entrevista
Steve Buscemi, Interview, EUA, 2007

Um jornalista de uns cinqüenta anos tem de entrevistar e conseguir um furo de uma bela e jovem atriz. Durante pouco menos de uma hora e meia, os dois conversam, trocam ofensas e carícias, revelações e mentiras e, no fim, descobrimos que tudo não passa de um grande jogo de poder, no qual um ganha e o outro, necessariamente, perde. Centrado unicamente no diálogo e nas ações dos dois, passado quase inteiramente em uma única locação – o grande galpão onde a atriz vive -, narrado em tempo “real” e com uma câmera que parece destinada a revelar cada movimento dos personagens, não resta dúvida: Entrevista é um filme de atores, sobretudo. Mas, para além dessa conclusão óbvia, a frase revela tanto o “modo de operação” do filme como a profunda consciência desse modo, transformando-o inclusive em seu tema principal. Entrevista é um filme de atores porque, afinal, é um filme sobre o poder da atuação.

Desde a construção do perfil dos personagens principais, não é de interesse do filme de Steve Buscemi - ele mesmo, naturalmente, ator e protagonista de Entrevista – que essa relação de poderes e pretensas revelações seja construída de forma subentendida, ou mesmo sutil. Ele é um sério jornalista de guerra; ela, uma dessas milhões de atrizes de segundo escalão que alcançaram a fama pela beleza. Possivelmente, não existe escolha mais óbvia de opostos. No percurso do filme, este lugar-comum inicial percorre um longo caminho até chegar a outro lugar-comum, tão óbvio quanto: no fundo, eles são iguais. Mas o caminho entre os dois lugares não deixa de ter uma boa quantidade de interesse, e revela que na construção de cada personagem existe mais consciência dessa obviedade do que suas exposições iniciais pareciam insinuar.

Pois esta busca – óbvia – de igualdades é o que a narrativa parece forçar do início ao fim, e, ainda assim, os personagens, até os minutos finais, rechaçam qualquer tentativa simplista. De início, é o sexo que parece aproximá-los, o que resolveria toda a questão muito facilmente. Afinal, opostos se atraem. Mas os personagens vividos por Buscemi e Sienna Miller nunca ultrapassam um estágio de tensão sexual, no qual seus corpos – principalmente o dela, por razões elementares – são também instrumentos de poder e submissão, usados de forma bastante consciente pelos dois.

Já que o sexo não os une, por que não resolver a questão, então, com o psicologismo barato? Ele perdeu a filha, ela perdeu o pai, e os dois, naturalmente, poderão assumir essas funções, um em relação ao outro. Mas em Entrevista não existe educação sentimental possível, nem aprendizado. Ele tem de conseguir um furo, ela não pode deixar isso acontecer. E é por isso que cada expressão de “pai” ou “filha” é carregada de um tom jocoso, sádico, como se essas afirmações fossem, no fundo, grandes ofensas. São opostos, afinal, por que deveriam substituir os entes ausentes?

E, se o psicologismo mais raso não funciona, o que poderá uni-los? Talvez grandes traumas, e a certeza de que o sofrimento de cada um poderá tornar-se um sentimento conjunto. Ela sofre de câncer e tem um namorado que não ama; ele é um bêbado mentiroso que deixou, propositalmente, sua mulher morrer. Mas os traumas não bastam para conjugar os sentimentos e, se existe algo que realmente os une, e que justifica esse percurso de expectativas falsas descrito acima, é uma só coisa: a atuação como modo de trabalho e de vida. Afinal, ele é um jornalista sério, e, portanto, tem seu ganha-pão inventando e roubando histórias. Ela é uma atriz de sucesso, e, portanto, sua vida íntima tem de se ser sempre algo secreto. Não por acaso, os dois têm em comum, desde o início, o fato de usarem um nome falso, de trabalho, e, por mais que o filme procure, nunca conseguirá ir além desse nome. Ele, Pierre, ela, Katya, e nada mais.

Este percurso frustrante, onde todas as soluções possíveis são tentadas e depois abolidas, garante a Entrevista um especial interesse. O filme acaba e não podemos dizer nada sobre a vida de nenhum dos personagens, ainda que tenhamos acompanhado os dois por quase uma hora e meia. Não apenas sobre suas vidas, mas sobre suas personalidades, seus sentimentos e mesmo seus gestos mais ordinários. Pierre e Katya não interpretam apenas para o outro, condição que daria ao filme um papel de espectador onisciente, mas principalmente para a câmera.

Disposto a descobrir a verdade por trás de cada nova declaração, o filme foge de uma decupagem mais tradicional, procurando em lugares inesperados aquilo que poderia trazer alguma solução, movimentando a câmera em reação aos gestos de seus personagens, cortando sempre que parece cobrir um novo fato, tentando encontrar alguma revelação sobre aqueles corpos permanentemente desconhecidos. Mas estamos diante de dois personagens que ganham a vida exercendo a arte da auto-representação, e nem mesmo a própria câmera consegue superar esta barreira. Não são personagens fluidos, nem mesmo fugitivos, mas impenetráveis. Neste tour-de-force dramático, os atores parecem sempre estar no limite entre a confissão mais verdadeira, enfim alcançada, e a atuação mais cínica.

Não por acaso, existe em Entrevista um repórter, uma jornalista e uma câmera digital, e esta câmera não está ali apenas para gravar o encontro. Afinal, ao longo dos anos, a câmera digital acostumou-se a transmitir a idéia de um instrumento de confissão, de verdade, de documentação. Passemos por Sexo, Mentiras e Videotape, Eu, Você e Todos Nós e parte considerável do cinema independente americano, no qual personagens encontram a si mesmos a partir de suas representações digitalizadas, e poderíamos pensar que Entrevista, como bom exemplar desse cinema, seguiria o mesmo caminho. Mas se não há verdade possível na vida, também não há na câmera. Apontada como arma por seus personagens nos momentos mais importantes da narrativa – uma câmera digital equivale a exigir a verdade, eles parecem dizer -, ela também se transforma em um instrumento de representação e controle. Com destaque, a seqüência em que Buscemi confessa seus pecados, enquanto a televisão, em tempo real, transmite seu depoimento. Confissão, talvez, mas principalmente atuação. O período em que uma Mini-Dv equivalia à liberação do homem acabou, se é que um dia ele dia existiu. Instrumento de controle, como todos os outros.

E , se não podemos afirmar realmente que, depois de quase uma hora e meia, aqueles personagens são totais desconhecidos, é porque esta representação de si mesmo não deixa de transformá-los em outras pessoas. Ora, o jornalista e a atriz são, de certa forma, aquilo que fingem ser. É por isso que as confissões verdadeiras e as mentirosas não podem ser distinguidas. Os dois passam por um processo de auto-representação diária tão forte que são, também, o ser auto-representado. Mentir tão bem que isso se transforme em uma verdade. Acreditar tão pouco na verdade que ela vire uma mentira. O filme ancora-se nessas duas operações, e a graça é nunca sabermos quando ele faz uma e quando faz outra, talvez porque as duas, no fundo, sejam as mesmas.

Mas Entrevista não chega a ser um grande filme, possivelmente porque se encontra um tanto soterrado por essas questões. Apesar das boas atuações, essa relação de controle entre os dois sempre parece um tanto forçada na tela, como se aquilo que o filme quisesse discutir estivesse além da capacidade dele de criar um pano de fundo e uma narrativa perfeitamente críveis para essa discussão. Neste abismo entre proposta e resultado, os lugares-comuns às vezes perdem seu tom de crítica e acabam transformando-se em facilidades, as reviravoltas viram simples brincadeiras narrativas e o distanciamento faz com que o interesse do espectador, aos poucos, vá diminuindo. Uma pena, mas os méritos de Entrevista afastam o filme da nulidade descompromissada que, às vezes, ele parece querer se colocar.

Leonardo Levis

 

 








Katya aponta a câmera-arma para nós. No entanto, a confissão é apenas outra forma de atuação.