O palco da grande batalha final
de Harry Potter e a Ordem da Fênix é um gigantesco armazém onde
estão estocadas milhares de esferas
de vidro, cada uma delas com o nome de alguém
numa etiqueta, e ali dentro a profecia que elucida o
passado e aponta o futuro destas pessoas. Jovem bruxo
marcado pela diferença, o único capaz de fazer frente
à maior ameaça do universo da magia, ainda assim Harry Potter é tão dominável quanto
qualquer outro destes que têm seu destino escrito numa
dessas bolinhas frágeis, sempre a um ponto de se espatifar
no chão. Essa contradição fundamental da própria natureza
do personagem tinha sido incorporada integralmente por
todos os filmes da série até este de David Yates. Estávamos diante de uma figura potencialmente poderosa,
e que a cada nova aparição literária e cinematográfica
ia transformando esse potencial em realidade, aprendendo
novas técnicas, adquirindo controle sobre seus truques,
tornando-se de fato o líder que se anunciava desde o
nascimento, desde a marca do raio em sua testa e, mesmo
assim, qualquer atração paralela, mais chamativa em
sua apresentação espetacular, já era o bastante para
que se desviasse a atenção de Harry, investindo em ambientes e ações onde o menino não poderia
ser mais que um simples passaporte, quando muito um
coadjuvante de luxo. Foi assim com a pedra filosofal,
com a câmara secreta, com o cálice de fogo, foi
assim com a aparição do prisioneiro de Azkaban, momentos em que a encenação desse mundo fantástico,
a materialização das escadas que se movem, das pinturas
animadas, dos jogos de quadribol,
das vassouras voadoras, era a mais fundamental peça
de compreensão do que se passava ali no seu interior,
dos dramas e aventuras dos personagens que erravam por
este mundo. Harry Potter e a Ordem
da Fênix, pela primeira vez, abandona o complemento
do título por aquilo que aparece na frente dele, e aqui
Harry é finalmente o protagonista
da história que leva seu nome.
Talvez seja um desdobramento da própria evolução natural
da série, ou mesmo uma maneira diferente de se relacionar
com a fonte literária, mas o trabalho de David Yates
não é tanto de imprimir no filme uma sensação percebida
no ambiente (o espírito quase febril do episódio de
Alfonso Cuarón) ou de devolver a ele o tom apoteótico que havia se
perdido no meio do puro deslumbre (na maneira como Mike
Newell não faz mais que restabelecer
o caráter de universo fantástico naquilo que Chris Columbus via apenas um palco
de brincadeiras de criança). O que A Ordem da Fênix
faz é, antes de tudo, demarcar em que lugar todo esse
mundo de Harry Potter
se realiza, e este lugar é o próprio Harry, seu corpo, sua vida, sua história. Nada que o caminhar
da trama épica já não tivesse sinalizado antes, mas
aqui a indicação é forte demais para que Yates
a ignore. Harry Potter encontra uma nova amiga
em Hogwarts, Luna
Lovegood, e com ela divide a habilidade que só possuem aqueles
que viram a morte de perto, a de enxergar os Testrálios,
criaturas aladas, meio cavalos, meio dragões, que guiam
todos os veículos do mundo da magia
mas que permanecem invisíveis ao olhar comum.
Ora, foi o testemunho da morte de Cedric
no fim da aventura anterior que permitiu que agora Harry
Potter tivesse acesso a todo
um universo visual antes desconhecido dele e também
da própria materialidade da imagem (antes os veículos
pareciam andar sozinhos). Agora Harry
os vê, e só por isso o filme também os verá: será sempre
através de Harry, e nunca à revelia dele, que A Ordem da Fênix
se construirá.
Para isso também contribui um outro traço distintivo
do protagonista em relação a todos aqueles que o cercam.
Os grandes combates entre os bruxos da série são sempre
tomados à distância, numa disputa entre raios de energia
lançados de varinha a varinha, sem que nunca haja qualquer
contato físico direto entre os oponentes (é assim na
batalha final entre Dumbledore
e Voldemort, é assim quando
a Ordem da Fênix luta com os Comensais da Morte). Há
sempre um descolamento fundamental entre o modo como
as coisas se exibem aos olhos e a verdade de sua natureza,
manifestado principalmente pela introdução da professora
Dolores Umbridge na trama.
Não se trata de um mero caso de lobo em pele de cordeiro:
é como se todo um repertório visual (roupas, tiques,
a decoração de seu escritório) fosse forjado para que
exatamente a pele de Dolores pudesse se manter intacta,
ali debaixo de toda aquela roupa rosa, salvaguardada
pela mesma necessidade de distância que guia os duelos
aqui travados.
Harry Potter,
ao contrário, é aquele que dispõe o próprio corpo à
experiência de sua jornada. São várias as manifestações
desta entrega absoluta, a começar pelo castigo que Dolores
impõe a Harry, fazendo com
que uma lição repressiva que ele escreve num papel passe
a ser marcada violentamente na pele de sua mão, como
uma tatuagem involuntária, deixando nele mais uma cicatriz
que relembra seu confronto com o mal. Um confronto que
passa a ser interior, e não por uma psicologização simples: Voldemort
toma partido desta disponibilidade, e invade os pensamentos
de Harry, produzindo ali imagens ilusórias, memórias inexistentes,
em algum momento até transformando a figura do jovem
bruxo, olhos raivosos e expressão contraída de quem está possuído
momentaneamente por uma energia que não é a sua. David
Yates, não por acaso, vai
até lá com a câmera, e durante os pesadelos de Harry, filma pedaços indistintos de seu corpo, veias saltando,
a pele suada se contorcendo, closes extremos de um corpo
flagrado no momento em que se torna veículo de outras
coisas, de pensamentos sombrios, de perturbações do
passado, da própria sobrevivência de uma série de blockbusters.
Sim, porque parece ter sido percebido pelos produtores
que o caráter obrigatoriamente dispersivo das aventuras,
sempre precisando dar conta de muitas ações e personagens
secundários para construir essa idéia da magia como
a dimensão paralela que é, com seus códigos éticos e
leis físicas próprias, vinha dispersando também aquilo
que de mais único existia nesse mundo (bem ou mal já
experimentado em inúmeras outras narrativas fantásticas).
O valor aqui é o próprio Harry
Potter, esse menino que carrega,
entre outros fardos, o de protagonizar a franquia de
maior sucesso da cultura pop atual sem ter qualquer
controle sobre ela. Assim, não é possível falar na politização
deste novo filme sem falar da politização do próprio
personagem, ou do crescente caráter sombrio das tramas
sem mencionar que é esta exatamente a experiência do
bruxinho, e desse modo todo
o desfile de sub-tramas vai sendo cuidadosamente colocado
de lado, de tal maneira que A Ordem da Fênix
seja o filme em que vemos a mais aguardada
luta épica entre os dois maiores magos da trama, o levante
ditatorial de uma leninista-pink,
a aparição de uma ordem que congrega todos os famosos
bruxos do bem de que gostamos, mas seja, acima de tudo,
o filme que reconquista Harry
para si.
Rodrigo de Oliveira
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