Um jornalista
de uns cinqüenta anos tem de entrevistar e conseguir
um furo de uma bela e jovem atriz. Durante pouco menos
de uma hora e meia, os dois conversam, trocam ofensas
e carícias, revelações e mentiras e, no fim, descobrimos
que tudo não passa de um grande jogo de poder, no qual
um ganha e o outro, necessariamente, perde. Centrado
unicamente no diálogo e nas ações dos dois, passado
quase inteiramente em uma única locação – o grande galpão
onde a atriz vive -, narrado em tempo “real” e com uma
câmera que parece destinada a revelar cada movimento
dos personagens, não resta dúvida: Entrevista é um filme de atores, sobretudo. Mas, para além dessa conclusão
óbvia, a frase revela tanto o “modo de operação” do
filme como a profunda consciência desse modo, transformando-o
inclusive em seu tema principal. Entrevista
é um filme de atores porque, afinal, é um filme sobre
o poder da atuação.
Desde a construção do perfil dos personagens principais,
não é de interesse do filme de Steve
Buscemi - ele mesmo, naturalmente,
ator e protagonista de Entrevista – que essa relação de poderes e pretensas revelações seja
construída de forma subentendida,
ou mesmo sutil. Ele é um sério jornalista de guerra;
ela, uma dessas milhões de
atrizes de segundo escalão que alcançaram a fama pela
beleza. Possivelmente, não existe escolha mais óbvia
de opostos. No percurso do filme, este lugar-comum inicial
percorre um longo caminho até chegar a outro lugar-comum,
tão óbvio quanto: no fundo, eles são iguais. Mas o caminho
entre os dois lugares não deixa de ter uma boa quantidade
de interesse, e revela que na construção de cada personagem
existe mais consciência dessa obviedade do que suas
exposições iniciais pareciam insinuar.
Pois esta busca – óbvia – de igualdades é o que a narrativa
parece forçar do início ao fim, e, ainda assim, os personagens,
até os minutos finais, rechaçam qualquer tentativa simplista.
De início, é o sexo que parece aproximá-los, o que resolveria
toda a questão muito facilmente. Afinal, opostos se
atraem. Mas os personagens vividos por Buscemi
e Sienna Miller nunca ultrapassam um estágio de tensão sexual,
no qual seus corpos – principalmente o dela, por razões
elementares – são também instrumentos de poder e submissão,
usados de forma bastante consciente pelos dois.
Já que o sexo não os une, por que não resolver a questão,
então, com o psicologismo barato? Ele perdeu a filha,
ela perdeu o pai, e os dois, naturalmente, poderão assumir
essas funções, um em relação ao outro. Mas em Entrevista não existe educação sentimental
possível, nem aprendizado. Ele tem de conseguir um furo,
ela não pode deixar isso acontecer. E é por isso que
cada expressão de “pai” ou “filha” é carregada de um
tom jocoso, sádico, como se essas afirmações fossem,
no fundo, grandes ofensas. São opostos, afinal, por
que deveriam substituir os entes ausentes?
E, se o psicologismo mais raso não funciona, o que poderá
uni-los? Talvez grandes traumas, e a certeza de que
o sofrimento de cada um poderá tornar-se um sentimento
conjunto. Ela sofre de câncer e tem um namorado que
não ama; ele é um bêbado mentiroso que deixou, propositalmente,
sua mulher morrer. Mas os traumas não bastam para conjugar
os sentimentos e, se existe algo que realmente os une,
e que justifica esse percurso de expectativas falsas
descrito acima, é uma só coisa: a atuação como modo
de trabalho e de vida. Afinal, ele é um jornalista sério,
e, portanto, tem seu ganha-pão inventando e roubando
histórias. Ela é uma atriz de sucesso, e, portanto,
sua vida íntima tem de se ser sempre algo secreto. Não
por acaso, os dois têm em comum, desde o início, o fato
de usarem um nome falso, de trabalho, e, por mais que
o filme procure, nunca conseguirá ir além desse nome.
Ele, Pierre, ela, Katya, e nada mais.
Este percurso frustrante, onde todas as soluções possíveis
são tentadas e depois abolidas, garante a Entrevista
um especial interesse. O filme acaba e não podemos dizer
nada sobre a vida de nenhum dos personagens, ainda que
tenhamos acompanhado os dois por quase uma hora e meia.
Não apenas sobre suas vidas, mas sobre suas personalidades,
seus sentimentos e mesmo seus gestos mais ordinários.
Pierre e Katya não interpretam
apenas para o outro, condição que daria ao filme um
papel de espectador onisciente, mas principalmente para
a câmera.
Disposto a descobrir a verdade por trás de cada nova
declaração, o filme foge de uma decupagem mais tradicional,
procurando em lugares inesperados aquilo que poderia
trazer alguma solução, movimentando a câmera em reação
aos gestos de seus personagens, cortando sempre que
parece cobrir um novo fato, tentando encontrar alguma
revelação sobre aqueles corpos permanentemente desconhecidos.
Mas estamos diante de dois personagens que ganham a
vida exercendo a arte da auto-representação, e nem mesmo
a própria câmera consegue superar esta barreira. Não
são personagens fluidos, nem mesmo fugitivos, mas impenetráveis.
Neste tour-de-force dramático, os atores parecem sempre estar no
limite entre a confissão mais verdadeira, enfim alcançada,
e a atuação mais cínica.
Não por acaso, existe em Entrevista
um repórter, uma jornalista e uma câmera digital, e
esta câmera não está ali apenas para gravar o encontro.
Afinal, ao longo dos anos, a câmera digital acostumou-se
a transmitir a idéia de um instrumento de confissão,
de verdade, de documentação. Passemos por Sexo,
Mentiras e Videotape,
Eu, Você e Todos Nós e parte considerável do cinema independente americano,
no qual personagens encontram a si mesmos a partir de
suas representações digitalizadas, e poderíamos pensar
que Entrevista,
como bom exemplar desse cinema, seguiria o mesmo caminho.
Mas se não há verdade possível na vida, também não há
na câmera. Apontada como arma por seus personagens nos
momentos mais importantes da narrativa – uma câmera
digital equivale a exigir a verdade, eles parecem dizer
-, ela também se transforma em um instrumento de representação
e controle. Com destaque, a seqüência em que Buscemi
confessa seus pecados, enquanto a televisão, em tempo
real, transmite seu depoimento. Confissão, talvez, mas
principalmente atuação. O período em que uma Mini-Dv
equivalia à liberação do homem acabou, se é que um dia
ele dia existiu. Instrumento de controle, como todos
os outros.
E , se não podemos afirmar realmente que, depois de
quase uma hora e meia, aqueles personagens são totais
desconhecidos, é porque esta representação de si mesmo
não deixa de transformá-los em outras pessoas. Ora,
o jornalista e a atriz são,
de certa forma, aquilo que fingem ser. É por isso que
as confissões verdadeiras e as mentirosas não podem
ser distinguidas. Os dois passam por um processo de
auto-representação diária tão forte que são, também,
o ser auto-representado. Mentir tão bem que isso se
transforme em uma verdade. Acreditar tão pouco na verdade
que ela vire uma mentira. O filme ancora-se nessas duas
operações, e a graça é nunca sabermos quando ele faz
uma e quando faz outra, talvez porque as duas, no fundo,
sejam as mesmas.
Mas Entrevista
não chega a ser um grande filme, possivelmente porque
se encontra um tanto soterrado por essas questões. Apesar
das boas atuações, essa relação de controle entre os
dois sempre parece um tanto forçada na tela, como se
aquilo que o filme quisesse discutir estivesse além
da capacidade dele de criar um pano de fundo e uma narrativa perfeitamente críveis para essa discussão. Neste
abismo entre proposta e resultado, os lugares-comuns
às vezes perdem seu tom de crítica e acabam transformando-se
em facilidades, as reviravoltas viram simples brincadeiras
narrativas e o distanciamento faz com que o interesse
do espectador, aos poucos, vá diminuindo. Uma pena,
mas os méritos de Entrevista afastam o filme da nulidade
descompromissada que, às vezes, ele parece querer se
colocar.
Leonardo Levis
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