Talvez
seja uma estratégia um tanto maliciosa encarar
o filme mais pela repercussão e pelas premiações
que tem em festivais do que por ele mesmo. Ao mesmo
tempo, é meio inevitável observar um laço
problemático que une um ao outro, ou que até
cria uma determinação direta de um a partir
do outro. Porque é uma constante de trabalho,
tão verificável quanto os filmes de "olhar
humano" sobre pessoas desamparadas, geralmente crianças,
geralmente em períodos de guerra, abocanham oscars
estrangeiros. Assim, é impressionante como filmes
que modulam sua intriga de forma a afrontar um grande
tema, construídos com uma estrutura formal suficientemente
visível para não ser confundido com os
filmes convencionais mas também suficientemente
simplória para ser compreendida mesmo por pessoas
com interesse reduzidíssimo por questões
artísticas, costumam abocanhar fatias relativamente
grandes das partilhas de prêmios em grandes festivais.
Exemplo mais recente: 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias,
segundo longa-metragem do diretor romeno Cristian Mungiu,
que vem de consquistar a Palma de Ouro em Cannes.
Inicialmente vemos a câmera nervosa que acompanha
a situação, meio esbaforida, meio tateando
pra fazer sentido em uma situação que
ela pega já começada. Ecos aí dos
irmãos Dardenne, de A Morte do Sr. Lazarescu,
do também romeno Cristi Puiu. Mais que ecos,
na verdade: a impressão de uma fórmula
suficientemente fácil e reprodutível para
se encaixar em quase qualquer esquema ficcional que
se queira realista e despojado das habituais construções
de roteiro. OK, estamos instalados num presente e há
uma situação premente. Resta identificar
qual, o que acontece, claro, rapidamente: num alojamento
universitário para mulheres numa cidade da Romênia
dos anos 80, uma mulher está grávida e
prepara com sua amiga um plano para abortar. Plano intrincado,
fora da lei, sujeito a uma série de mudanças
de percurso e aparentemente regido por uma lei misteriosa.
Assim, o filme garante o interesse em seu começo
pelo desbravamento desse mundo, feito de constrangimentos
psicológicos e uma sensação de
urgência garantida pela consecução
das ações: conseguir dinheiro, cigarros,
sabonete, falar com o namorado, reservar um quarto de
hotel, encontrar um homem num carro. 4 Meses, 3 Semanas
e 2 Dias se desenvolve, inicialmente, como a clínica
observação de um processo. Se seguisse
assim, ainda que não fosse um candidato a grande
obra-prima de cinema, ao menos manteria seu respeito
e um certo interesse pela austeridade da forma. No entanto,
Cristian Mungiu prefere conferir cores mais fortes à
trama, fazendo das situações de constrangimento
um motor óbvio e desagradável: a cada
seqüência, uma nova notícia, uma nova
negociação, uma nova economia de surpresas
que o filme opera sadicamente em sua relação
com o espectador: a todo momento um novo saber que atravanca
a situação e a impede de seguir adiante.
Assim, um telefone toca sem que ninguém atenda,
uma situação se estende e provoca ansiedade,
a mudança nas regras do jogo obriga a ações
vergonhosas, um corpo imóvel na cama pode significar
o pior. Se os filmes-painel costumam operar segundo
uma análise combinatória da merda que
pode acontecer unindo tal a tal personagem, 4 Meses,
3 Semanas e 2 Dias opera como um videogame,
por fases de humilhação, desrespeito e
constrangimento, e sobrevivência a eles (mas,
espertinho mais que humano, o filme não enfatiza
em momento nenhum a grandeza de sobreviver à
penúria, preferindo o sentido de miserabilismo
que se instala do começo até o último
plano, vergonhoso e previsível). Fase 1, merda
1; fase 2, merda 2, e assim por diante. Talvez as fases
sejam em ordem invertida, como o título do filme.
Pouco importa. Resta ao espectador apenas assistir o
diretor jogar.
E o jogo é claro, com intenções
claras. Basta ver uma câmera que reenquadra a
cena para mostrar escandalosamente um feto jogado no
chão entre toalhas ensangüentadas, uma imagem
tremida e escura para acompanhar a personagem em sua
descida ao inferno ou, talvez principalmente, os momentos
dedicados às situações que se desenvolvem
no extra-campo, em especial o sexo psicologicamente
forçado que o aborteiro tem com as duas amigas.
Se o extra-campo em geral é um lugar da discrição,
a duração dos planos opera em sentido
inverso, dando tempo de sobra para sugerir imagens mentais
ao gosto do cliente. Que não se duvide, temos
diante de nós um diretor que saliva avidamente
pela desgraça de seus personagens, primo-irmão
de González-Iñarrítu ou Todd Solondz.
Ainda que não se inscreva totalmente na estética
do refém apontada anos atrás a partir
de certos filmes e cineastas (Michael Haneke, Ulrich
Seidl, Sérgio Bianchi e mais alguns que podemos
aproximar do "cinema da sordidez"), uma série
de aspectos apontados a respeito dessa relação
de refém feita com o espectador se aplicam ao
filme de Cristi Puiu. Mas, em especial, o fetichismo
criado pela indigestão, essa idéia estúpida
e no entanto disseminada de que, ao se consumir (porque
a palavra é bem essa) uma sensação
artística desagradável, tem-se acesso
a uma dimensão de conscientização
ou padecimento que a sensação artística
agradável, harmoniosa ou evasiva, não
fornece. Mas é preciso jamais confundir masoquismo
mesquinho, de pequeno sabedor, com desalienação.
E definitivamente o objetivo de 4 Meses, 3 Semanas
e 2 Dias é mais escandalizar do que compreender.
Ruy Gardnier
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