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Yang, Bergman,
Antonioni, Isou
A lógica da memória espanta. Nesses dois meses
que se passaram entre uma edição e outra de
Contracampo, quatro mortes de diretores que fizeram obras
decisivas para a arte cinematográfica: primeiro Edward
Yang (29 de junho), Isidore Isou (28 de julho), Ingmar Bergman
(30 de julho) e por fim Michelangelo Antonioni (também
30 de julho). Acompanhamos tudo meio espantados, alguns porque
a morte veio como um espanto (Yang, sem dúvida, talvez
Bergman), alguns porque sabíamos que era chegada a
hora, uma vez a obra inteiramente completa (Bergman, Antonioni),
e ao menos um caso em que a morte veio trazer à tona
alguém sobre o qual já nem mais se falava, sequer
sabia-se que estava vivo: Isidore Isou.
Mas o espanto maior deriva não do fato de que essas
mortes aconteceram, nem que aconteceram tão próximas
umas das outras, e tampouco do fato de que a repercussão
de cada uma dessas mortes foi bastante diversa em atenção
e pompa isso é o esperado, e entra como mais
um exemplo do automatismo reflexo do senso comum midiático,
que mais se esforça por corroborar o já sabido
do que por buscar novos ângulos de observar as coisas;
questão de redundância protocolar. Assim, o velório
de cada um desses cineastas foi acompanhado de epitáfios
vagos que funcionaram como a soma simbólica de uma
vulgata: assim Edward Yang é autor de As Coisas
Simples da Vida (e não um cineasta decisivo cujos
filmes jamais foram trazidos ao Brasil), Antonioni é
o "poeta da angústia" ou outra platutude
qualquer, Bergman é arauto da morte de Deus ou sei
lá mais o quê.
Mas pior que isso, sem dúvida, é a lógica
que, a propósito da morte no mesmo dia de dois pilares
do "cinema de arte" dos anos 60, constrói
uma cisão entre passado glorioso e presente desanimador
que repousa mais numa incapacidade de olhar do que num testemunho
embasado, como se faltasse ao presente aquilo que só
com o tempo passamos a atribuir ao passado, um senso de orientação
artístico-filosófica definido, um certo número
de características culturais-formais, etc. É
lamentável ver que até numa arte jovem como
o cinema, há aqueles que se instalam pesadamente num
discurso mortificador de fazer parar o fluxo da História
e declarar apogeus e decadências.
Mais lamentável ainda quando, nesse mesmo período
de tempo, estrearam nas principais cidades brasileiras dois
filmes decisivos que, de alguma forma, lidam com questões
de persistência da vida, força da morte, desestímulo
do cotidiano. E dois filmes que são prova tanto de
grande vigor artístico quanto de poder autoral: Medos
Privados em Lugares Públicos de Alain Resnais e
Em Busca da Vida de Jia Zhang-Ke vieram dar alento
a um ano cinematográfico até então muito
pouco generoso em filmes interessantes (o editorial anterior
falava justamente nisso). Só o fato de haver dois filmes
como esses, que carregam consigo questões artísticas
similares às dos realizadores falecidos, já
dá prova de erro ao discurso de miséria dos
tempos contemporâneos.
Nós, que não temos nada com essa onda de sujeito
filão de velório, nos dedicamos ao que nos interessa.
Jia Zhang-Ke já tendo sido volta e meia referido na
revista, dedicamos nossa atenção a um olhar
mais detido sobre os filmes de Alain Resnais a partir de um
incrível retorno (não à forma, que nunca
perdeu, mas às salas de cinema). Da mesma forma, aproveitamos
a ocasião para publicar uma série de escritos
importantes e documentos de Michelangelo Antonioni que estranhamente
jamais foram publicados no Brasil, e assim prestar uma homenagem
a um artista decisivo do cinema. Que ele tenha recebido um
dossiê não implica que obrigatoriamente estejamos
relegando a Bergman ou a Yang um escalão de menor importância
(ainda que, para parte significativa da redação,
Antonioni de fato ocupe um lugar de muito mais destaque do
que Bergman, ao menos; no entanto, isso não vem ao
caso agora). Se as mortes permitem pela primeira vez uma visão
definitiva sobre o conjunto completo da obra, ao mesmo tempo
elas provocam julgamentos forçados, tomadas de partido
um tanto arbitrárias, e comparações estapafúrdias.
Deixemos um outro momento para avaliar com mais propriedade
a obra desses realizadores. No caso de Edward Yang, ao menos,
será rápido.
A edição se completa com um dossiê analisando
a carreira e os filmes de John McTiernan, cineasta que passou
boa parte de sua carreira sem receber um olhar de conjunto
que almejasse buscar suas preocupações formais,
ao prolongamento dos temas e tratamentos, ou seja, a coerência
de uma carreira cheia de filmes com personalidade dentro de
um universo como Hollywood que, hoje como ontem, não
pede muito além de uma eficiência uniformizada,
mecânica. O ânimo, como sempre, é de levantar
questões, buscar trazer novos olhares que tentem dar
conta da diversidade de usos e emoções de que
se compõe o viver-cinema de hoje que, sim, como sempre,
apresenta belezas incríveis, propostas inovadoras e
criatividade exuberante em diversos cantos distintos do mundo.
Só cabe a nós atentar. E experimentar.
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