Carl
Theodor Dreyer (Gertrud, Dois Seres),
Manoel de Oliveira (O Sapato de Cetim, Benilde
ou A Virgem Mãe). Não foram
muitas as vezes em que certos diretores de cinema se
afrontaram ao teatro e, amplificando características
intimamente teatrais e incorporando-as descaradamente
à construção da obra, conseguem
inventar a partir dessa impureza constitutiva os elementos
de uma beleza puramente cinematográfica. Alain
Resnais, já sabíamos, pertence a esse
grupo de cineastas pelo menos desde Mélo
(1986), e nos últimos anos Smoking/No
Smoking (1993), Pas sur la bouche (2003)
vem se dedicando com mais obstinação
ao trabalho de transfigurar cinematograficamente (ou
seja, pela mise en scène) um material
teatral mantendo suas virtudes teatrais (nada
aqui do malfadado exercício de "arejar"
o enredo, enchê-lo de externas, vício lamentável
comum aqui e alhures). A obra de Alain Resnais desenvolve-se
desde o começo como um eterno jogo entre formas
narrativas inimagináveis (fazer um roteiro a
partir de uma tese de etologia, por exemplo) e com um
também eterno jogo de maquinação
mental para estabelecer equivalências entre um
material de base escrita e o trabalho visual operado
pela câmera. É um homem ao mesmo tempo
fascinado por formas consideradas menores, superficiais
(quadrinhos, canções populares, operetas
vagabundas), e ao mesmo tempo uma obsessão virtuosista
pela idéia de composição, de equilíbrio
entre as partes, por um tom geral que conforma a obra.
Essa excentricidade de moleque associada a um preciosismo
de mestre marca o gosto todo próprio que temos
ao ver um filme de Alain Resnais, e é essa mesma
característica que faz com que cada filme seu,
por mais convencional que seja o material de que se
parte, se converte num exuberante e delicioso jogo de
encenação.
Curs, "corações",
ou Medos Privados em Lugares Públicos,
não poderia ser diferente. A princípio
o filme se vende numa chave muito fácil, a do
drama psicológico de incomunicabilidade à
francesa, mas muito rápido o filme desenvolve
maneiras de esburacar o lisinho, de desarrumar o arrumado,
de provocar pela forma (de enquadrar, de mexer a câmera,
de fazer seus atores atuarem) um distúrbio que
complexifica a modorra naturalista e obriga, se acompanhamos
todos os elementos com atenção, a adensar
a relação com o que está sendo
visto. Um zoom repentino, um movimento de câmera
que leva de uma boca (a de Laura Morante, aqui figurada
na primeira imagem) até outra, um breve passeio
da imagem pelo teto, um falso raccord que quebra
a continuidade luminosa ou faz nevar dentro de um quarto
de apartamento. Ou então, de forma mais geral,
a insidiosa sensação de que os cenários
nunca se adequam perfeitamente aos personagens (tanto
pela construção lógica dos personagens
quanto pela relação que eles desenvolvem
com aqueles espaços) e que, de forma geral, aquele
mundo é hipercodificado, armado, interpretado
ao nível da caricatura. Questão de tom,
e nesse drama humorístico ou nessa comédia
meio desencantada o tom impresso consegue a proeza de
dramatizar o cotidiano de seis corações
desafetados (no sentido de afecção
que o termo pode carregar) como uma tresloucada
comédia screwball com gags visuais lubitschianas
ou como um musical em que, muito por acaso, ninguém
canta música nenhuma. Dreyer + Lubitsch, talvez
uma boa maneira de começar a lidar com Curs.
Existe a tentação, é comum até,
de só se olhar para o enredo e menos para o
enfoque, e assim considerar o filme como uma espécie
de
Closer acrescido de mais dois personagens, incrivelmente
melhor atuado, mais elegante (também, não
era difícil) e com personagens em idade mais
velha. Acrescentemos imediatamente que, se Medos
Privados em Lugares Públicos é um
dos filmes que mais representam a excelência
cinematográfica
nos últimos anos, não é exatamente
por isso. Claro, poucas vezes conseguiremos ver uma
interpretação tão radiosamente
esbaforida e calculada como a de Sabine Azéma
ou a poderosa canastrice encantadora de Lambert Wilson,
o olhar desencantado de Pierre Arditi ou a graça
licensiosa de André Dussolier, mas o brilho
do filme não se esgota falando do controle
do cineasta e do poder das interpretações.
Porque esse é apenas o trabalho de base para
algo muito mais decisivo e difícil que Resnais
elabora em seguida, que diz respeito essencialmente
ao trabalho
de construção visual (aqui chamando atenção
de forma incrível à singularidade daquilo
que costuma ser considerado óbvio) e à
aplicação de um tom que conforma, atribui
forma à obra inteira. Em Curs, é
a neve, que protagoniza o filme já em seu primeiro
plano e reaparece eternamente em cada fade para
uma nova seqüência (um fade-para-neve
da mesma forma que se fala em fade-para-preto),
que fornece um modelo de organização
para a continuidade e a fluidez do todo, que possibilita
a passagem do sentimento seqüência por seqüência
e que confere ao filme uma aura musical de leveza
absoluta
leveza difícil, estabelecida mesmo dentro
do peso de cotidiano aborrecido de personagens com
tendência
a fecharem-se em suas próprias certezas. Porém,
mais do que atribuir juízo de valor ou transmitir
saberes sobre a existência desses personagens,
Resnais se interessa por eles como entidades especulativas
ou melodias associáveis com outras melodias
no sentido de se construir uma sinfonia, de criar
através
delas uma progressão e construir um sentido
geral.
E nesse sentido geral, cada detalhe é chamado
a adicionar um sentido que reconfigura o sentido da
obra. Por exemplo, temos Charlotte, mulher religiosa,
obstinadamente religiosa, que aceita uma provação
como um desafio ao diabo, mas que ao mesmo tempo veste-se
com lingerie provocante e dança diante de uma
câmera, provocando com suas fitas de vídeo
alguns homens que encontra. Ora, isso conforma o personagem,
mas a caminhada para a parte direita do quadro (imagem
2), ao fim de uma seqüência em que ela está
uma pilha de nervos, não é exatamente
indicativo de nenhum dos dois, ou talvez de uma mistura
dos dois o sublime na perversão ou qualquer
outra matriz de relação com o sagrado
que o filme não faz questão de
deixar claro (nem deveria); é algo que constrói
um detalhe sutil que, pela ausência ou gratuidade
da situação, rearranja nossa percepção.
Da mesma forma, o surgimento dessa figura estranha,
jamais explicada, o quadro que a câmera fixa de
vez em quando no apartamento de Thierry e Gaëlle
(imagem 3), à qual podemos atribuir uma instância
moral, um olhar castrador que condena a aventura voyeurística
de Thierry, mas que no limite permanece irredutível
a um sentido preciso.
Mas, de forma ainda mais incisiva, o que chama atenção
pela irreverência são os múltiplos
deslocamentos de sentido que a posição
da câmera opera, tecendo pequenos delírios
que reconfiguram a forma como a câmera capta o
comportamento e o modo de vida pretensamente convencional
dos personagens. Delírio espacial que chega
a seu máximo no momento em que a parede de
trás
da imobiliária desaparece (imagem 4) e a parede
de vidro meio transparente, meio opaco que separava
os dois personagens e mediava nossa relação
com aquele cenário fica perpendicular ao ângulo
da câmera e, logo, assume as dimensões
de um palito. Ou quando a câmera, num zoom
maluquete, reenquadra de forma espalhafatosa um
detalhe ou personagem. Ou nos planos zenitais para
as
visitas aos apartamentos a alugar, que, maravilhosamente
bem utilizados, atribuem ao mesmo tempo grandiosidade
e artificialidade ao cenário, e conseqüentemente
revelam os protagonistas com figuras diminuídas,
presas a um cenário que se cola a eles por
obrigação
(lantejoulas que tampam o olhar de Pierre Arditi, armação
de ramos de trepadeira que recortam o rosto de Laura
Morante, pedaços opacos de vidro que separam
Azéma e Dussolier) e os prende a um estilo
de vida que teme o inesperado. Se existe ficção,
ela nasce quando nos faz figurar de outra forma aquilo
que já estamos acostumados a ver, atribuir
um outro ponto de vista que consiga dessaturar
o saturado
(ou vice-versa), chamar o modorrento de delicioso,
chamar o cafona de lindo (o lindo feio bar de hotel
em que
Arditi trabalha e Wilson enche a cara), enfim tomar
o mundo codificado, imóvel de cotidianos
desafetadamente confortáveis e fazê-los
remexer a partir da mise en scène,
transformar o imóvel
em dança pelo tom e pelo enfoque. Em 1933, Dreyer
escrevia: "O característico de um bom
filme
é uma certa agitação rítmica
criada, seja dos movimentos dos personagens no interior
dos planos, seja da mudança mais ou menos rápida
dos próprios planos"1.
Fazer um filme como se organiza uma dança,
usar a mise en scène para abstrair
um sentido e construir uma melodia visual a partir
de dados sensitivos
e narrativos, essa é uma arte que por vezes
cremos perdida, mas que nos grandes filmes sempre
ficamos felizes
em reencontrar. Medos Privados em Lugares Públicos
pertence definitivamente a essa equipe de elite.
Ruy Gardnier
1. Em "O
verdadeiro cinema falado", publicado na revista
Politiken em 1933 e reproduzido, em francês, no
livro Réflexions sur mon métier, Éd.
Cahiers du Cinéma, 1997.
|