EM BUSCA DA VIDA
Jia Zhang-Ke, Sanxia haoren,
China/Hong Kong, 2006

Um homem fantasiado cospe fogo numa balsa em que as pessoas, taciturnas, esperam chegar em seus destinos. Passes de mágica, apresentações musicais, um homem anda numa corda bamba estendida entre dois prédios. Ou, mais fantasiosamente, um monumento arquitetônico em concreto que se transforma num foguete espacial e, inesperadamente, levanta vôo do chão que, mesmo cambiante (a própria geografia muda com a criação da barragem das Três Gargantas) e permitindo o transporte (obrigados ou não, os homens viajam e atravessam a paisagem), parece zombar da fixidez a que os homens são submetidos, a um senso de destino que paira o tempo inteiro não só em Still Life, mas em toda a carreira até agora do cineasta. "Still life", natureza morta na tradução do gênero pictórico, mas acima de tudo "vida parada", na tradução literal do termo. Já em Plataforma, em Prazeres Desconhecidos, Jia operava o contraste entre a reprodução de uma vida sempre igual e o seu oposto, o mundo do espetáculo, do movimento, da cor, da dança ou da música. Em O Mundo, um passo adiante era dado, incorporando um no outro, mostrando o próprio cotidiano desencantado de artistas interioranos que habitam um mundo de fantasia, um parque temático que simula uma volta ao mundo sem sair do lugar, um simulacro de mundo vibrante dentro da mais pura estagnação existencial. Em Busca da Vida continua a trabalhar em cima do mesmo binômio, e novamente dentro de um espaço arquitetural que representa uma História com h maiúsculo – o milagre econômico chinês e seu crescimento avassalador –, constrói a ocasião para uma investigação ontológica entre destino coletivo de um povo e história individual, ou, melhor ainda, entre o nome que sintetiza bilhões de experiências individuais através de operadores e números ("China") e as próprias experiências individuais de seus habitantes, as formiguinhas que produzem a grandeza do formigueiro. Em Busca da Vida faz um glorioso desvio na visão oficial para mostrar a desolação de pessoas e cidades vista como efeito colateral inevitável de um processo de modernização feito a toques de caixa.

Ao longo de cinco filmes de ficção e alguns documentários (In Public, Dong), Jia Zhang-Ke saiu da posição inicial de cronista de uma juventude chinesa sem futuro e passou, mais fortemente em O Mundo, a historiador no presente, a um olhar que ao mesmo tempo registra o que acontece e usa os poderes do enquadramento, dos movimentos de câmera e da profundidade de campo para refletir sobre os rumos tomados pela China nos últimos anos. Pois há inicialmente um Jia historiador que age ao definir para seu filme um tema de atualidade que provocará modificações definitivas na paisagem e ocasionará o êxodo de milhares de pessoas e a destruição total de cidades. Mas é o que acontece em seguida que é decisivo: como Jia, com seu modo específico de filmar, se aproxima de seu tema e constrói uma percepção. Pois o que está em jogo em Em Busca da Vida não é simplesmente a denúncia ou a observação das injustiças, mas a tentativa de compreensão de um momento histórico complexo demais para mensagens diretas e gerais. Tão complexo, inclusive, que o aparecimento repentino de um ovni que cruza o céu num dado momento do filme apenas se incorpora às modificações "de ficção científica" pelas quais passa a terra revolvida, a terra submersa e o comportamento das pessoas. Han Sanming, herói especulativo do filme, observa um de seus colegas acender o cigarro macaqueando Chow Yun-fat da mesma forma impávida como ouve o motoqueiro dizer-lhe que sua casa ficava "ali onde está passando aquela balsa" ou observa, ao fundo, a implosão de um prédio: o mundo perde seus amparos, é possível acreditar em qualquer coisa, até em visitas de seres de outros planetas.

O aparecimento do ovni divide o filme em dois e faz a narrativa recomeçar através da história de outra pessoa. Primeiro é Han Sanming, que procura sua filha adolescente, que não via desde que sua ex-esposa deixou a cidade onde ficava o lar familiar. Em seguida é Shen Hong, que aparece pela barragem das Três Gargantas para procurar seu marido, depois de dois anos sem qualquer notícia dele. As duas narrativas nunca se encontrarão, mas elas são dois aspectos de um mesmo testemunho, a desorientação tanto geográfica quanto existencial de pessoas pegas na contramão de uma remodelação nacional – também geográfica e existencial. Mas o que realmente encanta no estilo de Jia Zhang-Ke é seu laconismo, seu modo muito pessoal, quase displicente, de preferir uma distância observacional às ênfases dramáticas mais costumeiras. Porém, essa quase displicência só revela, na verdade, uma dramaticidade construída ali onde não se espera que ela esteja. Na visita ao endereço inexistente porque a cidade foi alagada, temos um exemplo perfeito: na conversa de San Hanming com o motoqueiro, a câmera se movimenta da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, seguindo menos os movimentos dos personagens que ocupam o primeiro plano e mais pelas balsas que cruzam o rio de um lado para o outro. Isso faz com que, na hora que o motoqueiro diz a seu cliente que o endereço que procurava está "debaixo daquelas plantas ali", essas plantas não estejam visíveis, e só apareçam com uma defasagem de vários segundos, no momento que uma outra balsa leva a câmera da direita para a esquerda. É nessa saída, quase uma desculpa, para não enfatizar um espaço ali no momento em que ele era mencionado, que se dá muito da poética filosófica de Jia. Num outro momento, durante a narrativa de Shen Hong, ela e o marido reencontrado passeiam ao lado da represa, um casal que não se vê há dois anos e que troca farpas. Bem ao fundo, num improvável corredor de um farol, casais ensaiam passos de dança, em discreta dissonância com o que acontece em primeiro plano. Defasagem temporal, comentário dissonante que aparece ao fundo: estamos no seio de uma poética que não é lírica, internalizada, mas que se configura nos elementos mesmo da materialidade do mundo.

Essa poética se dá, na maioria das vezes, nas relações que se desenvolvem entre primeiro plano e plano de fundo. Efeitos inesperados, como a implosão de um prédio ou o lançamento de um foguete-monumento, efeitos de comentário assonante (San Henming entre as ruínas) ou dissonante (Shen Hong desorientada no momento em que um engenheiro liga as luzes de uma ponte hi-tech ao longe) ou simples efeitos de instalação no mundo. Mesmo dentro de salas e quartos há uma janela ou porta, com luz estourada, que lembra o tempo inteiro da existência do mundo exterior como uma presença indissociável. Assim, a ficção pode passar mais facilmente de um personagem a um outro, porque no fundo a história que Jia Zhang-Ke dramatiza é uma história coletiva, um devir histórico que toma a forma de uma narrativa. Essa narrativa, no entanto, se constrói a partir de uma base documental: estes são os lugares em que isso está acontecendo, essa rua será inundada, aquela é a barragem, aquilo ali era cidade. Imagina-se Jia como uma espécie de Rossellini chinês, alguém que se situa como alguém que registra documental e existencialmente um processo histórico, e Jia sem empenha em dar conta das mudanças na China da mesma forma como Rosellini se empenhou em dar conta do processo de reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra Mundial: fazendo muito mais uma radiografia da alma coletiva por trás do corpo do que uma narrativa exemplar, típica, ideologicamente manuseável.

Ainda que os personagens exprimam uma coletividade e o mal-estar dessa coletividade, eles têm vida própria, uma existência sólida, eles são muito mais do que simples meios para explicitar mensagens. Prova disso são as palavrinhas que volta e meia aparecem na tela, e que constróem um esboço de estrutura do filme: cigarros, bebida, chá, balinhas toffee. Pois, ainda que revele um mundo em ruínas que morre e outro, friamente belo, que nasce à revelia do sofrimento de seus habitantes, Jia Zhang-Ke se interessa em chamar a atenção para as possibilidades de troca, de altruísmo, de comunicação entre as pessoas. Um chá que se toma a dois, um cigarro que se oferece, bebida que se compartilha. Ainda que desgarrados, ainda que desorientados pela terra que não mais responde pelo que era, eles ainda insistem em tornar o mundo habitável. Como Zhao Tao e sua amiga russa em O Mundo, é possível aquecer um mundo mesmo quando tudo ao redor parece forçar o esfriamento. Evidência que, para Jia Zhang-Ke, o que importa no final de tudo é constatar que, apesar das múltiplas destruições, das inúmeras dificuldades, esse homem chinês resiste e a vida brota mesmo quando menos se espera, mesmo quando tudo parece evocar destruição (o trabalho de Han Sanming enquanto espera na cidade é demolir prédios). Daí a necessidade do surreal junto com o real, da imaginação junto com a observação, do aberrante que vem quebrar a monotonia do cotidiano. Porque é nessa insistência em ir além dos dados e das condições oferecidas que se constitui uma arte do viver. E essa generosidade do olhar em também ver além é o que faz de Jia Zhang-Ke um cineasta tão fundamental no panorama atual, e faz de Em Busca da Vida um farol no meio do nevoeiro.

Ruy Gardnier

 

 








Começo de Em Busca da Vida: numa mesma balsa,
a espera monótona e o inesperado do espetáculo
que provoca o estranhamento do cotidiano.