SOB SUSPEITA
Sidney Lumet, Find Me Guilty, EUA, 2006

Atualmente com 82 anos, Sidney Lumet é um cineasta que, nos últimos tempos, não vem apresentado trabalhos interessantes, muito provavelmente mais pelas limitações do mercado cinematográfico americano em si do que pela sua competência própria. Nome de importantes trabalhos, em especial durante os anos 70 e 80, desde Q & A (1990), apenas um filme assinado por ele alcançou repercussão: Sombras da Lei (1997). Nestes, como em muitos títulos importantes de sua obra – Serpico (1973), Príncipe da Cidade (1981), O Veredicto (1982) – vemos personagens que, conforme já fora destacado anteriormente em artigo de Sergio Alpendre para Contracampo, se confrontam "com os dilemas morais a que eles têm que se debater para ficarem em paz com suas consciências”. Nesses filmes em especial, os protagonistas marcam um embate contra uma espécie de corrupção endêmica, presente nos escalões onde deveria haver a promoção/manutenção da lei (polícia, sistema judiciário). Não raro as ações descambam para um ambiente de tribunal – terreno onde Lumet se sente bem à vontade desde a sua estréia com Doze Homens e uma Sentença (1958) – e, mesmo que quando o filme se conclui, não há um restabelecimento da ordem ou justiça: ainda temos personagens positivos que, de alguma forma, são resquícios de honestidade numa sociedade falida.

Pois bem, surgem então algumas expectativas para esse trabalho mais recente de Lumet, Find Me Guilty, lançado recentemente em DVD com o título “genérico” Sob Suspeita. Mas essas nasceriam até um ponto limitadas, justificando-se principalmente pelo retorno de um cineasta que, a princípio, poderia ser considerado como “fora de forma”, a um terreno que conhece como a palma da mão, encenando uma história verídica, como fizera diversas vezes no passado. Daí a surpresa ao vermos no novo filme um intenso arroubo de vitalidade, trabalho de cinema totalmente independente, que subverte não somente alguns paradigmas da obra de Lumet, como os citados no parágrafo anterior, como também todo um conceito de “heroísmo e manutenção da ordem”, no qual o cinema americano tradicional sempre se viu fortemente imbuído. A começar pela escolha do protagonista, Jackie DiNorscio, um mafioso que nunca deixa de ser apresentado como criminoso e a quem não se procura escamotear os delitos que cometera no passado. Justamente o oposto do herói “lumetiano” clássico, tradicionalmente situado do lado da lei, como o detetive Frank Serpico ou o advogado Frank Galvin. Há também que se destacar a audácia, partindo de um diretor que sempre optou por trabalhar com atores virtuosos e consagrados – Al Pacino, Paul Newman, para ficar somente nos últimos dois exemplos –, da escalação de Vin Diesel, astro de ação de filmes pouco valorizados. Pois bem, Lumet extrai uma atuação luminosa de Diesel, explorando ao máximo suas limitações e um surpreendente histrionismo.

Voltando ao filme em si, os primeiros minutos de Find Me Guilty sugerem uma incursão no universo do seriado Família Soprano, inclusive pela presença de nomes do elenco de apoio desse último. Vemos Jackie DiNorscio apresentado como um gângster corpulento e paternal, membro da máfia de New Jersey (alguém lembrou de Tony Soprano?). Mas o que Lumet faz questão de destacar desde a primeira seqüência, na qual Jackie é baleado na cama por um primo drogado, é o senso de honra e fidelidade que o protagonista não abre mão de preservar. Com uma narrativa inicialmente fragmentada e elíptica, vemos Jackie fazer seus negócios ilegais e ser preso numa armadilha. Nisso fica logo demarcada a personalidade de Jackie com seu carisma e caráter irreverente.

Com a proximidade do julgamento, o filme muda de tom. Este começa a se estabelecer de forma gradual quando Jackie é levado ao escritório do promotor (Linus Roache) que ao tentar seduzir o criminoso para um acordo, quer intimidá-lo com um comportamento digno do mafioso mais frio e impiedoso. Isso retrata uma linha que ficará bem clara ao longo do filme. Ao contrário da obra clássica de Lumet na qual, mesmo num universo essencialmente corrupto, haveria espaço para algum senso de justiça ou idealismo, aqui ele parece ter desaparecido completamente, caracterizando a afirmação de uma falência generalizada do sistema. Meliantes, advogados, promotores, são tudo farinha do mesmo saco e, quando presentes no mesmo ambiente, não há como diferenciá-los, seja por sua aparência, mas principalmente por suas atitudes. E isso se acentuará de forma cada vez mais intensa ao longo do filme.

Find Me Guilty assume sua forma marcante e definitiva ao ingressarmos no tribunal para um julgamento que logo saberemos ser não somente de Jackie, mas também de todos os membros de sua famiglia, cada um com seu defensor próprio. Lumet começa a impor um tom farsesco, que destaca o ridículo por trás de todo o ritual da justiça. Advogados se apresentam até que Jackie resolve fazer sua própria defesa. Com seu discurso que mais parece a performance de um comediante stand-up, na qual não faltam inclusive piadas sujas, vemos definitivamente a caracterização do tribunal como um espetáculo que beira o grotesco. Lembrando que o filme abre com uma cartela que comunica que a quase totalidade de seus diálogos foi extraída dos autos do processo, aumenta-se sobremaneira a intensidade dessa retratação do quase-absurdo. O que sempre foi visto na obra de Lumet como espaço para possível imposição de alguma ordem torna-se aqui um circo situado na inerência de um ridículo, denunciado de forma cada vez mais extrema toda vez que Jackie assume a palavra no tribunal. Essa ritualização do ridículo só se acentua à medida que cada nova cena é introduzida pelo dia que contou desde o início do julgamento, números que passam a crescer de forma igualmente absurda, já que ele se estendeu por quase 2 anos.

Depois de entrar no tribunal, o filme dele raramente voltará a sair e é nessa encenação do julgamento que vemos Lumet retomar com uma vitalidade impressionante para um octagenário todo seu domínio do artesanato cinematográfico e renovar todo um universo que poderia se supor anteriormente já bem delineado e estabelecido. Se nos filmes anteriores do cineasta o tribunal é sempre encenado com uma marcante sobriedade em momentos de dramaticidade intensa, em Find Me Guilty vemos, como já dito, um circo, retratado de forma nunca menos que debochada. Desse tom cômico, sempre eficiente, diversas vezes brilhante, vemos outra grata surpresa: Lumet superar sua tradicional mão pesada para um gênero no qual suas incursões sempre deixaram algo a desejar - vide Bye Bye Braverman (1968) ou Garbo Fala (1984.). Se desde o início da carreira Lumet sempre demonstrou domínio na exploração de espaços exíguos – Doze Homens e Uma Sentença passa-se integralmente ao redor de uma mesa – vemos aqui uma busca em novos ângulos, valorizando posicionamentos de câmera e imposição de uma montagem que acentuam o decadente espetáculo da pretensa justiça. Mais um mérito para Lumet, que consegue retratar este circo trabalhando num julgamento e simplesmente filmando-o como tal, trazendo à lembrança a versão filmada de Chicago (2002), que, para retratar o mesmo circo, trabalha com toda a complexa estrutura do musical para fazê-lo sem chegar sequer perto da mesma força, do mesmo impacto de Find Me Guilty.

Durante sua meia-hora final, Find Me Guilty assume um caráter de subversão bem próximo da anarquia. O filme não deixa pedra sobre pedra sobre algumas das mais caras instituições americanas. Todo filme de tribunal atinge seu clímax em um interrogatório no qual se revela algo essencial para o processo e em um discurso que poderíamos dizer “edificante”, sempre ressaltando boas intenções em um terreno que não raro descamba para a pieguice. Aqui temos, quando Jackie interroga o primo que o havia baleado no início do filme, uma ironização máxima dessa aparente dramaticidade, num interrogatório que só faz valorizar a honra e a fidelidade vindas de um criminoso que não retém crise de consciência por suas atividades. Ela tem seus méritos demarcados ainda mais ao se fazer um paralelo com a fortíssima cena de O Veredicto na qual Paul Newman interroga a testemunha vivida por Lindsay Crouse. Toda essa ironia se preserva nos discursos feitos por Jackie, em especial naquele onde convence seus companheiros a não aceitar o acordo proposto pela promotoria e que inclui uma das maiores pérolas de diálogo grosseiro da história do cinema.

Mas nada supera a coragem de se retratar de forma gloriosa, quase catártica, a absolvição de um bando de mafiosos perigosos, por um júri declaradamente de saco cheio. A seqüência da saída do tribunal é igualmente inspirada e debochada e antecipa brilhantemente a conclusão de um filme que beira o niilismo ao sugerir que, dentro do atual estado das coisas na sociedade americana, o último bastião da preservação dos valores tradicionais da honra e da família estariam justamente nos criminosos. E quando Jackie retorna a cadeia – se seus companheiros saem, ele volta, pois já havia sido condenado por outros delitos – temos não um mártir, mas um anti-herói no sentido mais clássico. Vemos aí nessa já destacada subversão inerente ao projeto de Find Me Guilty aquela que talvez seja a principal razão nos EUA de uma má vontade generalizada para com o filme, seu lançamento limitado e seu conseqüente e retumbante fracasso de bilheteria. Com isso, um trabalho vital de um cineasta importante acaba também por não receber lançamento em cinema por aqui. A verdade é que Find Me Guilty é um filme tremendamente corajoso, iconoclasta e que, infelizmente, parece não interessar a ninguém.

Gilberto Silva Jr.

(DVD: Alpha Video)

 








Vin Diesel no centro do picadeiro









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