É preciso deixar claro: Saneamento
Básico não é, de forma alguma, uma repetição
do que Jorge Furtado vinha fazendo, pelo menos em
relação à sua carreira cinematográfica. Ao contrário
de seus filmes anteriores, o novo longa-metragem
do diretor não repete, pelo menos totalmente, uma
mesma questão primordial tanto dos seus curtas quanto
dos: a obsessão pela estrutura. Se em Houve uma
Vez Dois Verões, ainda seu melhor filme, o cineasta
retrabalhava a comédia romântica juvenil com leveza
e suavidade, fazendo desta forma um filme também
jovem, ao longo das obras seguintes a questão estrutural
ficou cada vez mais sobrecarregada, tirando dos filmes
boa parte do respiro e da vida que poderiam trazer.
Em O Homem que Copiava, todo o filme parece existir para reproduzir o
processo mental de seu protagonista, e é nisso que o diretor desloca seus elementos:
a voz em off de Lázaro Ramos, as idas e vindas de roteiro, a montagem
com muitos planos. Em Meu Tio Matou um Cara, o mote estrutural é a vida
de jovens adolescentes, com a “verdade” sendo modificada de acordo com suas vontades,
e a presença da tecnologia (de computadores, jogos eletrônicos, celulares) conduzindo
a narrativa. Mas, nos dois casos, e diferentemente de Houve uma Vez Dois Verões,
o que acontecia era menos uma questão de entrega a mundos diversos, e mais uma
possibilidade de “brincar” com as estruturas ditas convencionais.
Assim como em seus curtas-metragens, tudo que Furtado fazia direcionado ao cinema
precisava conter uma dose de “experimentação” formal, algo que justificasse sua
presença na tela grande (considerando que, na televisão, o mesmo Furtado aprimorara
um estilo de comédia inteligente, focada principalmente nos diálogos e em um
humor mais direto). Cada vez mais, o cinema de Jorge Furtado parecia caminhar
para um beco onde o autor que ele mesmo tentava impor fazia com que seus filmes
acabassem em um mundo próprio, furtadiano, esvaziado de maiores qualidades.
Em Saneamento Básico, o filme, o caminho trilhado por Furtado é outro.
Ainda que exista uma premissa sobre a qual ele constrói o filme (a história
do vídeo amador feito com poucos recursos por pessoas do interior, para poder
construir uma rede de saneamento básico), esta premissa parece não influenciar
no modo como o cineasta cria e monta suas imagens. Pela primeira vez, Furtado
se deixa apagar em favor de uma série de elementos que, se existiam em suas obras
anteriores, nunca poderiam ter tomado o papel de protagonistas: o humor desmedido
e a presença central dos atores. Como nas séries de televisão, o cineasta deixa
suas pretensões de inteligência de lado (pensemos na montagem hiper-textual,
nas brincadeiras e viradas dos roteiros, nas vozes em off “espertas”)
e parece cuidar apenas de uma coisa: que a narrativa funcione, e que seja bem
assimilada.
Pois é sobre a base do funcional que Saneamento Básico é feito, e, se
isto tem seus méritos – entre eles uma liberdade para os atores jamais vista
em um longa anterior do diretor – também tem seus (grandes) defeitos. Neste sentido,
parece que, muitas vezes, o cineasta concorda a liberdade e este arejamento com,
simplesmente, preguiça. Que, esvaziado do cuidado quase obsessivo com referência
hiper-textuais, Furtado não teve a habilidade – ou a vontade – de simplesmente
contar uma história engraçada e envolvente, que é, simplesmente, ao que ele se
propõe.
Se temos, de um lado, boas piadas, de outro, simplesmente, parecemos estar vendo
um episódio de Hermes e Renato com atores famosos. No momento em que a
discussão sobre o investimento em cultura, em vez de saneamento, é esquecida
(e esta discussão é esquecida durante boa parte do filme), o cineasta não consegue
dar a suas anedotas a novidade de que precisariam para funcionar. Pois, convenhamos,
não há de novo em rirmos de um grupo de amadores fazendo um vídeo, digamos, amador.
Apesar do claro esforço do elenco estelar, o máximo que conseguem angariar, na
maior parte do tempo, é simpatia.
Talvez, também, porque esse mesmo desleixo apareça no desenvolvimento dos personagens,
em especial no relacionamento entre Wagner Moura e Fernanda Torres, que parece
estar sempre sub-desenvolvido, em um lugar no qual os dois não conseguem funcionar,
nem como o casal adorável com o qual deveríamos nos envolver, nem como o estereótipo
da piada da qual deveríamos rir (sobre esse segundo exemplo, temos o casal de
Camila Pitanga e Bruno Garcia). O mesmo vale, principalmente, para o personagem
de Lázaro Ramos, que completa o quinteto como um malandro bem-intencionado, mas
do qual nunca conseguimos entender, realmente, as boas intenções. Em outros filmes,
as pontas soltas poderiam ser sinônimo de livre interpretação. Neste, não passam
de pontas soltas, que deveriam ser amarradas.
Por fim, este mesmo empenho em tirar o melhor dos atores parece desprovido de
qualquer trabalho no que se refere a posicionar a câmera, fazer uma cena, iluminar
um plano. Esta decupagem funcional acaba por esconder, isso sim, uma não-decupagem,
na qual a maior parte das seqüências parece ser dirigida automaticamente, mirando
o rosto do ator no momento da piada, abrindo o plano quando é a situação que
dá o tom do humor. Ao concentrar-se nos atores, Furtado se esqueceu de que ainda
havia, sempre, uma câmera a filmá-los. Mesmo que, em vários momentos, essa “preguiça” funcione
(pois Furtado sabe o material que está trabalhando, de qualquer forma), é provavelmente
por causa dela que Saneamento Básico, o filme passa suas quase duas horas
como um passatempo leve, semi-agradável, e plenamente esquecível ao fim da sessão.
Uma pena, pois podemos ver, a todo momento, a comédia que Saneamento Básico poderia
ter sido, mas que, por confundir falta de pretensões com falta de cuidado, nunca
parece querer ser.
Leonardo Levis
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