Saneamento Básico, o filme.
O título do último filme de Jorge Furtado sugere, de
alguma forma, a “metalinguagem” que existiria no seu
decorrer. O filme-dentro-do-filme; o financiamento
público do audiovisual brasileiro (no qual Furtado
se insere); a responsabilidade do emprego deste dinheiro.
Mas vemos que, de metalinguagem propriamente dita,
pouco há. O que há é o tema da realização cinematográfica
como feito e processo. Assim sendo, o “fazer um filme” torna-se
um dado narrativo e as questões decorrentes dele, como
produção e financiamento, um diálogo com uma realidade.
Neste sentido, não se pode deixar de observar que Saneamento
Básico, o filme, mantém um diálogo direto com o
curta Fraternidade, realizado por Jorge Furtado
para a campanha “Valores do Brasil” do Banco do Brasil.
Nele, o cineasta utilizou a quantia monumental oferecida
(700 mil) a favor do tema que lhe foi dado (fraternidade)
e construiu uma quadra de esportes na Ilha das Flores
como acontecimento a ser registrado pela câmera. O
filme dobra-se sobre si, curto-circuitando sua própria
realidade exterior e sua narrativa (ou “conteúdo”),
e questiona os meios de produção.
Mas, em Saneamento Básico, a questão “fazer um filme” não se coloca no
lado do diretor, do proponente (da intervenção do realizador), mas no dos personagens.
Ao retirá-lo da esfera da metalinguagem e ao transportá-lo do meio cinematográfico “profissional”,
para o meio rural-familiar, Furtado deixa clara sua intenção de falar sobre o
fazer cinema propriamente dito. Ainda que esteja em jogo o contexto político
brasileiro (o descuido com o bem-estar dos cidadãos, a estrutura de patrocínio
cultural), o centro das atenções é o processo de realizar um filme, tanto em
seu aspecto mais factual e material, quanto em seu aspecto essencialmente lógico-emotivo.
Importa mais a relação dos personagens com o fabricar imagens como sendo uma
narrativa em si mesma, do que um possível jogo retórico entre narração e narrativa.
Desta forma, Jorge Furtado trabalha primordialmente com o que deve encenar: o
percurso que atravessam os personagens, desde que se deparam com a possibilidade
de fazer um vídeo como meio de financiar a obra em sua cidade, até concluírem
o filme como um projeto de engajamento pessoal e afetivo. A piada sobre o “filme
de ficção” (ou a própria deixa da verba disponível para um filme e não para a
obra) torna-se menor diante do que vivem os personagens. E talvez o principal
elemento para a construção disto seja a forma como o diretor trabalha a dramaturgia:
com ênfase na cena, no sentido mais clássico. Furtado coloca seus atores como
objeto de destaque diante da câmera, privilegiando enquadramentos em plano americano,
plano médio e plano médio fechado. Entre situações-piada e situações-drama, vemos
os personagens evoluírem em ação e presença. Quase como em uma estrutura de palcos,
as cenas sucedem-se sem ênfase maior na evolução dramática do roteiro (embora
o roteiro esteja lá o tempo todo como elemento fundamental).
Neste caminho dos personagens, podemos perceber a cada instante os detalhes nos
quais se ancora a narrativa. De forma simples, contemplamos os inúmeros elementos
que compõem o processo de um filme, do ponto de vista do trabalho físico e material
e do sensível e inteligível (cotidianos para quem trabalha com cinema, mas muitas
vezes secretos para quem lida apenas com o objeto filme). Vemos Marina e Joaquim
discutindo as possibilidades existentes para o roteiro (não há limites para o
que pode ser criado, à parte da exigência “ficção” do edital), contabilizando
gastos e calculando orçamento, testando figurinos, objetos, falas e cenas, e
avaliando (em qualidade e viabilidade) todas as idéias que pipocam. Porque a
grande aventura é descobrir como produzir acontecimentos e sentimentos com imagens – e
com quais imagens.
Jorge Furtado, no entanto, sabe fugir dos riscos se lhe impõem: o peso de um
didatismo (o processo de produção cinematográfica passo-a-passo) e o ridículo
do amadorismo do filme dos personagens (o resultado tosco de quem realiza sem
dominar a técnica e sem possuir os meios). Saneamento Básico é instrutivo
e é cômico. Mas, antes disso, é afetivo. Seja para quem conhece os meandros da
experiência de realizar um filme, seja para quem a desconhece por completo, o
filme comunica uma paixão em curso.
Marina e Joaquim se apaixonam por uma atividade antes desconhecida, ou, melhor
dizendo, atividades. Tratam-se, para eles, das descobertas mais sutis
e discretas de quem se engaja no fazer cinematográfico – mesmo que isto, por
ventura, não esteja explicitado –, assim como: o destilar de uma sensação em
uma sucessão de imagens; a descrição objetiva de uma visualização mental vaga
e abstrata; o surpreender-se com a manifestação de um ator diante da câmera;
os imprevistos que se oferecem como meio de criação. Talvez por isso possamos
rir com leveza do fato deles ignorarem a gravação descontínua (e a montagem posterior),
não ensaiarem as falas e a impostação de voz, ou “plantarem” informações para
a compreensão do roteiro nos diálogos. No fim das contas, tudo isto são detalhes.
As dificuldades enfrentadas (por desconhecimento ou outros tipos de limitações)
não impedem que o processo seja recompensatório e enriquecedor para os envolvidos
e que o produto final se revele satisfatório.
Se, por um lado, Furtado parece em alguns momentos estar fazendo o elogio de
um cinema naif e inocente (como num estágio pré-técnica), ou de um vale-tudo
criativo para além de qualquer crítica (que todos façam filmes, não importam
quais), por outro, há o estímulo da paixão pela criação artística antes de qualquer
coisa. E, quem sabe até mais importante, o incentivo que esta tenha meios de
se manifestar em qualquer lugar: num grande centro ou numa comunidade afastada.
Porque disto depende a saúde artística (para além da rubrica de “cultura”) de
um povo: da multiplicidade e diversidade de tudo aquilo que não é ordinário,
mas pessoal, inventivo e apaixonado.
Tatiana Monassa
|