MEDOS PRIVADOS EM LUGARES PÚBLICOS
Alain Resnais, Cœurs, França, 2006

Carl Theodor Dreyer (Gertrud, Dois Seres), Manoel de Oliveira (O Sapato de Cetim, Benilde ou A Virgem Mãe). Não foram muitas as vezes em que certos diretores de cinema se afrontaram ao teatro e, amplificando características intimamente teatrais e incorporando-as descaradamente à construção da obra, conseguem inventar a partir dessa impureza constitutiva os elementos de uma beleza puramente cinematográfica. Alain Resnais, já sabíamos, pertence a esse grupo de cineastas pelo menos desde Mélo (1986), e nos últimos anos – Smoking/No Smoking (1993), Pas sur la bouche (2003) – vem se dedicando com mais obstinação ao trabalho de transfigurar cinematograficamente (ou seja, pela mise en scène) um material teatral mantendo suas virtudes teatrais (nada aqui do malfadado exercício de "arejar" o enredo, enchê-lo de externas, vício lamentável comum aqui e alhures). A obra de Alain Resnais desenvolve-se desde o começo como um eterno jogo entre formas narrativas inimagináveis (fazer um roteiro a partir de uma tese de etologia, por exemplo) e com um também eterno jogo de maquinação mental para estabelecer equivalências entre um material de base escrita e o trabalho visual operado pela câmera. É um homem ao mesmo tempo fascinado por formas consideradas menores, superficiais (quadrinhos, canções populares, operetas vagabundas), e ao mesmo tempo uma obsessão virtuosista pela idéia de composição, de equilíbrio entre as partes, por um tom geral que conforma a obra. Essa excentricidade de moleque associada a um preciosismo de mestre marca o gosto todo próprio que temos ao ver um filme de Alain Resnais, e é essa mesma característica que faz com que cada filme seu, por mais convencional que seja o material de que se parte, se converte num exuberante e delicioso jogo de encenação.

Cœurs, "corações", ou Medos Privados em Lugares Públicos, não poderia ser diferente. A princípio o filme se vende numa chave muito fácil, a do drama psicológico de incomunicabilidade à francesa, mas muito rápido o filme desenvolve maneiras de esburacar o lisinho, de desarrumar o arrumado, de provocar pela forma (de enquadrar, de mexer a câmera, de fazer seus atores atuarem) um distúrbio que complexifica a modorra naturalista e obriga, se acompanhamos todos os elementos com atenção, a adensar a relação com o que está sendo visto. Um zoom repentino, um movimento de câmera que leva de uma boca (a de Laura Morante, aqui figurada na primeira imagem) até outra, um breve passeio da imagem pelo teto, um falso raccord que quebra a continuidade luminosa ou faz nevar dentro de um quarto de apartamento. Ou então, de forma mais geral, a insidiosa sensação de que os cenários nunca se adequam perfeitamente aos personagens (tanto pela construção lógica dos personagens quanto pela relação que eles desenvolvem com aqueles espaços) e que, de forma geral, aquele mundo é hipercodificado, armado, interpretado ao nível da caricatura. Questão de tom, e nesse drama humorístico ou nessa comédia meio desencantada o tom impresso consegue a proeza de dramatizar o cotidiano de seis corações desafetados (no sentido de afecção que o termo pode carregar) como uma tresloucada comédia screwball com gags visuais lubitschianas ou como um musical em que, muito por acaso, ninguém canta música nenhuma. Dreyer + Lubitsch, talvez uma boa maneira de começar a lidar com Cœurs.

Existe a tentação, é comum até, de só se olhar para o enredo e menos para o enfoque, e assim considerar o filme como uma espécie de Closer acrescido de mais dois personagens, incrivelmente melhor atuado, mais elegante (também, não era difícil) e com personagens em idade mais velha. Acrescentemos imediatamente que, se Medos Privados em Lugares Públicos é um dos filmes que mais representam a excelência cinematográfica nos últimos anos, não é exatamente por isso. Claro, poucas vezes conseguiremos ver uma interpretação tão radiosamente esbaforida e calculada como a de Sabine Azéma ou a poderosa canastrice encantadora de Lambert Wilson, o olhar desencantado de Pierre Arditi ou a graça licensiosa de André Dussolier, mas o brilho do filme não se esgota falando do controle do cineasta e do poder das interpretações. Porque esse é apenas o trabalho de base para algo muito mais decisivo e difícil que Resnais elabora em seguida, que diz respeito essencialmente ao trabalho de construção visual (aqui chamando atenção de forma incrível à singularidade daquilo que costuma ser considerado óbvio) e à aplicação de um tom que conforma, atribui forma à obra inteira. Em Cœurs, é a neve, que protagoniza o filme já em seu primeiro plano e reaparece eternamente em cada fade para uma nova seqüência (um fade-para-neve da mesma forma que se fala em fade-para-preto), que fornece um modelo de organização para a continuidade e a fluidez do todo, que possibilita a passagem do sentimento seqüência por seqüência e que confere ao filme uma aura musical de leveza absoluta – leveza difícil, estabelecida mesmo dentro do peso de cotidiano aborrecido de personagens com tendência a fecharem-se em suas próprias certezas. Porém, mais do que atribuir juízo de valor ou transmitir saberes sobre a existência desses personagens, Resnais se interessa por eles como entidades especulativas ou melodias associáveis com outras melodias no sentido de se construir uma sinfonia, de criar através delas uma progressão e construir um sentido geral.

E nesse sentido geral, cada detalhe é chamado a adicionar um sentido que reconfigura o sentido da obra. Por exemplo, temos Charlotte, mulher religiosa, obstinadamente religiosa, que aceita uma provação como um desafio ao diabo, mas que ao mesmo tempo veste-se com lingerie provocante e dança diante de uma câmera, provocando com suas fitas de vídeo alguns homens que encontra. Ora, isso conforma o personagem, mas a caminhada para a parte direita do quadro (imagem 2), ao fim de uma seqüência em que ela está uma pilha de nervos, não é exatamente indicativo de nenhum dos dois, ou talvez de uma mistura dos dois – o sublime na perversão ou qualquer outra matriz de relação com o sagrado – que o filme não faz questão de deixar claro (nem deveria); é algo que constrói um detalhe sutil que, pela ausência ou gratuidade da situação, rearranja nossa percepção. Da mesma forma, o surgimento dessa figura estranha, jamais explicada, o quadro que a câmera fixa de vez em quando no apartamento de Thierry e Gaëlle (imagem 3), à qual podemos atribuir uma instância moral, um olhar castrador que condena a aventura voyeurística de Thierry, mas que no limite permanece irredutível a um sentido preciso.

Mas, de forma ainda mais incisiva, o que chama atenção pela irreverência são os múltiplos deslocamentos de sentido que a posição da câmera opera, tecendo pequenos delírios que reconfiguram a forma como a câmera capta o comportamento e o modo de vida pretensamente convencional dos personagens. Delírio espacial que chega a seu máximo no momento em que a parede de trás da imobiliária desaparece (imagem 4) e a parede de vidro meio transparente, meio opaco que separava os dois personagens e mediava nossa relação com aquele cenário fica perpendicular ao ângulo da câmera e, logo, assume as dimensões de um palito. Ou quando a câmera, num zoom maluquete, reenquadra de forma espalhafatosa um detalhe ou personagem. Ou nos planos zenitais para as visitas aos apartamentos a alugar, que, maravilhosamente bem utilizados, atribuem ao mesmo tempo grandiosidade e artificialidade ao cenário, e conseqüentemente revelam os protagonistas com figuras diminuídas, presas a um cenário que se cola a eles por obrigação (lantejoulas que tampam o olhar de Pierre Arditi, armação de ramos de trepadeira que recortam o rosto de Laura Morante, pedaços opacos de vidro que separam Azéma e Dussolier) e os prende a um estilo de vida que teme o inesperado. Se existe ficção, ela nasce quando nos faz figurar de outra forma aquilo que já estamos acostumados a ver, atribuir um outro ponto de vista que consiga dessaturar o saturado (ou vice-versa), chamar o modorrento de delicioso, chamar o cafona de lindo (o lindo feio bar de hotel em que Arditi trabalha e Wilson enche a cara), enfim tomar o mundo codificado, imóvel de cotidianos desafetadamente confortáveis e fazê-los remexer a partir da mise en scène, transformar o imóvel em dança pelo tom e pelo enfoque. Em 1933, Dreyer escrevia: "O característico de um bom filme é uma certa agitação rítmica criada, seja dos movimentos dos personagens no interior dos planos, seja da mudança mais ou menos rápida dos próprios planos"1. Fazer um filme como se organiza uma dança, usar a mise en scène para abstrair um sentido e construir uma melodia visual a partir de dados sensitivos e narrativos, essa é uma arte que por vezes cremos perdida, mas que nos grandes filmes sempre ficamos felizes em reencontrar. Medos Privados em Lugares Públicos pertence definitivamente a essa equipe de elite.

Ruy Gardnier

1. Em "O verdadeiro cinema falado", publicado na revista Politiken em 1933 e reproduzido, em francês, no livro Réflexions sur mon métier, Éd. Cahiers du Cinéma, 1997.

 

 





(1) a boca de Laura Morante no começo do filme


(2) Sabine Azéma caminha, o olhar embevecido... com quê?


(3) Zoom no quadro misterioso:
a câmera sugere mas o espectador não acha


(4) Espaço manipulável: verdadeiro protagonista de Cœurs