TRANSFORMERS
Michael Bay, Transformers, EUA, 2007

O truque favorito de Michael Bay – ele o repete a exaustão pelo menos desde A Rocha (1996) – é fazer um movimento circular de câmera, em close, entorno de um dos seus atores. O que é curioso neste simples movimento é que o efeito conseguido é o oposto do que à primeira vista pode-se imaginar: um distanciamento que efetivamente transforma o corpo do ator numa massa artificial. Aí reside o seu segredo; ele odeia gente. Não há na história do meio nenhum outro cineasta que parece tão repelido pelo corpo humano. O cinema de Bay é o que mais genuinamente representa uma idéia de cinema pós-humano. Nesse sentido, Transformers é o perfeito veículo para a sensibilidade de seu cineasta. Logo, não chega a ser surpresa que se trate do seu filme mais eficaz, na medida em que lhe permite expressar de forma mais centrada seu credo cinematográfico; é ainda menos surpreendente que se trate de um dos espetáculos mais repugnantes já produzidos em Hollywood.

A forma tradicional de criticar Michael Bay é apontar suas óbvias deficiências formais. Sim, é verdade que Bay não sabe decupar, que ele não tem noção de escala ou ritmo, que seus filmes se movem sem direção, graça ou sentido. Mas isto seria perder o ponto, achar que a arte de Bay tem alguma relação com aquela praticada por um Howard Hawks. O cinema de Bay é pré-Lumière, seus filmes existem num outro estado de articulação de planos. Junto com seu antigo produtor Jerry Bruckheimer, Bay basicamente inventou o blockbuster moderno, cujo espetáculo é mais próximo de algumas formas de pré-cinema do que o que geralmente temos como filme narrativo. Há dois pilares de sustentação da estética do diretor: a longa duração e uma crença populista de que é preciso dentro deste grande panorama oferecer de tudo para cada espectador. O segundo o leva com freqüência a filmar aquilo sobre o que ele não tem nenhum domínio, como as dolorosas seqüências em que o herói nerd (Shia LaBouf) tenta agradar seu interesse romântico (Megan Fox), assim como o faz incluir algumas das seqüências de exposição mais grosseiras possíveis e se afundar nos mais variados números de vaudeville sem graça (em Transformers é difícil decidir se mais insuportável é o triste espetáculo de John Turturro fazendo tudo o possível para chamar a atenção da câmera – desculpe, John, mas, nos filmes de Bay, atores são somente um mal necessário –, ou a ponta de Bernie Mac, que alcança pontos de estereótipo racial que imaginamos só serem possíveis em entretenimento mainstream quando apresentados com as aspas do “estamos tentando ser politicamente incorretos”).

Mais central é a questão da duração. Exceção feita à sua estréia, nenhum filme de Bay dura menos que duas horas e dezesseis minutos (Transformers tem 144). Seus filmes são gordos, mas ao contrário de outros blockbusters recentes, nos quais essa gordura parece mais uma questão de falta de disciplina na montagem, eles precisam mesmo das mais inócuas passagens. Seu projeto estético é de um ataque constante à sensibilidade do espectador. Bay filma de maneira a espancar o olhar do espectador até a submissão. A longa duração logo se revela um efeito essencial deste processo; ele precisa acumular seqüência a seqüência este efeito até transformar o público numa massa uniforme reagindo apenas aos estímulos mais básicos que suas imagens despertam. E nenhum de seus filmes, tanto quanto este último, é estruturado de forma tão precisa para fazer esta lógica funcionar, culminando numa orgia interminável de destruição e efeitos especiais, que é um triunfo de todo o seu projeto – incluindo alguns dos poucos momentos puramente excitantes que ele filmou –, mas também uma seqüência que apenas um olhar dopado poderia suportar. Se não tão deplorável quanto Bad Boys 2 – o mais inepto e ofensivo dos filmes do cineasta –, Transformers ajuda a confirmar Bay como um dos poucos cineastas com um projeto estético genuinamente fascista.

Há apenas duas coisas que dão prazer a Michael Bay: o ritual militar e a destruição na maior escala que seu orçamento permitir. Todos os seus filmes funcionam de alguma maneira como filme-de-guerra e como filme-desastre e Transformers não é exceção. O filme começa quase nos lançando em meio a um ataque a uma base militar americana no Quatar, o que permite a seu diretor se lançar entusiasmadamente, tanto num sem-número de explosões, quanto nas imagens de soldados destemidos se jogandol contra a máquina. Temos a impressão de que toda a sub-trama protagonizada por Josh Duhamel e Tyrese Gibson existe exclusivamente para que Bay possa entregar-se ao seu prazer em filmar militares desempenhando à perfeição qualquer tarefa que lhe seja confiada. O seu amor pelo jargão militar é tamanho, que, quando o nerd de LeBouf tem seu grande momento fugindo dos robôs como um wide receiver de futebol americano, a única maneira encontrada pela sua câmera para tolerá-lo é tratá-lo como mais um de seus soldados.

A única coisa que lhe dá mais prazer é filmar a destruição. Tanto na instalação de abertura do filme, em que metodicamente acompanhamos a base militar ser aniquilada, quanto no seu clímax – que faz para o filme de desastre de grandes efeitos especiais o que seu produtor Steven Spielberg realizara com o filme de guerra na abertura de O Resgate do Soldado Ryan –, está o grande credo de Bay: a sistemática destruição de tudo o que passa diante da tela. Se há uma frustração em Transformers é que considerações comerciais obrigam o cineasta a usar o método George Lucas de filmar massacres à distância para não ofender demais o espectador (a contagem de corpos sempre menos incomoda quando mais distante mantida do elemento humano). Pode-se imaginar a contentação que moveria Bay se seus produtores lhe permitissem atacar de maneira visceral seus extras; ainda assim há o suficiente de destruição para agradar os seus instintos. Optimus Prime, o generoso general dos Transformers, tem lá seu discurso sobre não ferir humanos, mas quando tudo esquenta, no clímax, o diretor dá um jeito de explodir tudo em que consegue pôr as mãos: carros, prédios, extras, numa entrega prazerosa poucas vezes vistas no cinema. É como se ele fosse aquele garoto que ao ganhar um boneco novo tem como primeiro instinto arrancar-lhe a cabeça.

Transformers inclui intermináveis monólogos sobre o valor da raça humana; próximo ao final, estes monólogos se multiplicam de tal forma que só podemos suspeitar que Bay esta tentando compensar via diálogo os instintos que o levam a puxar as imagens o mais distante possível do elemento humano. Quando o roteiro finalmente lhe permite filmar um sem-número de seqüências previstas na idéia de robôs de CGI se agarrando e se espancando, podemos ver a promessa de Transformers se realizando de maneira plena: uma orgia de destruição mecanizada realizada de maneira a dopar o olhar do espectador. Todo o cinema de Michael Bay parece ter aguardado por este momento. A verdade é que raramente nos vemos diante de um filme cuja filosofia se aproxime tanto do seu vilão (que, não por acidente, tem a voz fornecida por Hugo Weaving, a esta altura um verdadeiro axioma do blockbuster moderno); sua verdadeira razão de ser se revelando um ataque brutal contra o espectador. É preciso dar algum crédito a Bay, porém: não apenas Transformers é o único dos grandes filmes de ação da temporada a surgir a partir de um projeto estético particular, como se revela repugnante justamente na medida que o cineasta tem sucesso em realizar tal projeto. Não se trata do mais inepto dos filmes da temporada, mas é sem dúvida o que de mais torpe chegou aos nossos cinemas este ano.

Filipe Furtado

 

 










Michael Bay e a estética da destruição.