EM QUE SE RECONHECE UM FILME
DE ALAIN RESNAIS?

Nos anos 50 era a aproximação com as obras de arte, a literatura, a inovação dentro do academicismo de um documentário de formato institucional. Entre os anos 50 e adentrando definitivamente nos 60, era um compromisso político associado a um ideal de modernidade cinematográfica, de formas inicialmente "não-cinematográficas" (lembrar-se da definição de Godard para Hiroshima mon amour: Stravinsky + Faulkner), a apropriação de formas narrativas novas (associada em parte ao boom do nouveau roman na frança) mas acima de tudo uma diferente postura da câmera em relação àquilo que ela filma. Se os anos 60 viam a certa completude de um grande autor surgindo, tocando temas decisivos de nosso tempo, os 70 verão um Resnais retraído dos "grandes temas" e voltado mais detidamente às questões narrativas (poder de intervenção da narração em Providence ou reconstituição esburacada de um passado em Stavisky...), chegando aos anos 80 em chave tão meta, incorporando de forma excêntrica várias outras formas narrativas (ópera, teatro, história em quadrinhos) fazendo questão de que a adaptação potencialize o caráter dessas artes e não as minimize recorrendo aos desgastados recursos de tornar uma obra cinematográfica. Ao contrário, Resnais busca fazer cinema com os quadrinhos, com o teatro, etc. E chega ao requinte de adaptar materiais impensáveis a uma forma cinematográfica (ao menos o que correntemente se entende por essa expressão): Meu Tio da América tem sua origem numa teoria científica de etologia, Amores Parisienses é uma obra que põe em cena o cancioneiro popular francês, Pas sur la bouche é filmado diretamente a partir do libreto de uma opereta de 1925.

Vistos tematicamente, são momentos da carreira muito longínquos e desiguais no enfoque, na forma, inconsistentes nas opções por certas propostas formais, como se cada filme fosse uma aventura que começasse do zero e encontrasse seu ponto de perfeição nela mesma. Parece até haver mesmo em Alain Resnais algo que deseja explodir a organicidade da obra em zilhões de fragmentos, ao passo que certos realizadores fazem filmes com o espírito totalmente oposto, o de cada filme sendo um grande capítulo de uma obra que só se completa a partir de uma visão de conjunto (Chabrol, por exemplo). Ainda assim, no meio de projetos tão diferenciados, resta um gosto, um olhar, um comportamento de artista que precisa de algumas coordenadas bastante definidas e recorrentes para fazer funcionar um projeto.

A começar, esse sempre estranho desejo de jamais roteirizar um projeto (o que é quase falso, porque ele adaptou um, Mélo, e co-roteirizou outro, Je t'aime, je t'aime; em todo caso, jamais conceber a história). Além disso, o compromisso de ser sempre fiel ao roteiro, de transportar tudo que está no roteiro à tela. Mas perguntem a Alain Robbe-Grillet se tudo que ele escreve não está no roteiro e, mesmo assim, as imagens de O Ano Passado em Marienbad não gritam histéricamente Resnais Resnais Resnais a cada plano. O que singulariza a cinematografia de Alain Resnais, e que nos dá a doidivanas impressão de que ele pode filmar qualquer roteiro, é que sua instância artística se dá na intervenção sobre aquilo a ser filmado, na elaboração de um construto formal-visual que estabelece um olhar de câmera sempre incomum, excêntrico, exigente (daí que nenhum filme de Resnais parece com um "filme normal", nem mesmo Stavisky..., que talvez seja o que mais chega perto), e que cria ao mesmo tempo uma sinfonia visual e um quebra-cabeças mental. Ao diretor-autor que fornece uma "visão de mundo" através de seus temas, Resnais propõe o diretor-autor que propõe condições sensório-mentais através de suas obras.

"Se eu pudesse definir o cinema em duas palavras, eu diria reunião e frescor. Frescor porque o privilégio do cinema é se prestar à improvisação – mas para isso, é preciso ter tudo cuidadosamente preparado. Reunião, porque a invenção verdadeira está nas seqüências. Os detalhes não contam, a combinação é tudo." Ou: "Olhe um quadro de Cézanne: nunca se mostrou melhor a Provence, a paisagem é apresentada com uma precisão, uma sensibilidade extremas. Ao mesmo tempo, é uma composição abstrata, um jogo de linhas e de formas. (...) O tema do quadro é o próprio quadro. Talvez seja necessário falar de um realismo formalista."1

Esse olhar realista-formalista se percebe fortemente ao longo de uma obra que, por mais que teça linhas de comparação com um cineasta como Raul Ruiz (em especial Providence ou L'Amour à mort), exige com tal meticulosidade uma adesão cheia de detalhes que instalam numa realidade precisa (nomes de ruas e bairros em Medos Privados em Lugares Públicos, detalhes cênicos, gestos, vestuário em Mélo ou Pas sur la bouche). Mas, por mais que seja com lugares, situações e personagens característicos que a obra seja construída, é preciso operar ao nível do "jogo de linhas e formas", ou seja, da combinação de todas as coisas, trabalhar todas as coisas numa "composição abstrata".

A forma específica de composição abstrata criada por Resnais comporta algumas características em especial. Em primeiro lugar, poderíamos falar na extrema leveza, poder-se-ia dizer musical, na forma como Resnais mantém sua atenção primariamente no ritmo do andamento, na coesão do conjunto, na atuação de um princípio organizador que faça a obra ter várias recorrências e rimas internas (a neve em Medos Privados em Lugares Públicos sendo o exemplo mais evidente disso: ainda que seja tematicamente uma imagem bastante clichê, ela dá o ritmo e o tom necessários à constituição rítmica e dramática do filme). Em segundo lugar, um grau tão pronunciado de abstração também constrói, já aí na relação estabelecida entre a narração e o comportamento dos personagens (ou, para falar de modo mais abstrato, da narração em relação àquilo que ela narra: tetos e retoques arquitetônicos em O Ano Passado em Marienbad, jogo entre pedra, árvore e representação no absurdo fim de Meu Tio da América), a natureza de um jogo: um esquema formal que se arma como um dispositivo de ataque ou de apreensão, que convida o espectador a decifrar. Isso só é possível porque nos filmes de Resnais sempre há com que um desnível entre aquilo que é apresentado e a forma como é apresentado aquilo que é apresentado. Resnais jamais busca uma forma orgânica, autêntica ao que é narrado (nesse sentido é o anti-Garrel, o anti-Cassavetes): seu cinema é de uma construção eterna de imaginário por parte de uma narração ora insólita (L'Amour à mort, Hiroshima mon amour), ora sutilmente inesperada (Mélo, Medos Privados), mas sempre lúdica. "Há sempre um momento em meus filmes em que eu sinto a necessidade de quebrar essa composição, de fazer o contrário do que eu tinha feito até aí. Por exemplo, em Hiroshima toda a parte sonora é no presente, mas ouve-se o grito da heroína em Nevers. (...) É ainda uma forma, sem dúvida, de experimentar a solidez da construção."2 Pequenos fios desencapados3, que ao mesmo tempo que comprovam a força da forma também chamam atenção para elas na base de uma composição arbitrária (ou seja, do arbítrio de seu realizador) e, portanto, que se oferece a um jogo.

Que nos últimos tempos Resnais tenha recorrido ao teatro – Mélo, Smoking/No Smoking, Pas sur la bouche, Medos Privados em Lugares Públicos – e especialmente a um tipo de teatro esquemático que não faz questão de esconder ou justificar os gestos e ações de seus personagens num esquema inteiramente naturalista, isso só atenta para um nível profundo de depuração, que é o trabalho minucioso com seus atores de predileção (Sabine Azéma, Pierre Arditi, André Dussolier...) dentro de esquemas formais excêntricos em cenários em alguma medida artificiais (Meu Tio da América, Mélo, Medos Privados) que sublinham um quê de automatismo no comportamento de seus personagens e, ao mesmo tempo, lhes dão um frescor e uma liberdade de caracterização incomuns no cinema. Que nos momentos em que Laura Morante procura apartamento nós vejamos tudo de cima, com teto ausente, mostra apenas essa dimensão labiríntica que sempre foi a de Resnais, essa brincadeira quase matemática de unir pessoas a pessoas ou pessoas a lugares (ou mesmo lugares a lugares: França/Japão em Hiroshima mon amour) como num exercício de análise combinatória incompleta (em especial nos dois filmes baseados em peças de Allan Ayckburn, Smoking/No Smoking e Medos Privados), em que o jogador, sorriso no rosto, observa a disposição de seus peões no tabuleiro. Significativamente, a imagem que veio à cabeça de Resnais para o início de Medos Privados em Lugares Públicos foi uma teia de aranha com vários insetos presos, mas sem a aranha para devorá-los. Mas a descrição é falsa, em parte. Porque, no fundo, a aranha é ele. Uma aranha que brinca com a solidão melancólica e desorientada de seus personagens.

Ruy Gardnier

1. "Entretien avec Alain Resnais", in Arc 31, 1967. Entrevista conduzida por Bernard Pingaud.

2. Idem.

3. cf. a crítica de Medos Privados em Lugares Públicos presente na revista.

 









Três imagens de Mélo, três formas diferentes de fazer
o cenário entrar em tensão com o naturalismo
das situações e com o drama das situações.


Laura Morante e André Dussolier emparedados em
Medos Privados em Lugares Públicos