é o homem-que-deixou-de-ser-humano, em oposição à humanidade vigiada do artista e de sua amada. Lucy é a jovem que perdeu seu namorado de infância na guerra e cujo irmão é obrigado a se alistar, a jovem que enxerga a esperança no jovem criativo que é Jude. O que conduz para um ponto de conexão central entre os dois filmes: ambos são habitados por rostos, por atitudes de contemplação do rosto do outro. Para isso, para começar, a estratégia de Julie Taymor é efetiva: ela escolhe um casal impressionante belo. Não há plano com qualquer um dos dois na tela que não seja dominado justamente por seus rostos. Domínio sobre o olhar de fora e domínio sobre o olhar de dentro. Jude mesmo fica impressionado com “os dentes perfeitos” de Lucy – uma clara alusão aos tradicionais dentes feios dos britânicos. Ele também pede para que ela chegue mais perto para “pegar seus olhos certinho”. Mas é sobretudo nos olhares perdidos de ambos – e de outros personagens, como a jovem lésbica Prudence, que nutre amores platônicos por mulheres que ela sempre olha de longe – que se fazem as emoções do filme.

Igualmente, quando vemos Dreyman, o poeta e autor teatral, em geral o vemos a contemplar, a olhar para o nada. O mesmo se passa com sua companheira Christa-Maria. Mas é claro que isso será mais determinante com Wiesler. E é uma das forças maiores do trabalho de Ulrich Mühe como o espião. Seus principais planos são aqueles nos quais os olhos têm maior destaque, são aqueles em que ele olha sem olhar, que ouve um som e enxerga algo que não vemos, mas que aparece expressado em suas pupilas.

Esses olhares, entretanto, não são apenas puros recursos visuais. Eles são claramente uma operação simbólica. Todos os personagens aqui são de alguma forma nostálgicos. Nostalgia do futuro, dir-se-á com facilidade. Esses personagens sentem falta de algo. Algo que esse mundo anti-utópico não lhes fornece e que só nós, que sabemos como é nosso mundo, podemos conhecer. E esse é o princípio que guia tanto Julie Taymor quanto Florian Henckel von Donnersmarck. Nesse quesito, sim, por caminhos peculiares. Para a diretora, a aposta é na construção de uma certa estética gráfica, em alguns momentos de hiper-realismo fantástico – como no plano de abertura, em que o rosto de Jude é dominado pelo oceano ou quando o casal se beija embaixo d’água –, em outros momentos canibalizando o tom fantasioso dos próprios Beatles, como que para mostrar fidelidade à obra dos garotos de Yellow Submarine (1968, George Dunning) – claramente mimetizado na seqüência da visita ao guru Mr. Kite.

A estratégia de Von Donnersmarck, claro, é outra. A dele está ligada aos elementos típicos do thriller, como a música de Gabriel Yared, onipresente sobretudo no tema recorrente de tensão; ou na edição típica do gênero, alongando seqüências em que rupturas podem colocar tudo a perder para os planos dos personagens. Toda essa mecânica reafirma os personagens como heróis e, mais, seu tempo, como uma impossibilidade. Visualmente, a operação de construção dessa nostalgia está toda nos contraplanos. Wiesler está em uma salinha espionando, o casal está em sua casa, fazendo amor, conversando, conspirando, sendo livre. Uma situação não é a outra. O plano é diferente, a luz é diferente, o mundo é diferente. Wiesler é o verdadeiro prisioneiro.

Essa apropriação idealizada do passado não poderia deixar de passar por uma idéia de reconstituição de época. Ela é claramente central para uma estratégia de utopização estética do passado anti-utópico. Aqui também as estratégias são diferentes. A maneira como o diretor alemão produz seu passado é pela reconstituição clássica via arquitetura e figurino. O mundo dele é enviado ao passado pelo entorno dos homens. Já a diretora americana prefere trabalhar com o intervencionismo. Sim, os figurinos nos mostram que estamos nos anos60. Mas é mais importante uma atitude dos atores, o fato de que eles interferem no cenário. A seqüência de A Little Help From My Friends, por exemplo, é um bom exemplo disso. Nela, os amigos da universidade são apresentados como uma fraternidade semelhante à que as comunidades hippies já apresentavam. Os laços de irmandade são produzidos pela atitude (musical) dos personagens. Igualmente, a forma como os roqueiros do filme – talvez os personagens mais clichê, até porque representam figuras reais, sobretudo a Janis Joplin reinventada em Sadie – se posicionam é um indicador de época.

Não deixa de ser curioso, aliás, que ambos os filmes sejam construídos rumando para a consolidação de uma obra que lhe sirva de síntese e que é apresentada em triunfo ao final. Em Across the Universe será a logomarca de Jude, o morango de sangue que servirá de síntese para a idéia chave de Strawberry Fields Forever e que mostrará a Lucy que, sim, seu amado quer e pode mudar o mundo. Em A Vida dos Outros será o livro de Dreyman, a Sonata para um Homem Bom, publicação que mostrará a Wiesler que, afinal, sua luta solitária e anônima não foi em vão. Em ambos os casos, o que está em jogo é justamente a idéia de um passado idealizado que valeu a pena, de uma narração que se fez efetiva. Nos dois casos, entretanto, o passado não é uma forma de se fazer história, mas de servir de sustentação retórica para um conjunto de efeitos dramáticos. O passado, para os dois diretores, não é um mundo a ser entendido, é uma forma apenas de produzir emoções no presente.


Alexandre Werneck

1. Vejamos uma lista dos vencedores do Oscar de filme estrangeiro nos últimos 10 anos:
2007) A vida dos outros
2006) Tsotsi – Infância Roubada
2005) Mar Adentro
2004) As invasões bárbaras
2003) Nenhum lugar na África
2002) Terra de Ninguém
2001) O Tigre e o Dragão
2000) Tudo sobre minha Mãe
1989) A Vida é Bela
1988) Caráter
Vários dos elementos que apontei acima são comuns a quase todos esses filmes, sobretudo a certa idéia da “trama universal”, ligada a uma luta pela liberdade, pela paz, pela vida, pelos direitos humanos. Igualmente, uma certa proximidade de um roteirismo e de um plotismo à americana.

 








O passado recente e conturbado serve como utopia estética para A Vida dos Outros (no alto) e Across the Universe.




Uma das principais estratégias dos filmes é se fiar nos olhares perdidos de seus personagens.



Enquanto Julie Taymor aposta numa visualidade fantasiosa, Von Donnersmarck trabalha com um "voyerismo da liberdade dos outros."