Em
vários sentidos, Conceição é uma enganação.
Contra toda mitologia criada em torno dele nos dez
anos que levou para ficar pronto, essa lenda do primeiro
longa-metragem universitário brasileiro, feito em
condições de produção totalmente adversas, sem patrocínios,
sem dinheiro, sem estrutura, o que nos fazia dar
como certo que toda essa precariedade acabaria eventualmente
sendo levada à tela, e que tudo não poderia passar
de um exercício de cinema engraçado-porque-tosco,
nos aprontam uma dessas: um filme incrivelmente bem
realizado, em certos momentos quase virtuoso (ou
alguém se lembra de cena mais bonita que aquela em
que o grupo de autores reunidos em volta de uma mesa
de bar fuma um baseado no escuro, quando o fotógrafo
Marcio Menezes tira sua fonte de luz unicamente do
brilho laranja que o cigarro projeta nos rostos de
cada um?). Outra falácia é a da diluição narrativa
nas mãos de cinco diretores diferentes, o que sugeria
um apanhado de esquetes apenas frouxamente conectadas.
Pois Conceição, tão modernamente, é um filme
de projeto, que se dispõe a andar por onde quer que
seus diretores desejem mas que, ainda assim, nunca
perde sua consciência de todo, porque aqui coisas
são, de fato, ditas, há uma vontade de discurso que
trará toda loucura explosiva para um certo caminho
já muito bem traçado. Esse caminho, aliás, é o que
nos relativiza o impacto do subtítulo do filme, porque
se o epíteto irá se confirmar literalmente na chacina
final que dizima todos os jovens autores reunidos,
a idéia de uma autoria, de um pensamento constituído
em imagem a partir de uma plataforma artística consciente
de sua própria construção, nunca foi descartada.
Antes de autores, o cinema em que Conceição acredita é o
dos filmes autorais, que respondem sozinhos por sua
existência.
Essa idéia de inteireza, que desloca a sugestão de um pensamento do produtor
para o próprio produto, é o que torna Conceição tão unitário e, maior
engano de todos na previsão anterior à visão, tão conseqüente. Como no ovo frito
na chapa suja do boteco em que bebem os autores, e que serve de ampulheta da
narrativa, atravessando seu preparo por todo o filme, não há inconsistência que
resista ao trabalho do fogo, e na verdade, é pela possibilidade de consistência
no fim do processo que vale a pena jogar todos esses elementos fluidos numa chapa
e vê-los tomar forma.
Mas, estranhamente, é contra a própria idéia da submissão que os personagens
criados por esse grupo de jovens se rebela, e há em Conceição, no modo
como se esforça para confirmar seu subtítulo, uma compulsão parecida. Daí que
os melhores momentos do filme sejam aqueles que conseguem escapar justamente
da certeza de um destino, momentos de insubmissão absoluta (radicalizada a proposta
de autoria orgânica, os filmes que cada um dos personagens imagina para si, e
que são assumidos por Conceição como se imagens suas fossem, são mais
interessantes que o filme que se faz sobre o momento em que essa imaginação acontece).
Figura-símbolo dessa pulsação paralela é o justiceiro que Jards Macalé interpreta,
evoluindo por espaços diversos de maneira completamente escorregadia, um personagem
que equilibra a matança violenta do final com o número musical de voz e violão
sentado numa pedra, sem nunca obrigar-se à síntese de um com o outro.
Esse jogo de opostos (resistiremos bravamente à idéia de “dialética”), muito
mais que seu modo de produção, é o que torna Conceição tão estranho àquilo
que vemos no cinema brasileiro atual, algo que confirma integralmente aquela
disposição inicial de localizar a autoria no próprio filme, de modo que essa
lógica interna cuide de perguntar, responder e provocar um bloco e outro, sem
anulá-los. O discurso unitário e conseqüente consegue, ainda assim, divertir-se
com aquilo que a dispersão e a inconseqüência trazem à mesa, eventualmente até se
deixando contaminar por ela (os flashes de um telejornal constante ao
longo do
filme pertencem à “realidade”, estão sendo exibidos na tevê do bar onde estão
os autores, e ainda assim provocam as piadas mais absurdas e engraçadas). E assim,
o filme de culpabilização social se relaciona ao filme militante, a perseguição
fluida de uma steadycam conversa com a rigidez da decupagem em planos
fixos e bem compostos, a piada escatológica é precedida de um depoimento documental
sinceramente amoroso. Todos esses filmes convivem em Conceição, e se permitem
preencher por todos os outros que o olhar sobre eles fatalmente gerará. Depois
de anos de trabalho, André Sampaio, Cynthia Sims, Guilherme Sarmiento, Samantha
Ribeiro e o nosso Daniel Caetano, contra aquilo que todo o projeto e a estrutura
narrativa fazem supor, nos mostram um filme que não está pronto, e que nunca
estará. Porque cada plano é uma chance de outro, porque cada nova visão é a certeza
de chegar onde ainda não se havia estado, e aqueles que, diante dele, estiverem
de sapato, talvez realmente não sobrem.
Rodrigo de Oliveira
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