Trazer o nome de um personagem
já no título do filme costuma significar, primeiro,
que todas as perguntas que este filme terá a fazer
serão endereçadas diretamente a este que se nomeia
de princípio, a ele e ao universo que o encerra; depois,
que o tom desta documentação (no sentido de “reunião
dos autos do processo” mesmo), a disponibilidade daquele
que pergunta em ir mais ou menos longe em suas questões,
em investir mais em certos flancos que lhe parecem
render boas respostas, ou conscientemente evitar entrar
por outros, é o que nos dirá o quão próximo deste personagem
e de seu universo o filme está disposto a chegar. Em Mestre
Bimba, a distância que Luiz Fernando Goulart mantém
do velho pioneiro da capoeira é sempre bastante respeitosa,
e nem podemos falar exatamente em interrogações, uma
vez que a “iluminação” de Bimba já é assumida desde
a partida, e a seres iluminados não se faz mais que
adorar. Se a idéia toda parece bastante chapa-branca,
ela encontra um eco legítimo dentro do próprio filme:
pelos depoimentos de ex-alunos, companheiros, parentes,
fica evidente que há ali uma figura de distinção, uma
potência humana que leva todos eles (e também o próprio
diretor) a essa espécie de culto.
Nas melhores partes do documentário, esse culto será justificado “com provas”.
Bimba não foi só um inaugurador de uma nova cultura, ele foi também um inaugurador
de pessoas. Goulart vai nomeando todos os seus entrevistados pelos apelidos recebidos
enquanto estudavam capoeira com o mestre, e só bem adiante no filme descobrimos
que este novo “nome de batismo”, dada a força daquela comunidade que se criou
em torno de Bimba, passava a ser a única maneira de se reconhecer estes sujeitos.
Não à toa, a maioria absoluta dos entrevistados aparece vestindo uma mesma camisa,
onde se lê “Filhos de Bimba”: este é um homem que deu identidade nova, vida nova,
a centenas de pessoas. “Bimba pegava na mão de todo mundo para ensinar a gingar”,
e a idéia que a incorporação de todo novo aluno passasse não só por seu renascimento
civil, com um novo nome, mas também por este teste de contato, mãos com mãos,
parece tornar o respeito e a chapa-branca a medida justa da gratidão pelo mestre.
E que o filme assuma essa mesma gratidão, mesmo que ele próprio nunca tenha pegado
nas mãos de Bimba, mesmo que ele não tenha sido nomeado pelo mestre, parece menos
grave toda vez que vemos o esforço evidente de Luiz Fernando Goulart em preencher
a memória de Bimba de atitudes e concepções mais duvidosas (ou mesmo equivocadas)
do mestre. Este espírito crítico mínimo, no entanto, sempre é impedido de realmente
acontecer na tela pelo próprio espírito de celebração que o filme toma. E assim,
apenas suspeitamos que possam ser ligadas à figura de Mestre Bimba toda a carnavalização
da cultura da capoeira, o tino para sua mercantilização, não só pela instituição
das escolas pagas, mas pela montagem de shows folclóricos para exportação, ou
ainda sua personalidade muito mais controversa que os depoimentos dos ex-alunos
indicavam, sobretudo no curto mas valioso momento em que o conjunto das ex-mulheres
de Bimba entra em cena, revelando uma série de traços do personagem que até ali
não supúnhamos (a poligamia, uma certa cultura machista misturada com um carinho
extremo, a ambição misturada a uma ingenuidade que acabaria sendo fatal). Mas,
enfim, apenas suspeitamos destes passos em falso de Bimba: o filme insinua que
eles existem, mas não tem o menor pudor em fugir de sua investigação.
E assim, se esgotamos todas as possibilidades de confronto com um personagem
na justificada louvação que se fará a ele e no questionamento superficial e velado
de seus pontos cegos, restaria o confronto com este universo criado em torno
dele, que é o próprio universo da capoeira, e aí Mestre Bimba assume uma
distância que não é respeito ou admiração, mas pura falta de inventividade. De
todas as perguntas que este documentário bastante clássico em sua formatação
faz aos outros, faltou perguntar a si mesmo a mais evidente delas: como filmar
a capoeira? Serão inúmeros os momentos em que o filme estará diante de uma roda
de pessoas praticando isto que nunca sabemos exatamente o quanto é jogo, o quanto é luta,
o quanto é a curtição quase religiosa de uma espécie de transe coletivo, e toda
a riqueza deste espetáculo, cheio dessas múltiplas faces e espíritos, será sempre
abordada de maneira bastante neutra pela câmera. Os créditos iniciais do filme
já anunciavam esta relação, quando os nomes dos realizadores iam aparecendo escritos
por sobre os círculos amarelo e vermelho riscados no chão da escola que Mestre
Bimba fundou. O filme estará sempre circundando a capoeira, mas nunca se atreverá a
meter-se nela. O registro se parece muito com as dúzias de imagens-turismo que
já vimos desta cultura (aquelas mesmas imagens folclorizadas que nunca saberemos
em que medida Bimba contribuiu para criar). Mestre Bimba cumpre bem tudo
aquilo que se espera do documentário de restituição histórica de um personagem
esquecido, mas tudo isso já poderia ser dito do livro de Muniz Sodré em que o
filme se baseia. Aquilo que o cinema poderia oferecer ao personagem, este sim
um sinal de respeito e gratidão que não tem nada de chapa-branca, ou seja, uma
maneira criativa e pessoal de se registrar a imagem daquilo que fez e foi a própria
vida de Bimba, isso o filme de Goulart nunca faz. Temos um filme sobre o criador
que ignora completamente a graça e o desafio de se fazer um filme sobre a criatura.
Rodrigo de Oliveira
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