SANEAMENTO BÁSICO, O FILME
Jorge Furtado, Saneamento Básico, o filme, Brasil, 2007

É preciso deixar claro: Saneamento Básico não é, de forma alguma, uma repetição do que Jorge Furtado vinha fazendo, pelo menos em relação à sua carreira cinematográfica. Ao contrário de seus filmes anteriores, o novo longa-metragem do diretor não repete, pelo menos totalmente, uma mesma questão primordial tanto dos seus curtas quanto dos: a obsessão pela estrutura. Se em Houve uma Vez Dois Verões, ainda seu melhor filme, o cineasta retrabalhava a comédia romântica juvenil com leveza e suavidade, fazendo desta forma um filme também jovem, ao longo das obras seguintes a questão estrutural ficou cada vez mais sobrecarregada, tirando dos filmes boa parte do respiro e da vida que poderiam trazer.

Em O Homem que Copiava, todo o filme parece existir para reproduzir o processo mental de seu protagonista, e é nisso que o diretor desloca seus elementos: a voz em off de Lázaro Ramos, as idas e vindas de roteiro, a montagem com muitos planos. Em Meu Tio Matou um Cara, o mote estrutural é a vida de jovens adolescentes, com a “verdade” sendo modificada de acordo com suas vontades, e a presença da tecnologia (de computadores, jogos eletrônicos, celulares) conduzindo a narrativa. Mas, nos dois casos, e diferentemente de Houve uma Vez Dois Verões, o que acontecia era menos uma questão de entrega a mundos diversos, e mais uma possibilidade de “brincar” com as estruturas ditas convencionais.

Assim como em seus curtas-metragens, tudo que Furtado fazia direcionado ao cinema precisava conter uma dose de “experimentação” formal, algo que justificasse sua presença na tela grande (considerando que, na televisão, o mesmo Furtado aprimorara um estilo de comédia inteligente, focada principalmente nos diálogos e em um humor mais direto). Cada vez mais, o cinema de Jorge Furtado parecia caminhar para um beco onde o autor que ele mesmo tentava impor fazia com que seus filmes acabassem em um mundo próprio, furtadiano, esvaziado de maiores qualidades.

Em Saneamento Básico, o filme, o caminho trilhado por Furtado é outro. Ainda que exista uma premissa sobre a qual ele constrói o filme (a história do vídeo amador feito com poucos recursos por pessoas do interior, para poder construir uma rede de saneamento básico), esta premissa parece não influenciar no modo como o cineasta cria e monta suas imagens. Pela primeira vez, Furtado se deixa apagar em favor de uma série de elementos que, se existiam em suas obras anteriores, nunca poderiam ter tomado o papel de protagonistas: o humor desmedido e a presença central dos atores. Como nas séries de televisão, o cineasta deixa suas pretensões de inteligência de lado (pensemos na montagem hiper-textual, nas brincadeiras e viradas dos roteiros, nas vozes em off “espertas”) e parece cuidar apenas de uma coisa: que a narrativa funcione, e que seja bem assimilada.

Pois é sobre a base do funcional que Saneamento Básico é feito, e, se isto tem seus méritos – entre eles uma liberdade para os atores jamais vista em um longa anterior do diretor – também tem seus (grandes) defeitos. Neste sentido, parece que, muitas vezes, o cineasta concorda a liberdade e este arejamento com, simplesmente, preguiça. Que, esvaziado do cuidado quase obsessivo com referência hiper-textuais, Furtado não teve a habilidade – ou a vontade – de simplesmente contar uma história engraçada e envolvente, que é, simplesmente, ao que ele se propõe.

Se temos, de um lado, boas piadas, de outro, simplesmente, parecemos estar vendo um episódio de Hermes e Renato com atores famosos. No momento em que a discussão sobre o investimento em cultura, em vez de saneamento, é esquecida (e esta discussão é esquecida durante boa parte do filme), o cineasta não consegue dar a suas anedotas a novidade de que precisariam para funcionar. Pois, convenhamos, não há de novo em rirmos de um grupo de amadores fazendo um vídeo, digamos, amador. Apesar do claro esforço do elenco estelar, o máximo que conseguem angariar, na maior parte do tempo, é simpatia.

Talvez, também, porque esse mesmo desleixo apareça no desenvolvimento dos personagens, em especial no relacionamento entre Wagner Moura e Fernanda Torres, que parece estar sempre sub-desenvolvido, em um lugar no qual os dois não conseguem funcionar, nem como o casal adorável com o qual deveríamos nos envolver, nem como o estereótipo da piada da qual deveríamos rir (sobre esse segundo exemplo, temos o casal de Camila Pitanga e Bruno Garcia). O mesmo vale, principalmente, para o personagem de Lázaro Ramos, que completa o quinteto como um malandro bem-intencionado, mas do qual nunca conseguimos entender, realmente, as boas intenções. Em outros filmes, as pontas soltas poderiam ser sinônimo de livre interpretação. Neste, não passam de pontas soltas, que deveriam ser amarradas.

Por fim, este mesmo empenho em tirar o melhor dos atores parece desprovido de qualquer trabalho no que se refere a posicionar a câmera, fazer uma cena, iluminar um plano. Esta decupagem funcional acaba por esconder, isso sim, uma não-decupagem, na qual a maior parte das seqüências parece ser dirigida automaticamente, mirando o rosto do ator no momento da piada, abrindo o plano quando é a situação que dá o tom do humor. Ao concentrar-se nos atores, Furtado se esqueceu de que ainda havia, sempre, uma câmera a filmá-los. Mesmo que, em vários momentos, essa “preguiça” funcione (pois Furtado sabe o material que está trabalhando, de qualquer forma), é provavelmente por causa dela que Saneamento Básico, o filme passa suas quase duas horas como um passatempo leve, semi-agradável, e plenamente esquecível ao fim da sessão.

Uma pena, pois podemos ver, a todo momento, a comédia que Saneamento Básico poderia ter sido, mas que, por confundir  falta de pretensões com falta de cuidado, nunca parece querer ser.

Leonardo Levis