Um
homem fantasiado cospe fogo numa balsa em que as pessoas,
taciturnas, esperam chegar em seus destinos. Passes
de mágica, apresentações musicais,
um homem anda numa corda bamba estendida entre dois
prédios. Ou, mais fantasiosamente, um monumento
arquitetônico em concreto que se transforma num
foguete espacial e, inesperadamente, levanta vôo
do chão que, mesmo cambiante (a própria
geografia muda com a criação da barragem
das Três Gargantas) e permitindo o transporte
(obrigados ou não, os homens viajam e atravessam
a paisagem), parece zombar da fixidez a que os homens
são submetidos, a um senso de destino que paira
o tempo inteiro não só em Still Life,
mas em toda a carreira até agora do cineasta.
"Still life", natureza morta na tradução
do gênero pictórico, mas acima de tudo
"vida parada", na tradução literal
do termo. Já em Plataforma, em Prazeres
Desconhecidos, Jia operava o contraste entre a reprodução
de uma vida sempre igual e o seu oposto, o mundo do
espetáculo, do movimento, da cor, da dança
ou da música. Em O Mundo, um passo adiante
era dado, incorporando um no outro, mostrando o próprio
cotidiano desencantado de artistas interioranos que
habitam um mundo de fantasia, um parque temático
que simula uma volta ao mundo sem sair do lugar, um
simulacro de mundo vibrante dentro da mais pura estagnação
existencial. Em Busca da Vida continua a trabalhar
em cima do mesmo binômio, e novamente dentro de
um espaço arquitetural que representa uma História
com h maiúsculo o milagre econômico
chinês e seu crescimento avassalador , constrói
a ocasião para uma investigação
ontológica entre destino coletivo de um povo
e história individual, ou, melhor ainda, entre
o nome que sintetiza bilhões de experiências
individuais através de operadores e números
("China") e as próprias experiências
individuais de seus habitantes, as formiguinhas que
produzem a grandeza do formigueiro. Em Busca da Vida
faz um glorioso desvio na visão oficial para
mostrar a desolação de pessoas e cidades
vista como efeito colateral inevitável de um
processo de modernização feito a toques
de caixa.
Ao longo de cinco filmes de ficção e alguns
documentários (In Public, Dong),
Jia Zhang-Ke saiu da posição inicial de
cronista de uma juventude chinesa sem futuro e passou,
mais fortemente em O Mundo, a historiador no
presente, a um olhar que ao mesmo tempo registra o que
acontece e usa os poderes do enquadramento, dos movimentos
de câmera e da profundidade de campo para refletir
sobre os rumos tomados pela China nos últimos
anos. Pois há inicialmente um Jia historiador
que age ao definir para seu filme um tema de atualidade
que provocará modificações definitivas
na paisagem e ocasionará o êxodo de milhares
de pessoas e a destruição total de cidades.
Mas é o que acontece em seguida que é
decisivo: como Jia, com seu modo específico de
filmar, se aproxima de seu tema e constrói uma
percepção. Pois o que está em jogo
em Em Busca da Vida não é simplesmente
a denúncia ou a observação das
injustiças, mas a tentativa de compreensão
de um momento histórico complexo demais para
mensagens diretas e gerais. Tão complexo, inclusive,
que o aparecimento repentino de um ovni que cruza o
céu num dado momento do filme apenas se incorpora
às modificações "de ficção
científica" pelas quais passa a terra revolvida,
a terra submersa e o comportamento das pessoas. Han
Sanming, herói especulativo do filme, observa
um de seus colegas acender o cigarro macaqueando Chow
Yun-fat da mesma forma impávida como ouve o motoqueiro
dizer-lhe que sua casa ficava "ali onde está
passando aquela balsa" ou observa, ao fundo, a
implosão de um prédio: o mundo perde seus
amparos, é possível acreditar em qualquer
coisa, até em visitas de seres de outros planetas.
O aparecimento do ovni divide o filme em dois e faz
a narrativa recomeçar através da história
de outra pessoa. Primeiro é Han Sanming, que
procura sua filha adolescente, que não via desde
que sua ex-esposa deixou a cidade onde ficava o lar
familiar. Em seguida é Shen Hong, que aparece
pela barragem das Três Gargantas para procurar
seu marido, depois de dois anos sem qualquer notícia
dele. As duas narrativas nunca se encontrarão,
mas elas são dois aspectos de um mesmo testemunho,
a desorientação tanto geográfica
quanto existencial de pessoas pegas na contramão
de uma remodelação nacional também
geográfica e existencial. Mas o que realmente
encanta no estilo de Jia Zhang-Ke é seu laconismo,
seu modo muito pessoal, quase displicente, de preferir
uma distância observacional às ênfases
dramáticas mais costumeiras. Porém, essa
quase displicência só revela, na verdade,
uma dramaticidade construída ali onde não
se espera que ela esteja. Na visita ao endereço
inexistente porque a cidade foi alagada, temos um exemplo
perfeito: na conversa de San Hanming com o motoqueiro,
a câmera se movimenta da esquerda para a direita
e da direita para a esquerda, seguindo menos os movimentos
dos personagens que ocupam o primeiro plano e mais pelas
balsas que cruzam o rio de um lado para o outro. Isso
faz com que, na hora que o motoqueiro diz a seu cliente
que o endereço que procurava está "debaixo
daquelas plantas ali", essas plantas não
estejam visíveis, e só apareçam
com uma defasagem de vários segundos, no momento
que uma outra balsa leva a câmera da direita para
a esquerda. É nessa saída, quase uma desculpa,
para não enfatizar um espaço ali no momento
em que ele era mencionado, que se dá muito da
poética filosófica de Jia. Num outro momento,
durante a narrativa de Shen Hong, ela e o marido reencontrado
passeiam ao lado da represa, um casal que não
se vê há dois anos e que troca farpas.
Bem ao fundo, num improvável corredor de um farol,
casais ensaiam passos de dança, em discreta dissonância
com o que acontece em primeiro plano. Defasagem temporal,
comentário dissonante que aparece ao fundo: estamos
no seio de uma poética que não é
lírica, internalizada, mas que se configura nos
elementos mesmo da materialidade do mundo.
Essa poética se dá, na maioria das vezes,
nas relações que se desenvolvem entre
primeiro plano e plano de fundo. Efeitos inesperados,
como a implosão de um prédio ou o lançamento
de um foguete-monumento, efeitos de comentário
assonante (San Henming entre as ruínas) ou dissonante
(Shen Hong desorientada no momento em que um engenheiro
liga as luzes de uma ponte hi-tech ao longe)
ou simples efeitos de instalação no mundo.
Mesmo dentro de salas e quartos há uma janela
ou porta, com luz estourada, que lembra o tempo inteiro
da existência do mundo exterior como uma presença
indissociável. Assim, a ficção
pode passar mais facilmente de um personagem a um outro,
porque no fundo a história que Jia Zhang-Ke dramatiza
é uma história coletiva, um devir histórico
que toma a forma de uma narrativa. Essa narrativa, no
entanto, se constrói a partir de uma base documental:
estes são os lugares em que isso está
acontecendo, essa rua será inundada, aquela
é a barragem, aquilo ali era cidade. Imagina-se
Jia como uma espécie de Rossellini chinês,
alguém que se situa como alguém que registra
documental e existencialmente um processo histórico,
e Jia sem empenha em dar conta das mudanças na
China da mesma forma como Rosellini se empenhou em dar
conta do processo de reconstrução da Europa
depois da Segunda Guerra Mundial: fazendo muito mais
uma radiografia da alma coletiva por trás do
corpo do que uma narrativa exemplar, típica,
ideologicamente manuseável.
Ainda que os personagens exprimam uma coletividade e
o mal-estar dessa coletividade, eles têm vida
própria, uma existência sólida,
eles são muito mais do que simples meios para
explicitar mensagens. Prova disso são as palavrinhas
que volta e meia aparecem na tela, e que constróem
um esboço de estrutura do filme: cigarros, bebida,
chá, balinhas toffee. Pois, ainda que revele
um mundo em ruínas que morre e outro, friamente
belo, que nasce à revelia do sofrimento de seus
habitantes, Jia Zhang-Ke se interessa em chamar a atenção
para as possibilidades de troca, de altruísmo,
de comunicação entre as pessoas. Um chá
que se toma a dois, um cigarro que se oferece, bebida
que se compartilha. Ainda que desgarrados, ainda que
desorientados pela terra que não mais responde
pelo que era, eles ainda insistem em tornar o mundo
habitável. Como Zhao Tao e sua amiga russa em
O Mundo, é possível aquecer um
mundo mesmo quando tudo ao redor parece forçar
o esfriamento. Evidência que, para Jia Zhang-Ke,
o que importa no final de tudo é constatar que,
apesar das múltiplas destruições,
das inúmeras dificuldades, esse homem chinês
resiste e a vida brota mesmo quando menos se espera,
mesmo quando tudo parece evocar destruição
(o trabalho de Han Sanming enquanto espera na cidade
é demolir prédios). Daí a necessidade
do surreal junto com o real, da imaginação
junto com a observação, do aberrante que
vem quebrar a monotonia do cotidiano. Porque é
nessa insistência em ir além dos dados
e das condições oferecidas que se constitui
uma arte do viver. E essa generosidade do olhar em também
ver além é o que faz de Jia Zhang-Ke um
cineasta tão fundamental no panorama atual, e
faz de Em Busca da Vida um farol no meio do nevoeiro.
Ruy Gardnier
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