O truque favorito de Michael
Bay – ele o repete a exaustão pelo menos desde A
Rocha (1996) – é fazer um movimento circular de
câmera, em close, entorno de um dos seus atores.
O que é curioso neste simples movimento é que o efeito
conseguido é o oposto do que à primeira vista pode-se
imaginar: um distanciamento que efetivamente transforma
o corpo do ator numa massa artificial. Aí reside o
seu segredo; ele odeia gente. Não há na história do
meio nenhum outro cineasta que parece tão repelido
pelo corpo humano. O cinema de Bay é o que mais genuinamente
representa uma idéia de cinema pós-humano. Nesse sentido, Transformers é o
perfeito veículo para a sensibilidade de seu cineasta.
Logo, não chega a ser surpresa que se trate do seu
filme mais eficaz, na medida em que lhe permite expressar
de forma mais centrada seu credo cinematográfico; é ainda
menos surpreendente que se trate de um dos espetáculos
mais repugnantes já produzidos em Hollywood.
A forma tradicional de criticar Michael Bay é apontar suas óbvias deficiências
formais. Sim, é verdade que Bay não sabe decupar, que ele não tem noção de escala
ou ritmo, que seus filmes se movem sem direção, graça ou sentido. Mas isto seria
perder o ponto, achar que a arte de Bay tem alguma relação com aquela praticada
por um Howard Hawks. O cinema de Bay é pré-Lumière, seus filmes existem num outro
estado de articulação de planos. Junto com seu antigo produtor Jerry Bruckheimer,
Bay basicamente inventou o blockbuster moderno, cujo espetáculo é mais
próximo de algumas formas de pré-cinema do que o que geralmente temos como filme
narrativo. Há dois pilares de sustentação da estética do diretor: a longa duração
e uma crença populista de que é preciso dentro deste grande panorama oferecer
de tudo para cada espectador. O segundo o leva com freqüência a filmar aquilo
sobre o que ele não tem nenhum domínio, como as dolorosas seqüências em que o
herói nerd (Shia LaBouf) tenta agradar seu interesse romântico (Megan
Fox), assim como o faz incluir algumas das seqüências de exposição mais grosseiras
possíveis e se afundar nos mais variados números de vaudeville sem graça
(em Transformers é difícil decidir se mais insuportável é o triste espetáculo
de John Turturro fazendo tudo o possível para chamar a atenção da câmera – desculpe,
John, mas, nos filmes de Bay, atores são somente um mal necessário –, ou a ponta
de Bernie Mac, que alcança pontos de estereótipo racial que imaginamos só serem
possíveis em entretenimento mainstream quando apresentados com as aspas
do “estamos tentando ser politicamente incorretos”).
Mais central é a questão da duração. Exceção feita à sua estréia, nenhum filme
de Bay dura menos que duas horas e dezesseis minutos (Transformers tem
144). Seus filmes são gordos, mas ao contrário de outros blockbusters recentes,
nos quais essa gordura parece mais uma questão de falta de disciplina na montagem,
eles precisam mesmo das mais inócuas passagens. Seu projeto estético é de um
ataque constante à sensibilidade do espectador. Bay filma de maneira a espancar
o olhar do espectador até a submissão. A longa duração logo se revela um efeito
essencial deste processo; ele precisa acumular seqüência a seqüência este efeito
até transformar o público numa massa uniforme reagindo apenas aos estímulos mais
básicos que suas imagens despertam. E nenhum de seus filmes, tanto quanto este último, é estruturado
de forma tão precisa para fazer esta lógica funcionar, culminando numa orgia
interminável de destruição e efeitos especiais, que é um triunfo de todo o seu
projeto – incluindo alguns dos poucos momentos puramente excitantes que ele filmou –,
mas também uma seqüência que apenas um olhar dopado poderia suportar. Se não
tão deplorável quanto Bad Boys 2 – o mais inepto e ofensivo dos filmes
do cineasta –, Transformers ajuda a confirmar Bay como um dos poucos cineastas
com um projeto estético genuinamente fascista.
Há apenas duas coisas que dão prazer a Michael Bay: o ritual militar e a destruição
na maior escala que seu orçamento permitir. Todos os seus filmes funcionam de
alguma maneira como filme-de-guerra e como filme-desastre e Transformers não é exceção.
O filme começa quase nos lançando em meio a um ataque a uma base militar americana
no Quatar, o que permite a seu diretor se lançar entusiasmadamente, tanto num
sem-número de explosões, quanto nas imagens de soldados destemidos se jogandol
contra a máquina. Temos a impressão de que toda a sub-trama protagonizada por
Josh Duhamel e Tyrese Gibson existe exclusivamente para que Bay possa entregar-se
ao seu prazer em filmar militares desempenhando à perfeição qualquer tarefa que
lhe seja confiada. O seu amor pelo jargão militar é tamanho, que, quando o nerd de
LeBouf tem seu grande momento fugindo dos robôs como um wide receiver de
futebol americano, a única maneira encontrada pela sua câmera para tolerá-lo é tratá-lo
como mais um de seus soldados.
A única coisa que lhe dá mais prazer é filmar a destruição. Tanto na instalação
de abertura do filme, em que metodicamente acompanhamos a base militar ser aniquilada,
quanto no seu clímax – que faz para o filme de desastre de grandes efeitos especiais
o que seu produtor Steven Spielberg realizara com o filme de guerra na abertura
de O Resgate do Soldado Ryan –, está o grande credo de Bay: a sistemática
destruição de tudo o que passa diante da tela. Se há uma frustração em Transformers é que
considerações comerciais obrigam o cineasta a usar o método George Lucas de filmar
massacres à distância para não ofender demais o espectador (a contagem de corpos
sempre menos incomoda quando mais distante mantida do elemento humano). Pode-se
imaginar a contentação que moveria Bay se seus produtores lhe permitissem atacar
de maneira visceral seus extras; ainda assim há o suficiente de destruição para
agradar os seus instintos. Optimus Prime, o generoso general dos Transformers,
tem lá seu discurso sobre não ferir humanos, mas quando tudo esquenta, no clímax,
o diretor dá um jeito de explodir tudo em que consegue pôr as mãos: carros, prédios,
extras, numa entrega prazerosa poucas vezes vistas no cinema. É como se ele fosse
aquele garoto que ao ganhar um boneco novo tem como primeiro instinto arrancar-lhe
a cabeça.
Transformers inclui intermináveis monólogos sobre o valor da raça
humana; próximo ao final, estes monólogos se multiplicam de tal forma que
só podemos suspeitar que Bay esta tentando compensar via diálogo os instintos
que o levam a puxar as imagens o mais distante possível do elemento humano.
Quando o roteiro finalmente lhe permite filmar um sem-número de seqüências
previstas na idéia de robôs de CGI se agarrando e se espancando, podemos
ver a promessa de Transformers se realizando de maneira plena: uma
orgia de destruição mecanizada realizada de maneira a dopar o olhar do espectador.
Todo o cinema de Michael Bay parece ter aguardado por este momento. A verdade é que
raramente nos vemos diante de um filme cuja filosofia se aproxime tanto do
seu vilão (que, não por acidente, tem a voz fornecida por Hugo Weaving, a
esta altura um verdadeiro axioma do blockbuster moderno); sua verdadeira
razão de ser se revelando um ataque brutal contra o espectador. É preciso
dar algum crédito a Bay, porém: não apenas Transformers é o único
dos grandes filmes de ação da temporada a surgir a partir de um projeto estético
particular, como se revela repugnante justamente na medida que o cineasta
tem sucesso em realizar tal projeto. Não se trata do mais inepto dos filmes
da temporada, mas é sem dúvida o que de mais torpe chegou aos nossos cinemas
este ano.
Filipe Furtado
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